Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Analista
Junguiano pelo Instituto Junguiano de São Paulo
da Associação Junguiana do Brasil.
Orientador: CÂNDIDO PINTO VALLADA
RESUMO
O homem moderno parece estar muito inconsciente de si mesmo e de sua inserção na natureza; embora aparente liber-dade, encontra-se escravo de muitas coisas, seu espírito paira inquieto e insatisfeito.
A neurose tornou-se lugar-comum no mundo. A esterilização da natureza e a ausência de alma na humanidade são coisas a serem tratadas, pois se sabe que a relação homem versus natureza ultrapassa a institu-cionalização, envolve fatores culturais, psí-quicos, místicos, simbólicos e religiosos. Daí a necessidade de busca de resgate do sagra-do.
O objetivo deste estudo foi o de, primeiramente, buscar, via xamanismo, um resgate da experiência íntima e espiritual do ser humano e não só cosmológica, bem como deitar o olhar sobre as profundezas insondá-veis da alma, cujo sentido é uma conciliação total do homem com o mundo, consigo mesmo e com Deus.
Palavras-chaves: Espírito, liberdade, natureza, simbólico, conciliação.
ABSTRACT
The modern man very meets of itself exactly and its participation in relation with the nature unconscious; he is enslaved of many things; although apparent freedom, its spirit is uncertain and unsatisfied.
The neurosis became place-common in the world, and the sterilization of the nature and the absence of soul in the humanity are things to be treated, therefore, the relation man versus nature exceed the institution-alization, involving cultural, psychic, mystics, symbolic, magical and religious factors. From they’re the necessity of search of rescue of the sacred one.
The objective of this study was of, first, searching, saw shamanism, a rescue of the close experience and spiritual of the human being, and not only cosmological, and also to lie down the look on the abysmal deepening’s of the soul, whose felt it is a total conciliation of the man with the world, I obtain exactly and with God.
Word-keys: Spirit, freedom, nature, symbol-ic, conciliation.
(IN MEMORIAN)
Aos meus avós, Severino e Domingas,
Diogo e Gertrudes, por todos os meus
Ancestrais.
Mitakuye Oyassin.
AGRADECIMENTOS
“Grande Espírito, já que procurei
Entender a voz do vento e o sopro
Que me criou, escuta-me.
Eu venho a Ti como um de teus numerosos
Filhos. Sou falível e pequeno, preciso
De Tua sabedoria e Tua força.
Deixa-me andar na Tua beleza e faz com
Que meus olhos sempre percebam o
Vermelho e a púrpura do entardecer.
Faz com que minhas mãos respeitem as
Coisas que criastes e que meus ouvidos
Consigam entender Tua voz.
Faz-me sábio, de modo que eu possa
Absorver o que ensinastes a meu povo
E aprender as lições que
Escondestes em cada folha e
em cada rochedo.
Eu Te peço força e sabedoria, não para
Ser Superior a meus irmãos,
Mas para que possa vencer
O maior inimigo que tenho:
Eu mesmo.
Assim, meu espírito poderá retornar
A Ti sem pecado!”
(Prece dos índios Qjibwa)
A minha gratidão e o meu amor a todas as pessoas que passaram pela minha vida, pelas que nela estão e pelas que nela virão: é a expressão máxima de minha manifestação enquanto ser humano.
Minha gratidão eterna aos meus pais por seu amor incondicional.
Ao meu orientador e analista Candido P. Vallada, por sua amorosidade, generosidade e sutileza de alma ao percorrer este caminho comigo, oferecendo-me seu conhecimento, sua paciência, ensinando-me a construir novos caminhos no processo de individuação.
Agradeço especialmente ao xamã José Alceu Barbosa pelo acolhimento no Ninho das águias e o compartilhar comigo de sua sabedoria e cura.
Meu respeito por Maria de Lourdes Bairão Sanchez e minha admiração por ela e por todos os formadores por possibilitarem novos conhecimentos.
Aos meus familiares e amigos, por seu apoio e confiança em mim.
Suzana Lyra Strapasson
APRESENTAÇÃO
Na infância, aos oito anos de idade mais ou menos, tive uma séria afecção no músculo facial. Meus pais fizeram vários caminhos na busca da cura. Foi quando tomaram conhecimento da existência de um curandeiro na cidade de Campos Novos – Santa Catarina.
Segui de trem com um casal que se propôs a me levar, já que meus pais não poderiam deixar o trabalho para me acompanharem.
Minha memória perfaz a chegada: uma casinha branca, com amplo gramado ao redor. O morador era um velhinho. Vestia roupas brancas. Sua barba também era branca, longa, e usava uma bengala na mão direita. Era centenário, tinha mais ou menos cento e dez anos de idade e era o maior curandeiro das redondezas. Ao chegar ao local, escondi-me atrás das pernas das pessoas que me levaram a ele, pois sentia ao mesmo tempo, um misto de medo e fascinação. Achei que ele era Deus. Ele se aproximou de mim, ofereceu-me um copo com água, colocou a mão na minha cabeça, olhou meu rosto e disse: “Beba esta água que você vai ficar boa”. Ao retornar à casa de meus pais estava curada.
Já adolescente, numa manhã, quando sentada no beiral da porta da cozinha, na casa de meus pais, minha mãe chegou e disse: “Esse eczema na minha perna dura quinze anos. Fiz uso de muitos tubos de pomada e nada resolve. Cura ele para mim?” Sentou e colocou a perna no meu colo. Fiquei sem ação e disse: “Não sei o que fazer com isso”. Ela disse: “Sabe sim”. Com certo constrangimento, levei as duas mãos por sobre o eczema na altura do tornozelo, e surgiu ante meus olhos uma imagem, a de uma salamandra. Senti o local todo aquecer. Disse para ela: “Está feito!” Passaram-se alguns dias e ela veio a mim e disse: “Sabe meu eczema? Pois é, acabou! Minha perna está curada”. Depois disso, uma vizinha me procurou portando psoríase. Tive um sonho com ela, onde todas as roupas deveriam ser queimadas. Contei o sonho a ela. Depois não a vi mais.
Surgiu assim minha curiosidade em relação à cura. Vi um arquétipo no curandeiro? Que imagem era aquela que auxiliara na cura de minha mãe? Ou foi a imposição de mãos que fez a diferença? Eram intrigantes as histórias que ouvira sobre curas, simpatias, o conhecimento das ervas que algumas pessoas tinham. Li o livro As Clavículas de Salomão, que discorria sobre simpatias múltiplas e pensava em como poderia aquilo interferir na vida de pessoas.
Convivi com a religiosidade de minha avó paterna quando morei com ela, a qual ouvia diariamente no rádio, às 18 horas, o programa a Hora do Anjo. Ela colocava um copo com água para ser abençoado e depois dava para eu beber.
Assim, ao longo desses anos busquei respostas que talvez jamais encontrasse. Porém, ao participar de um grupo xamânico no Ninho das Águias, Campo Largo – Paraná, fui ao encontro de possibilidades de obter respostas; contatei pessoas de coração aberto para com a experiência do sagrado. Participei de rituais da roda da cura, fui ao conselho dos anciões, que é um lugar sagrado. Sendo um círculo de pedras, seu centro é representado pela fogueira. Com a permissão dos ancestrais, adentramos e circulamos a roda. O cachimbo, como guardião da tradição sagrada e dos rituais, circula entre os membros com o intuito de purificação, em que o espírito é libertado sob forma de fumaça. Ele representa a conjunção do masculino e do feminino.
Participei também do temazcal, ou tenda do suor, que tem o mesmo propósito, o de purificação. A tenda é construída com galhos do salgueiro, que simbolizam a árvore do amor, e tem forma circular. As pedras vulcânicas são colocadas no centro, pois, segundo a tradição, são portadoras dos registros da terra e liberam suas antigas lições. Nosso suor retorna à Mãe Terra sob a forma de vapor e a nutre. Quando a porta é aberta, o vapor, que está no alto, sobe em direção ao Pai Céu para levar as preces e são as canções e preces que preenchem o espírito enquanto acontece o processo de purificação.
Cada momento foi vivenciado com imensa gratidão e profundidade. Aprendi a valorizar e a reconhecer minha ancestralidade; descobri que minha pulsação é uma só com a do universo, bem como meu caminho na Psicologia Analítica com o processo de análise e interpretação dos sonhos, tomando corpo essa minha busca de compreensão do sagrado. Penso também que o fato de optar pela teoria de Carl G. Jung enquanto minha formação profissional e humana dá-se justamente pelo fato de enfatizar dados psicológicos, antropológicos e sociais, alquímicos, religiosos, e, principalmente porque em sua amplitude nos remete ao conceito do inconsciente coletivo, trazendo toda a gama dos arquétipos, o que possibilita uma aproximação maior do conhecimento originário.
Ao trazer o tema sobre xamanismo para a minha formação de analista, pretendo aprofundar e re-conhecer esse fenômeno da cura na tradição xamânica (espiritual) e psicológica (emocional) nessa relação de experiência do sagrado, seus rituais e filosofia de vida no intuito de aproximá-lo um pouco mais da consciência individual, comprovando, à base de dados empíricos, o caráter real e passível de experiência do processo de individuação. Quando se busca o objeto da psicologia, depara-se com a psicologia arcaica, e, segundo Jung, não só com a psicologia arcaica do primitivo mas também do homem moderno, pois independente do nível de consciência continua-se arcaico nas camadas mais profundas da psique.
Segundo Jung,
O homem necessita de uma vida simbólica… Mas não temos vida simbólica… Acaso vocês dispõem de um canto em algum lugar de suas casas onde realizam ritos, como acontece na Índia? Mesmo as casas mais simples daquele país têm pelo menos um canto, fechado por uma cortina, nos quais os membros da família podem viver a vida simbólica, podem fazer novos votos ou meditar. Nós não temos isso… Não temos tempo nem lugar… Só a vida simbólica pode exprimir a necessidade do espírito… a necessidade diária do espírito, não se esqueça! E como não dispõem disso, as pessoas jamais podem libertar-se desse moinho – dessa vida angustiante, esmagadora e banal em que as pessoas são ‘nada senão’. (18, par. 625-627).
Creio que essa busca de uma vida simbólica é a principal motivadora de minha caminhada no processo de individuação.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO……………………………………………………………………………………………………………….VII
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………………………………………………01
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TEMA…………………………………………………..03
CAPÍTULO II – ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA E A IMAGINAÇÃO………………………09
CAPÍTULO III – MEDITANDO SOBRE IMAGENS XAMÂNICAS RITUALÍSTICAS…………………..22
III.I. O ELEMENTO AR…………………………………………………………………………………………………….24
III.II. O ELEMENTO ÁGUA……………………………………………………………………………………………….28
III.III. O ELEMENTO FOGO……………………………………………………………………………………………….32
III.IV. O ELEMENTO TERRA……………………………………………………………………………………………..35
III.V. TRANSCENDÊNCIA…………………………………………………………………………………………………39
CAPÍTULO IV – RODA DA CURA: UM RITO XAMÂNICO……………………………………………………..43
CONCLUSÃO……………………………………………………………………………………………………………………..56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS………………………………………………………………………………………59
INTRODUÇÃO
A presente monografia tem por objetivo trazer uma contribuição à Psicologia Analítica, bem como aprofundar e re-conhecer o fenômeno da cura na tradição xamânica como experiência do sagrado, abordando as principais características do xamanismo com o intuito de aproximá-lo um pouco mais da consciência individual, comprovando, com base em dados empíricos, o caráter real e passível de ser experimentado do processo de individuação.
O tema xamanismo – uma abordagem arquetípica foi escolhido porque o arquétipo vem para sugerir aquilo que é sempre acreditado enquanto idéia comum a toda a humanidade, sempre presente em diferentes épocas da história. Emerge sob diferentes roupagens que se expressam enquanto imagens arquetípicas, pois é a imagem que dá forma e atualiza o que está em potencial.
O objetivo, então, é buscar as possibilidades de ampliação da consciência. Esse conhecimento do Si-mesmo no sentido amplo do termo, dá-se enquanto uma viagem simbólica por meio dos quatro continentes, das quatro direções, enfim, numa circum-ambulatio pela história da humanidade.
Assim, no primeiro capítulo far-se-ão considerações gerais sobre o tema do xamanismo, apresentando suas características principais e universais, juntamente com a teoria de Jung sobre a psicologia primitiva e a relação entre o homem e a natureza.
No segundo capítulo serão abordados os estados alterados de consciência e a imaginação como fenômenos da iniciação de um xamã e também como símbolos da transformação do iniciado, pois a iniciação é considerada em todas as tradições como um renascimento e como uma gênese.
No terceiro capítulo trabalhar-se-ão meditações sobre imagens xamânicas que são apreciadas nas tradições indígenas, circulando juntamente com o tema da Psicologia Analítica e com o da religião.
Já no quarto capítulo descrever-se-á a roda da cura como símbolo arquetípico, representando o eterno ciclo do nascimento e do desabrochar, da maturidade e da frutificação, da morte e da decomposição refletidos na vida humana e na natureza. Percorre-se, assim, o caminho das direções na roda da cura enquanto caminhos de transformação que são análogos ao processo de individuação.
CAPITULO I
CONSIDERAÇÕES GERAIS
“Aos quatro pontos do universo
Liguei minha teia.
A partir deles, teci meu fio sagrado;
Entre idas e vindas,
Balancei-me no tempo arcaico.
Ao atingir o centro…
Sempre circulando
Rodopiei em êxtase
E repousei no amor.”
(Suzana Lyra Strapasson)
Quantos indivíduos, nos dias de hoje, têm o privilégio de sentar ao redor de uma fogueira e ouvir a fala do fogo, brincar com as imagens das bailarinas nas chamas, reverenciando-o enquanto fogo transformador, ou mesmo ir a uma cascata de águas cristalinas e entregar às águas o que não mais pertence às pessoas e reverenciá-la como fonte de vida? Ou mesmo parar no alto de uma montanha e deitar o olhar no horizonte, ouvindo apenas a canção dos ventos, sejam eles brisas ou formação para tempestade; pisar na terra, cavoucar, construir, não esquecendo de agradecer à Grande Mãe o firme solo de nossa sustentação. Ainda ver o sol como irmão e a lua como avó, o céu como pai, como são tradicionalmente chamados nas tradições arcaicas?
Hoje se compreende que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual; pode-se camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas nunca extirpá-los. Vive-se pelo símbolo, sendo ele a ponte entre a psique individual e o mundo da mente arquetípica. Nos rituais xamânicos de cura, refaz-se o caminho até mesmo da própria espécie, quer dizer, retoma-se o caminho ancestral da relação homem versus natureza, e como diz Hillmann: “O homem existe dentro da psique (…) não ao contrário (…) e muito da psique estende-se além da natureza humana” (1975, p. 173). E é assim que se resgata a re-criação do mundo como experiência psíquica.
Desde sempre se buscou o rito para comunicar-se com a transcendência, pois eles reafirmam o mito e por meio desses adentra-se no espaço sagrado, onde uma aliança é estabelecida entre as dimensões do céu e da terra, do profano e do sagrado, do homem e dos deuses.
Com o cristianismo, os deuses foram escorraçados da consciência coletiva, muitos mitos e ritos foram considerados como heresias. Inanna ou Iniuni, uma deusa pagã do culto da fertilidade, foi transformada em Virgem Negra pelo cristianismo e atualmente encontramos vários santuários ou igrejas com a imagem da virgem, como, por exemplo, no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Portanto, o cristianismo absorveu muito das divindades tidas como pagãs e ecumenizou-as. Assim foi-se perdendo muito da história das religiões arcaicas.
Segundo Mircea Eliade: O xamanismo representa o mais difundido e antigo sistema metodológico de tratamento da mente e do corpo que a humanidade conheceu (Apud HARNNER, 1995, p. 76). Os dados arqueológicos e etnológicos dizem que o método tem pelo menos 30 mil anos, com evidências vívidas nas pinturas das cavernas, principalmente as do sul da França.
O xamã é o mais antigo profissional do mundo, do qual descende tanto o médico quanto o sacerdote moderno, e as práticas dos xamãs, segundo a história das religiões, são similares na Ásia, Austrália, África, Américas e Europa, bem como na Sibéria e no Círculo Ártico. Assim como o xamanismo pode ser visto possivelmente como a primeira manifestação espiritual do ser humano, mesclando-se a todas as fés e crenças, atingindo níveis profundos da memória ancestral, pode-se dizer que é anterior à religião organizada, pois possui sua própria cosmologia e simbologia do universo.
Ainda segundo Eliade, “o xamanismo é uma das técnicas arcaicas do êxtase, ao mesmo tempo mística, magia e religião no sentido amplo do termo” (1989, p. 10). A mais importante atividade do xamanismo é a cura e, para isso, o xamã deve distinguir o espúrio do efetivo, dar manutenção ao seu poder pessoal, que é fundamental ao seu bem-estar, enfatizar a experiência dos sentidos, operar como um intermediário entre os mundos interno e externo, ver a criação como uma totalidade e não como algo dividido em reinos de matéria e espírito, pois o xamanismo é vivenciado com o sangue e com as fibras do corpo, não apenas pelo intelecto.
Uma das principais missões do xãma é recordar o passado de sua terra e de seu povo e resgatar a sabedoria dos que viveram antes, ou seja, dos ancestrais. Para encontrar uma forma de cura especial que possa responder a um desafio ou a um problema pessoal, os ancestrais caminham com freqüência pelas florestas, sobre os rochedos das montanhas, em busca de indicações ou sinais (o vôo de um pássaro, uma pedra, a direção dos ventos, entre outros) que possam auxiliá-los na cura e na busca de sabedoria. Cada conhecimento adquirido constitui um passo adiante e significa uma pedra a mais, utilizada na construção da Grande Roda de Cura, que simboliza a continuidade da vida e o Espaço Sagrado.
A palavra xamã, da língua dos povos Tungusc (saman) da região das montanhas Altai, na Sibéria, foi adotada por antropólogos para designar pessoa de uma grande variedade de culturas não-ocidentais, que antes era conhecido como bruxo, feiticeiro, curandeiro, mago, mágico e vidente, mas que descreve, na verdade, alguém que, por meio do transe e do êxtase, ingressa em outro estado de consciência. “A palavra xamã pode ser traduzida também como ‘queimar, atear fogo’; ‘aquele que está agitado, erguido’, associada à raiz indo-européia, significando ‘saber’ ou ‘aquecer a Si mesmo’” (MATTHEWS, 2002, p. 45).
No xamanismo celta ser um xamã é ser inspirado, é sentir o poder do mundo espiritual em seu interior. Segundo o xamã Antônio Morales, em The Four Winds, de Alberto Villoldo, “o xamã (…) sabe que existe um mar de consciência universal, mesmo que nós o vejamos de nossas próprias praias; existe uma consciência e um mundo compartilhado por todos nós, e que pode ser vivenciado por todos os seres” (Apud MATTHEWS, 2002, p. 183).
No homem moderno civilizado observa-se um sentimento estranho diante dos poderes invisíveis e arbitrários, pois há pouco se escapou do temível mundo das superstições. Tem-se uma imagem mais racional do mundo, pois se obedece a leis racionais. O primitivo vive num mundo diferente do nosso, seus pressupostos são diferentes, o que se torna um enigma difícil de solucionar. Em Psicologia em Transição, Jung diz:
Estamos positivamente convictos de que tudo, pelo menos tudo que é teoricamente perceptível, tem uma causa natural. Mas a hipótese do homem primitivo é o contrário: tudo tem sua origem num poder arbitrário, invisível. Em outras palavras, tudo é acaso, embora ele não fale de acaso e sim de intencionalidade. (10, par. 115).
Vê-se que o psíquico no homem primitivo é objetivo e se desenrola no exterior. Essa projeção do psiquismo é o que cria as relações entre os homens, animais ou coisas. Explica-se aqui o conceito de projeção:
Processo pelo qual uma qualidade ou característica inconsciente do indivíduo é percebida no outro, ou num objeto e em relação ao qual se tem uma reação. Projeção da anima ou do animus em uma mulher ou homem real é experimentado como se apaixonar. Expectativas frustradas indicam a necessidade de retirar projeções, a fim de ser capaz de se relacionar com a realidade de outras pessoas. (DOURLEY, 1985, p. 155).
Fala-se então sobre inconsciente coletivo ou psique arquetípica, que é aquele pano de fundo escuro sobre o qual a função de adaptação do consciente se destaca nitidamente, e que é a descoberta de caráter mais fundamental de Jung:
Eu optei pelo termo coletivo pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo. (9/1, par. 03).
Esse pano de fundo tem uma influência tão temível sobre os indivíduos quanto sobre os primitivos, diferindo deles apenas na teoria, pois procuram motivos psíquicos e métodos de cura psicologicamente eficazes, enquanto o homem moderno, exemplificando, procura o melhor regime alimentar para a gastrite nervosa. Mas também se é possuído por demônios de doenças, a psique também é ameaçada por influências hostis, pois os processos do inconsciente influenciam o homem moderno tanto quanto influenciavam os primitivos. Jung dizia que a vida privada, etiologias e neuroses privadas tornaram-se quase uma ficção no mundo atual. O homem do passado, que vivia num mundo de representações coletivas arcaicas, ergueu-se novamente e vive uma vida bem visível e dolorosamente real, o que não ocorre apenas a alguns poucos indivíduos desequilibrados, mas a milhões de pessoas.
São vários os arquétipos e uma interminável repetição deles gravou experiências na constituição psíquica dos indivíduos, não em forma de imagens plenas de conteúdos, representando meramente a possibilidade de certo tipo de percepção e ação, mas ao se olhar para culturas passadas vê-se que a camada de culturas é fina e tênue, compondo as camadas primitivas da psique poderosamente desenvolvidas. São essas camadas da psique que formam o inconsciente coletivo, juntamente com os vestígios da animalidade que se perdem nos nebulosos abismos do tempo. Segundo Jung:
O homem sente-se isolado no cosmos porque, já não estando envolvido com a natureza, perdeu a sua ‘identificação emocional inconsciente’ com os fenômenos naturais. E os fenômenos naturais, por sua vez, perderam aos poucos as suas implicações simbólicas. O trovão já não é a voz de um deus irado, nem o raio o seu projétil vingador. Nenhum rio abriga mais um espírito, nenhuma árvore é o princípio de vida do homem, serpente alguma encarna a sabedoria e nenhuma caverna é habitada por demônios. Pedras, plantas e animais já não têm vozes para falar ao homem e o homem não se dirige mais a eles na presunção de que possam entende-lo. Acabou-se o seu contato com a natureza, e com ele foi-se também a profunda energia emocional que essa conexão simbólica alimentava. (1996, p. 95).
Para o primitivo, não se deve jamais questionar a validade das experiências do outro e, sim, buscar integrar mesmo a mais comum experiência em sua cosmologia como um todo. Cita-se aqui Jung em uma passagem que fala dessa integração:
Os primitivos estão bem longe do particularismo humano. Não sonham serem os donos da criação… O homem está simplesmente encaixado na natureza, faz parte do todo e não pensa que pode dominá-la. Todos os seus esforços se destinam a proteger-se contra os acasos. O homem civilizado, ao contrário, procura dominar a natureza e coloca todo seu esforço na descoberta de causas naturais que podem oferecer-lhe a chave do laboratório secreto da natureza. (10, par. 134).
No mundo arcaico tudo tem alma, e ela é coletiva no sentido em que está em tudo e em todos. Mediante várias leituras sobre o tema do xamanismo, pode-se chegar à conclusão de que a verdadeira essência é o estado de consciência xamânica, que, em vez de se voltar para a racionalidade, volta-se para as experiências internas, recorrendo às memórias sensoriais e ao simbolismo, utilizando na prática o tambor cujo som produz alterações no sistema nervoso central. A tradição diz que o tambor é feito da própria madeira da árvore do mundo; compreende o símbolo e o valor religioso dos sons do tambor xamânico; é percurtindo-o que o xamã se sente projetado em êxtase para junto da árvore do mundo, bem como o jejum, a incubação dos sonhos, os chocalhos e as danças são também características essenciais ao estado alterado de consciência.
E sobre esses estados alterados de consciência xamânica, isto é, estados alterados induzidos por essas práticas religiosas e místicas e a influência da imaginação que se quer abordar no próximo capítulo.
CAPITULO II
ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA E A IMAGINAÇÃO.
O xamã é um empírico, enfatiza a experiência, principalmente a dos sentidos, pois depende dela para adquirir conhecimento. Os trabalhos ou atividades xamânicas acontecem dentro de um tempo parcial (isto é, há uma ruptura na consciência; por um lado, o xamã mergulha, pela imaginação, no corpo e alma do paciente em busca da experiência de cura; por outro lado, ele tem consciência de seu corpo e a realidade externa) num estado alterado de consciência.
A dessacralização ininterrupta do homem moderno alterou sua vida espiritual, mas não quebrou as matrizes de sua imaginação. Sabe-se que toda uma mitologia sobrevive ainda nas zonas mal controladas da psique. Veja-se o que acontece nos estados xamânicos de consciência e quais as condições necessárias.
O estado xamânico de consciência sugere uma entrada na realidade incomum (a prática do êxtase), no real e na experiência, enquanto o estado comum de consciência sugere a realidade comum (a rotina do dia-a-dia), a fantasia. Para acessar esse estado xamânico de consciência exige-se autodisciplina e dedicação (jejum, confronto com as dificuldades encontradas no início da jornada, contato com a realidade interior, exploração do inconsciente, busca do animal de poder, aceitação no rito de passagem que sugere uma morte, busca da visão, integração com o interior e exterior), um estado transcendente de discernimento, o que inclui a geografia cósmica da realidade incomum. Deve haver uma missão específica premeditada pelo xamã, em muitos casos a cura de um membro da comunidade.
Ao que se crê, durante o transe sua alma deixa o corpo e sobe ao céu ou desce ao submundo. Ele trabalha caracteristicamente no escuro ou com olhos vendados (vê o que outras pessoas não conseguem ver) para claramente ver a realidade incomum, o que não implica perda de consciência, pois a privação total da luz o reporta às dimensões mais profundas da psique.
Em Psicologia e Alquimia lê-se:
Deus permite ao filósofo inteligente, por intermédio da natureza (per naturam), que ele faça aparecer às coisas ocultas na sombra, e delas retire a sombra. Todas essas coisas acontecem e os olhos das pessoas comuns não às vêem, mas os olhos do intelecto (intellectus) e da imaginação as percebem (percipiunt) com a verdadeira, a mais verdadeira das visões (visu). (12, par. 350).
Então, segundo Achterberg, “experiência xamânica de consciência é um estado de insight da realidade profunda, não explorado pelo intelecto discursivo e usado para estabelecer uma relação consciente com o absoluto” (1996, p. 31).
O xamã sai do estado mental desperto, caracterizado pela onda cerebral beta e pelo pensamento linear, para entrar em estado xamânico de consciência. Sabe-se, hoje, que o cérebro leva consigo suas próprias drogas para alterar a consciência.
Parece belíssimo o questionamento de Jung, quando de sua investigação da psicologia primitiva, ao afirmar:
Será que a função psíquica, a alma, o espírito ou o inconsciente têm sua origem em mim, ou será que a psique, nos inícios da formação da consciência, está realmente do lado de fora, sob a forma de intenções e poderes arbitrários, e acaba tomando lugar, gradativamente, dentro da pessoa, no decorrer do desenvolvimento psíquico? Será que aquilo que chamamos de partes separadas da alma já foram outrora partes de uma alma individual total, ou foram unidades psíquicas existentes por si mesmas, no sentido primitivo: espíritos, almas dos ancestrais ou algo semelhante, que, no curso da evolução, se encarnaram nas pessoas, de modo a constituir pouco a pouco esse mundo que agora chamamos psique? (10, par. 140).
Jung diz que é paradoxal a idéia sobre a função psíquica, mas não inconcebível quando se percorre o caminho de busca de entendimento dela.
No Tratado das Religiões, Eliade assim se pronuncia:
No homem primitivo, assim como todo ser humano, o desejo de entrar em contato com o sagrado é contrabalançado pelo temor de ser obrigado a renunciar à sua condição meramente humana e de transformar-se num instrumento mais ou menos maleável de uma manifestação qualquer do sagrado (deus, espírito, ancestral). (1989, p. 37).
Os xamãs se singularizam pela intensidade de sua própria experiência religiosa “é um especialista da alma humana, só ele ‘vê’, pois conhece sua ‘forma’ e seu ‘destino’” (ibid., p. 20). Nas iniciações o xamã vive a experiência simbólica de um ritual de desmembramento: ele é dividido em pedaços e a seguir, recomposto.
Em Psicologia da Religião Oriental e Ocidental, Jung sugere que nos rituais de desmembramento “a tortura que lhe é imposta não constitui, propriamente, um castigo, mas o meio necessário para conduzi-lo ao fim proposto” (11, par. 410). Poder-se-ia falar aqui de um renascimento, de uma transformação do iniciado num homem novo e mais eficiente.
A experiência de doença, tortura, morte e cura do xamã, contêm, num estágio superior, a idéia de sacrifício, de reconstituição da totalidade, de transubstanciação e de elevação do homem à condição de ser pneumático, numa palavra, a idéia de apotheosis.
Para os Iacutos, um dos mais avançados povos siberianos que ocupam as bacias do rio Lena, o xamã deve ser sério, ter tato, saber convencer os que se encontram à sua volta e, principalmente, não deve se mostrar presunçoso, orgulhoso ou colérico, pois estaria no hybris, um estado de inflação da consciência.
Na Psicologia Analítica, quando há inflação, há uma identificação do ego ao Si-mesmo. O ego atribui a si qualidades que na verdade são de algo mais amplo, o Si–mesmo. Vejamos:
O Si-mesmo é o centro ordenador e unificador da psique total (consciente e inconsciente), assim como o ego é o centro da personalidade consciente. Ou dito de outra maneira, o ego é a sede da identidade subjetiva, ao passo que o Si-mesmo é a sede da identidade objetiva. O Si-mesmo constitui, por conseguinte, a autoridade psíquica suprema, mantendo o ego submetido ao seu domínio. O Si-mesmo é descrito de forma mais simples como a divindade empírica interna e equivale à imago Dei. (EDINGER, 1995, p. 22).
Portanto, o xamã precisa estar desidentificado com os deuses e ter consciência de que é um instrumento dos mesmos. Ainda para os Iacutos, dele deve ser sentida uma força interior que não choque, mas que dê consciência de seu poder. Há uma mudança progressiva de comportamento do xamã: ele torna-se meditativo, busca a solidão, dorme muito, parece ausente, tem sonhos proféticos, às vezes, ataques. Esses seriam os primeiros sinais de vocação mística, que são os mesmos em todas as religiões.
Segundo Roger N. Walsh:
Os xamãs empregam uma enormidade de técnicas e cada uma delas pode induzir seu próprio estado peculiar, embora, é evidente, sejam possíveis sobreposições significativas entre esses estados” (1993, p. 243). E observa ainda que: Quanto à concentração: Os xamãs são famosos por sua boa concentração. Durante uma viagem, devem focalizar sua atenção durante longos períodos, sem a distrair, mas sua atenção não está fixa e imobilizada num único objeto, como a do iogue. Ao contrário, ela é fluída, deslocando-se livremente e à vontade de uma coisa para outra, conforme a viajem vai se desenrolando. Energia/excitação, calma, emoção: Por estarem vagando entre mundos, combatendo espíritos e intercedendo junto a deuses, não é de espantar que os xamãs se sintam excitados durante suas aventuras. A calma não é um termo que se poderia aplicar às viagens xamânicas. As emoções durante elas variam com o tipo de aventura e podem ir desde o horror e o desespero até o prazer e a excitação. Senso de identidade e experiência extracorporais: Um dos aspectos que caracterizam a viagem xamânica é a experiência extracorporal. Em parte por esse motivo, a viagem xamânica é, às vezes, descrita como uma vivência de êxtase. Durante a viagem os xamãs vivenciam-se como espíritos desencarnados, não mais limitados ou constritos ao corpo, capazes de deslocar-se por distâncias imensas a grande velocidade. Os outros elementos de seu povo são pessoas limitadas pela terra, confinadas e contidas, identificadas, enfim, com o corpo. Somente o xamã pode escapar a essa identidade sufocante e se vivenciar como espírito liberto. Conteúdo das vivências durante o transe: As vivências do xamã são notavelmente ricas e bastante organizadas. Envolvem vários órgãos dos sentidos, com sensações auditivas, visuais e corporais. Essas experiências não são nem os padrões caóticos de fogos de artifício neuronais aleatórios, nem as imagens incoerentes das perturbações esquizofrênicas. São coerentes e dotadas de propósito, refletindo tanto a cosmologia xamânica como a finalidade pela qual a viagem está sendo empreendida. (1993, p. 240).
O que vai diferenciar, segundo estudos realizados, o transe xamânico da patologia, como a epilepsia, é que o epiléptico não é capaz de realizar o transe por vontade própria.
O doente mental revela-se um místico fracassado ou, mais precisamente, um arremedo de místico. Sua experiência é vazia de conteúdo religioso. O homem religioso é projetado para um nível vital que lhe revela os dados fundamentais da existência humana, quais sejam, solidão, precariedade, hostilidade do mundo circundante. Mas o primitivo é antes de tudo, um doente que conseguiu curar-se, que curou a si mesmo. (ELIADE, 1989, p. 41).
Na Sibéria e no nordeste da Ásia, o xamã só é reconhecido após dupla instrução:
Essa dupla instrução do xamã equivale a uma iniciação extática e didática.
O vocábulo iniciação guarda a idéia de começo, que ele recebeu do latim initium, de onde deriva, formado do radical it, que deu iter (caminho) e itus (ação de partir, de caminhar). Iniciar é, propriamente, pôr-se a caminho do começo. Eis porque a iniciação é considerada, em todas as tradições, como um nascimento e como uma gênese, em que o neófito que recebeu a luz deve se tornar seu próprio demiurgo e progredir para um desenvolvimento ontológico cuja direção lhe é sugerida. Mas também é o fim, a conclusão de algo, como revela o grego teletè, parente próximo de teleutè: realização e morte.
O primeiro ato da iniciação é a morte do profano e o nascimento do neófito. O iniciado entra na vida pela morte para se pôr em marcha rumo à realização do seu ser; mas é preciso que essa morte e essa vida lhe sejam dadas, como também lhe devem ser dadas indicações sobre o caminho a seguir. Segundo Eliade, “os xamãs têm, então, acesso a uma zona do sagrado inacessível aos outros membros da comunidade” (1989, p. 09). Ele se distingue de um possesso por controlar seus espíritos, comunicar-se com os mortos, com os demônios e espíritos da natureza sem identificar-se com eles, quer dizer, não ser possuído, e é no confronto com os espíritos, não sentindo medo, que cresce a miwi (força psíquica) e ele fica forte.
Jung questiona a teoria do mana:
Segundo esta teoria (do mana), é a beleza que nos atinge e não somos nós que criamos a beleza… A teoria do mana afirma que existe algo como um poder amplamente disseminado que produz objetivamente todos os efeitos extraordinários. Tudo o que existe atua, caso contrário não existiria. Isso só pode ser graças à sua energia. O existente é um campo de forças. (10, par. 139).
Sabe-se que quando a atitude consciente de um indivíduo se modifica sensivelmente, os conteúdos inconscientes constelados pela situação assim criada também se transformam.
O xamã sempre tem um espírito guardião ao seu serviço chamado espírito tutelar. No México é chamado nagual; na Austrália totem assistente; os espíritos tutelares podem ser encontrados em uma caverna, no topo de uma montanha, alta cachoeira ou ainda em trilhas. O espírito guardião pode ser um poder animal ou um ser espiritual; acompanha o xamã e é consultado por ele para ajudar na cura.
Em termos psicológicos, o objetivo central de todas as práticas religiosas é manter o indivíduo vinculado à divindade, pois são repositórios da experiência transpessoal e de imagens arquetípicas.
Há duas abordagens básicas para a cura no xamanismo: restaurar os poderes benéficos e retirar os maléficos. Segundo Essie Panish, uma xamã aborígene norte-americana, “a doença no corpo das pessoas é como a loucura, e elas (as doenças) são vivas, muitas vezes fazem barulho, exatamente como os insetos… elas vivem ali como insetos” (Apud ACHTERBERG, 1996, p. 190).
A doença é então concebida como a perda do poder pessoal, da alma, e o tratamento é o restabelecimento desse poder, restauração do equilíbrio. Jung diz que se a cura significa tornar sadio um doente, então cura significa transformação.
O homem precisa reencontrar sua função inicial de mediador dos poderes do céu e da terra. Mas esse modo de viver o mundo – como o vêem e vivem ainda algumas tribos primitivas da América e da África – já não existe em nossa época hiper-materialista, em que o homem pretensioso e cheio de ceticismo, por receio de ser tachado de supersticioso, perdeu sua rica identidade com a magia. (MERCIER, 2000, p. 32).
Então, não são os instrumentos e rituais que curam, mas o poder a eles conferido pela imaginação, pois essa supõe ser a maior e mais antiga fonte de cura do mundo. A imagem mental ou matéria-prima da imaginação afeta intimamente o corpo, em níveis mundanos e profundos e tem o poder sobre a vida e a morte. Cada vez que se alteram prioridades (quando não se dá vazão ao mundo espiritual), muda-se o caminho. Cada vez que se permite usar a imaginação, muda-se a visão da realidade.
Cita-se aqui Bachelard na Dialética do Energetismo Imaginário, no livro A Terra e Os Devaneios da Vontade:
A imaginação humana é um reino novo, o reino que totaliza todos os princípios de imagens em ação nos três reinos: mineral, vegetal e animal. Graças às imagens, o homem tornou-se apto para terminar a geometria interna, a geometria verdadeiramente material de todas as substâncias. Pela imaginação, o homem se dá a ilusão de excitar as potências formadoras de todas as matérias (…), as imagens que nós fazemos da matéria – são eminentemente ativas. (1991, p. 23).
Jung fala da imaginação ativa, a qual se refere a uma seqüência de fantasias produzida por uma concentração intencional e que essa seqüência alivia o inconsciente e produz um material rico em imagens arquetípicas e associações. Diz que toda obra humana é fruto da fantasia criativa. Jung nos mostra até que ponto os dramas do mundo moderno derivam de um desequilíbrio profundo da psique, tanto individual quanto coletiva, provocado em grande parte por uma esterilização crescente da imaginação. Ter imaginação é gozar de uma riqueza interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. Mas espontaneamente não significa invenção arbitrária.
Etimologicamente, ‘imaginação’ é solidária com imago, representação, imitação, e com ‘imitor’, imitar, reproduzir. Dessa vez a etiologia faz eco tanto das realidades psicológicas como da verdade espiritual. A imaginação imita modelos exemplares – as imagens – reprodu-las, re-atualiza-as, repete-as sem fim. Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade, pois o poder e a missão das imagens consistem em mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Assim se explica a desgraça e a ruína do homem que não tem imaginação; ele está isolado da realidade profunda da vida e de sua própria alma. (ELIADE, 1979, p. 19-20).
Quando se faz a conexão entre os estados alterados de consciência do xamanismo e a busca do indivíduo na análise, pensa-se que é por meio desses estados que se consegue conectar com os mitos, símbolos, enfim, com a verdade interior. Consegue-se expandir a percepção para os mistérios que estão incubados em cada um. Religa-se com o sagrado e com a fonte criativa de tudo o que acontece, pois em estado de consciência ordinária, não se consegue alcançar níveis profundos do ser, se bem que Jung quando fala sobre ilusão, diz que o que se chama de ilusão é, talvez, uma realidade psíquica de suprema importância. A alma provavelmente não se importa com as nossas categorias de realidade. Parece que para ela é real tudo o que é eficaz.
O corpo não mente, os pensamentos passados ou presentes não se vão sem deixar a marca no corpo. As imagens comunicam-se com tecidos e órgãos e até células para promoverem mudanças. Desse modo, o xamã trabalha numa postura onde o corpo está na horizontal, tem consciência do mundo de imagens que deve acessar e como ir além. Falando das imagens primordiais:
O termo representations collectives, usado por Lévy-Bruhl, para designar as figuras simbólicas da cosmovisão primitiva, poderia também ser aplicado aos conteúdos inconscientes, uma vez que ambos têm praticamente o mesmo significado. Os ensinamentos tribais primitivos tratam de arquétipos de um modo peculiar. Na realidade, eles não são mais conteúdos do inconsciente, pois já se transformaram em fórmulas conscientes, transmitidas segundo a tradição, geralmente sob forma de ensinamentos esotéricos. Esses são uma expressão típica para a transmissão de conteúdos coletivos, originariamente provindos do inconsciente. (JUNG, 9/1, par. 05).
Parece que se está sempre olhando o mundo através de óculos coloridos por desejos e estados de espírito. Atingem-se inúmeros estados de consciência e, como tudo no universo, eles pulsam, têm movimentos, modulam de um para o outro e mudam, assim, a relação do indivíduo com o mundo e consigo mesmo.
E foram exatamente os grandes mestres, quer sejam religiosos (Cristo, Buda, Francisco de Assis), quer científicos (Einstein, Tesla, Heisenberg), quer políticos (Gandhi, Luther King), quer artísticos (Bach, Da Vinci) que experimentaram, em graus variáveis, picos de consciência cósmica que mudaram não só suas próprias percepções da realidade, como ajudaram outros (embora de modo diferente, pois a experiência não pode ser facilmente posta em palavras) a atingirem ao menos uma intuição dessa outra maneira de ver e sentir o mundo, natural e humano. No domínio psíquico como na experiência em geral, realidades são os fatores eficazes. O importante é entendê-los dentro da medida do possível, como, por exemplo, esta descrição feita por Stanislav Grof de “experiências correlacionadas com o declínio de uma patologia” (Apud FADIMAN & FRAGER, 1986, p. 168).
No estado de consciência normal ou usual, o indivíduo se experimenta existindo dentro dos limites de seu corpo físico (a imagem corporal), e sua percepção do meio ambiente é restringida pela extensão, fisicamente determinada, de seus órgãos de percepção externa; tanto a percepção interna quanto à percepção do meio ambiente estão confinadas nos limites do espaço e do tempo. Em experiências psicodélicas (área explorada por Grof em fins dos anos 50, na Tchecoslováquia, e nos anos 60, nos EUA) de cunho transpessoal, uma ou várias dessas limitações parecem ser transcendidas (este fenômeno também se encontra, de modo esporádico, nas várias terapias psicológicas, tendo recebido nomes como experiências oceânicas em Freud, experiências culminantes em Maslow, consciência cósmica em Weil, experiência mística, etc.). Em alguns casos, o sujeito experiencia um afrouxamento dos limites usuais do ego e sua consciência e autopercepção parecem expandir-se para incluir e abranger outros indivíduos e elementos do mundo externo. Em outros casos, ele continua experienciando sua própria identidade, mas em uma percepção de tempo diferente, em um lugar diferente ou em um diferente contexto. Ainda em outros casos, o indivíduo pode experienciar uma completa perda de sua própria identidade egóica e uma total identificação com a consciência de uma “outra” entidade. Finalmente, numa categoria bastante ampla dessas experiências psicodélicas transpessoais (experiências arquetípicas, união com Deus, etc.), a consciência do sujeito parece abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com a sua identidade de ego usual e que não podem ser considerados simples derivativos de suas experiências do mundo tridimensional.
No xamanismo considera-se a doença como originária do mundo espiritual. A maior atenção não é dada aos sintomas ou à doença em si, mas à perda de poder pessoal que permitiu a invasão da doença (baixa auto-estima, auto-imagem distorcida, dissociações).
Sabe-se que de um modo geral todas as religiões, e mesmo as formas mágicas das religiões dos primitivos, são psicoterapias, são formas de cuidar e curar os sofrimentos da alma e os padecimentos corporais de origem psíquica.
O sistema imunológico é violentamente agredido por muitos tipos de comportamentos e pensamentos. De acordo com pesquisas, imagens específicas, sentimentos positivos, sugestões, são elementos que têm poder de aumentar a capacidade do sistema imunológico para combater a doença.
Os rituais têm efeito terapêutico direto sobre o paciente ao criar imagens vívidas e induzir estados alterados de consciência que conduzem a autocura. Em Ego e Arquétipo lê-se, referentemente aos rituais:
Os tabus encontrados nas sociedades primitivas têm, na maioria dos casos, a mesma base – proteger o indivíduo do estado inflado, do contato com poderes que se podem mostrar grandes demais para a consciência limitada do ego,, poderes que podem explodir essa última de forma desastrosa. O procedimento primitivo de isolar os guerreiros vitoriosos quando do seu retorno do campo de batalha atende à mesma função protetora. (EDINGER, 1995, p. 98).
Na medida em que se adquire conhecimento desse sistema de defesa, pode-se treinar o sistema imunológico a funcionar com eficácia. Cientistas vêm comprovando que o sistema nervoso central não sabe diferenciar uma vivência real de uma vivência imaginária. Isso fica implícito no filme intitulado Quem Somos Nós?
Sentimentos, pensamentos e imagens podem na realidade, causar liberação de substancias químicas. No livro A Imaginação na Cura de Achterberg, lê-se sobre a influência de fatores psicológicos e emocionais sobre o sistema imunológico. As imagens e visões são usadas como instrumentos para re-estruturar o significado de uma situação, de modo que ela deixe de criar sofrimento. As imagens transmitem mensagens compreendidas pelo sistema imunológico. Elas ligam os pensamentos conscientes aos glóbulos brancos.
Sabe-se que estados alterados de consciência podem ser provocados por hipnose, meditação, drogas psicodélicas, preces profundas, privação sensorial e por um ataque de psicose aguda. Privação de sono ou jejum podem induzi-los (DAVIDOFF, 2001, p. 187). Epiléticos e pessoas que sofrem de enxaqueca experienciam uma consciência alterada que precede os ataques. A monotonia hipnótica, como vôos a elevadas altitudes feitos a sós, pode fazer emergir um estado alterado. A estimulação eletrônica do cérebro, o treinamento de ondas cerebrais alfa e teta, a clarividência, o treinamento de relaxamento de músculos, o isolamento (como na Antártica) e a estimulação fótica (a luz piscando a determinada velocidade) podem trazer agudas alterações à consciência.
No xamanismo, o estado alterado de consciência inclui vários graus de transe, do estado leve ao profundo, em que o xamã pode parecer temporariamente em coma.
Segundo Eliade, em Xamanismo e Técnicas Arcaicas do Êxtase,têm-se:
Entre os Ugros, o êxtase xamânico não é bem um transe e sim um estado de inspiração: o xamã vê e ouve espíritos; é levado para fora de si próprio porque está viajando em êxtase por regiões distantes, mas não está inconsciente. Trata-se de um visionário, um inspirado. Contudo, a experiência básica é extática, e o meio principal para obtê-la é, como em outras áreas, a música mágico-religiosa. (1989, p. 123).
Questiona-se, então, como atuam esses elementos primitivos sobre o homem moderno que não possui mais a capacidade de cair em estados duradouros de semi-inconsciência ou de êxtase.
Quando se utiliza a palavra êxtase para discriminar um estado alterado de consciência de uma patologia, é importante buscar-se sua terminologia e, segundo o autor Bernardo Bernardi, sua derivação etimológica do grego ex-stasis sugere a idéia de estar fora de si. No possesso dá-se como uma dissociação da personalidade. O fenômeno é acompanhado de muitas outras manifestações, mais ou menos marginais: tremor, suor, baba, grunhidos, glossolalia, injunções, predições, mudança de identidade pessoal, força hercúlea, debilidade.
Importante salientar aqui que ele se refere, enquanto objetivo do êxtase, no contato com a divindade e os espíritos e que as motivações são sociais e não individuais, e o que prevalece é à busca da cura de doenças. Isso remete a um cuidado com a avaliação psicopatológica e neurológica. O que diferencia a técnica do xamã com a patologia nos estados alterados de consciência é a utilização de rituais e indumentárias, objetos de poder e o contato com o sagrado, sendo a figura do xamã como que um psicopompo (guia das almas). Pode-se dizer que essa figura do xamã e do mago, são sinônimos do velho sábio. Esse é um personagem arcaico da alma coletiva que vive nas profundezas da consciência individual. Vê o visível e compreende o invisível, que é seu princípio imutável e verdadeiro. Ele rege os silêncios, os segredos, a deliberação exata, o princípio da ordem e a criatividade pela contemplação.
Coloca-se aqui a questão: enquanto analistas, o quanto é preciso saber? Não é pouco, com certeza! Na iniciação profissional precisa-se aprender a diferenciar as doenças somatopsíquicas, buscar conhecer o rumo da história atual da civilização, a predominância do capitalismo, a política, mas principalmente conhecer do simbolismo que cerca e contém a história da humanidade, pois sem o símbolo, tudo se torna sintoma. Isso faz pensar num grande balanço sob um pé de eucalipto, que leva, com um pé na terra e outro no ar, do conhecido ao desconhecido. Como no xamanismo, é vital desenvolver-se uma relação com o sagrado, consigo mesmo, com o outro e com a natureza. E essa relação só é possível pelo árduo processo analítico de confrontamento entre o ego e o Si-mesmo. Somente quando se experimenta o infinito na vida, é que a mesma encontra significado; essa é a ressurreição, o encontro de um novo modo de ser, em que se aprende a dar e a receber. Essa aproximação do sagrado os ancestrais sabiam cultivar.
Cabe aqui citar Jung: “O espírito é algo que sempre está escondido e a salvo do mundo e, por isso, constitui um santuário inviolável para todo aquele que renegou definitivamente, se não o mundo, pelo menos a crença no mundo” (2, par. 1347).
Após essa abordagem dos estados alterados de consciência e imaginação como características fundamentais no xamanismo, segue-se trabalhando o próximo capítulo com imagens ritualísticas do mesmo com o intuito de buscar uma integração maior com o tema, bem como trazer para a experiência individual a possibilidade de ampliação da consciência.
CAPÍTULO III
MEDITANDO SOBRE IMAGENS XAMÂNICAS RITUALÍSTICAS
Esse capítulo em especial terá uma narrativa pessoal. Será a expressão de minha experiência com o xamanismo, pois para buscar uma melhor compreensão do que é, dos rituais, e dos símbolos, participei ativamente de um grupo xamânico num instituto de estudos e pesquisas xamânicas denominado: Wakan Tanka, que quer dizer Grande Espírito.
Gostaria de me reportar aqui a meditações que fiz, de figuras simbólicas do xamanismo, e que muito me interessaram por serem imagens arquetípicas e por conterem em si, aos meus olhos, os quatro elementos, ar, água, fogo e terra, e por serem espécies diferentes de movimento imanente de toda substância, tanto inorgânica como orgânica, psíquica e mental, como os quatro instintos primordiais imanentes do mundo em movimento, ou, ainda, os quatro animais sagrados dos evangelistas. Para mim surgiu ainda uma quinta imagem, a que eu mesma denominei transcendência. Os quatro elementos agem em toda parte, como impulso, movimento, formação e forma. Na visão de São João, são descritos assim:
“O primeiro ser vivo é semelhante a um leão;
O segundo ser vivo, a um touro;
O terceiro tem a face como de homem;
O quarto ser vivo é semelhante a uma águia em vôo.”
(Apocalipse 4: 7)
A totalidade psicológica é universalmente simbolizada pelas estruturas quádruplas e muitas vezes também de forma circular, ou seja, o mandala. Trabalharei mais a questão com as quatro direções na roda da cura em capítulo posterior.
Não procurarei aqui mistérios ulteriores ou velados, não quero “explicar” as imagens, reduzindo seu conteúdo manifesto a algo inferior ou básico, mas deixá-las falar pela ampliação de minha percepção de cada uma delas, bem como trarei citações como uma forma de manter viva a tradição de aspirações e pensamentos de autores que permanecem de geração em geração trazendo consciência à humanidade.
III.I. O ELEMENTO AR
“Aquilo que existia desde o princípio,
o que ouvimos, o que vimos com
nossos olhos, o que contemplamos e
o que nossas mãos apalparam:
-falamos da Palavra, que é a Vida”.
(João 1: 1-4, Primeira carta de São João)
Ao meditar sobre a imagem, deparei-me com a figura contemplativa do xamã. Perpassei os olhos sobre a imagem buscando detalhes, ao mesmo tempo me reportei para a escuta da água que escoa da montanha, sentindo o aroma que exala das flores e ervas curativas, envolvendo-me com a luz que é sugerida na imagem.
Como diz sabiamente João, citado anteriormente, o que se contempla é a vida. Em meu momento atual, penso que coube a nós, humanos, nascidos há milênios, o destino original de re-conhecermos, em nós e no mundo, a tarefa de emergirmos progressivamente do paraíso da inconsciência, em direção a essa eterna elaboração da consciência. Para mim são as imagens que revelam estruturas do real, inacessíveis quer à experiência dos sentidos, quer ao pensamento racional.
Aquela imagem, especialmente, constituiu para mim uma abertura sobre um mundo de significações mais do que aquele em que vivo. Ela vem me oferecer uma ruptura de nível, dá–me a liberdade de movimento, de sair de um sistema de condicionamento racional.
Vejo as ervas, que são símbolos de tudo que é curativo e vivificante. A medicina celta fazia grande uso de ervas medicinais, e a origem dessa tradição é mítica. Segundo Chevalier:
Eliade diz que as ervas medicinais tomam o seu valor de um arquétipo celeste, que é uma expressão da arvore cósmica. O local mítico de sua descoberta, da sua origem, por exemplo, o gólgota, sempre é um centro. As ervas medicinais ilustram, pelas virtudes que lhe são atribuídas, a crença de que a cura só pode vir de uma dádiva divina, como tudo o que tem relação com a vida. (1997, p. 378).
Vejo então na imagem, o altar preparado para o ritual com as ervas e flores que, quando maceradas, exalam um perfume próprio nos envolvendo e nos re-ligando com nosso centro que, com inspiração e transpiração, nos humaniza, permite-nos re-conhecer o impulso infinito que está no âmago da realidade, dando-nos o sentido que a tudo ilumina, sentido esse que é a verdade, e que significa ver, compreender e amar nossa realidade, viver a coniunctio com ela, a vida, pois a beleza, a verdade e o amor revelam e educam a humanidade, sem nada impor, mas sim propondo e convidando, pois são frutos de liberdade e dom, como o vento que sopra.
Lembrei desta passagem da Bíblia em João e a transcrevi aqui:
“O vento sopra onde quer, e ouves
o seu ruído, mas não sabes de
onde vem nem para onde vais –
assim acontece com todo aquele
que nasceu do Espírito”.
(João 3:8)
Metaforicamente, quem senão o vento para carregar nos braços o perfume e perfazer longos caminhos? A origem da palavra perfume deriva do latim per (através) e fumus (fumo), indicando claramente que foi, em princípio, exalado por resinas queimadas no incenso. Desde tempos imemoriais, os perfumes e o incenso têm sido usados em festas religiosas de coroação de druidesas com verbena e outras ervas sagradas, ungindo os sacerdotes com óleo sagrado perfumado e estimulando a criação de uma atmosfera devocional nos santuários.
Sinto que os óleos usados nas pessoas ajudam ao indivíduo relaxar e que o incenso, quando queimado, tem o poder de auxiliar a conexão do homem com a natureza através do perfume exalado. Conseqüentemente, os antigos, em sua sabedoria, fizeram do incenso uso abundante nos seus rituais – tanto para atrair boas influências, quanto para exorcizar as más. A história revela uma relação perpétua entre o incenso e as observâncias religiosas de todas as épocas.
Dos povos mais primitivos aos altamente cultos de cada país e civilização, alguma forma de incensamento ritualístico, simbolizando um sacrifício espiritual e uma oferenda de aspirações dos devotos aos seus deuses, tem sido incluída nas práticas religiosas. Hipócrates, Críton e outros médicos-filósofos consideraram os perfumes como uma ajuda vital nas terapias de cura e classificaram-nos como medicamentos, receitando-os para tratamento, especificamente nos casos de problemas nervosos de vários tipos. A História Natural de Plínio cita numerosos florais para serem usados como remédios naturais. O filósofo grego Theofrasto acreditava que algumas doenças tornavam-se mais agudas pelo uso da inalação de perfumes estranhos à natureza da pessoa, sendo então necessário um perfume equilibrante para a cura. Aproximadamente nos anos 200 a.C., o perfume foi elaborado mergulhando-se flores em vinho doce, indicando que havia uma experimentação na arte da destilação e um interesse vital em óleos essenciais. Ainda hoje, nos rituais de jornadas xamânicas, faz-se num caldeirão o mergulho de flores no vinho, juntamente com oferendas de pães e doces ao fogo transformador.
Retornando à imagem, a figura do xamã sugere uma concentração sem esforço, como se não houvesse nada a suprir, e o recolhimento parece ser tão natural como a respiração e as pulsações do coração. Esse é um estado muito tranqüilo de consciência do intelecto, da imaginação, do sentimento e da vontade, como se não existissem desejos nem preocupações. A imagem ainda sugere a mim que o xamã tornou-se um todo, como a superfície das águas tranqüilas que escoam na entrada visível da caverna.
Ele veste um manto vermelho adornado por conchas e acolhe nas mãos um ramo de flores e ervas. O manto é a presença da verdade toda numa camada mais profunda da consciência. O vermelho é universalmente considerado como símbolo fundamental do princípio da vida. Cor de fogo, cor de sangue, é a cor da alma, da libido, do coração; é o mistério vital escondido no fundo das trevas e dos oceanos primordiais. As conchas participam do simbolismo da fecundidade própria da água. A crença nas virtudes mágicas das conchas encontra-se no mundo inteiro, desde a pré-história aos tempos modernos, e pertence provavelmente a uma camada do pensamento primitivo. A concha pode significar o ato de renascimento espiritual.
Assim eu contemplei a imagem no interior da caverna. No silêncio profundo, carregado de revelações, e do céu que desponta fora da caverna, cuja presença solene fala em linguagem de eternidade, um ar cheio de espiritualidade.
III.II. O ELEMENTO ÁGUA
“Como um rio de alma comum
Do branco pilone à espera runa
Do hierofante ao druida
Uma espécie de Deus fluido
Corre nas veias do gênero humano”.
(Lês Mages).
Essa imagem me reporta ao feminino. Sobre a cabeça uma lua cheia, que sugere umidade, é fria, corpórea e passiva, ventre e útero da natureza; o pote, como que suspenso no ar, jorra água, sugerindo uma continuidade, pois não cessa de derramar água do alto no rio abaixo; é como se saísse do centro da figura da xamã. O pote pode estar representando o centro, a fonte da água viva. Ele não é tocado pelas mãos da xamã.
A imagem me sugere a criação e o criado, a criação inteira que nasce de um receptáculo e apóia-se nele, um exercício espiritual consagrado ao crescimento contínuo, como a existência de um agente ativo que efetua a passagem do que está em potência para a realidade, alguma coisa no sentido de uma constância do fluir da água, bem como um agente mágico atuando como intermediário entre a consciência e o acontecimento daquele fluir. Em Aion: sobre o simbolismo do Si-mesmo quando Jung se refere à prima matéria diz que:
As designações da matéria-prima indicam algo que não consiste em uma determinada substância, mas que deve ser, certamente, o conceito intuitivo de uma situação psíquica inicial, como, por exemplo, a água da vida, a nuvem, o céu, a sombra, o mar, a mãe, a lua, Vênus, o caos, a massa confusa, o microcosmo. (9/2, par. 240).
Pesquisando sobre a água em certa ocasião, descobri que ela possui algumas propriedades muito estranhas; ela se expande quando deveria, na verdade, se contrair e tem o poder de dissolver praticamente qualquer coisa que toque, desde que lhe seja dado o tempo suficiente. Sem essa exclusiva qualidade solvente da água, a vida não existiria, porque é a água que transfere os nutrientes necessários tanto para a vida animal como vegetal. Uma gota de água de chuva caindo pelo ar, dissolve os gases atmosféricos. Quando a chuva atinge o solo, afeta a qualidade da terra, dos lagos e rios. Há algum tempo li um texto de que não recordo o título agora, mas que me chamou a atenção por falar do elemento água, em que era explicado que, aproximadamente há 4000 anos, os cabalistas afirmavam que a água possuía todos os segredos da cura, longevidade, regeneração e eventualmente da imortalidade das células humanas.
Também comento aqui um PowerPoint que recebi via e-mail e que falava que há cerca de 400 anos, o cabalista medieval Rabbi Abraham Azulai explicou que os segredos da imortalidade seriam revelados no ano 5760 do calendário hebraico (equivalente ao ano 2000 no calendário Gregoriano) e que estaria conectado às misteriosas propriedades da água. Interessante, pois muitos séculos depois o Dr. Alexis Carrel, ganhou o prêmio Nobel em 1912 pela fisiologia e pesquisas sobre a imortalidade das células. Mediante tal evolução da ciência, como não dizer que a água é o princípio da vida, da imortalidade?
Em um rito inicial, a água confere um novo nascimento, cura por um ritual mágico; nos rituais funerários, por exemplo, ela assegura o renascimento post mortem. Como um símbolo de vida, a “água viva” incorpora em si todas as virtualidades; rica em germes, ela fecunda a terra, os animais, a mulher. Em Misterium Coniunctionis há uma passagem citando a Gloria Mundi, que diz: “O mistério de cada coisa (rei) é a vida, isto é, a água; pois a água dissolve o corpo mudando-o em espírito e faz os mortos ressuscitarem como espírito” (Apud JUNG, 14, par. 312).
A água é fluída por excelência, é comparada ou assimilada à lua. Os ritos lunares e aquáticos dão ao devir universal uma estrutura cíclica. O conjunto água-lua-mulher tem sido percebido como o circuito antropocósmico da fecundidade. A xamã da imagem pode representar o princípio materno e o rio, a continuidade da vida biológica, o rio das gerações que se sucedem, que vai para frente. O céu aberto é a via na espiral da infinitude que se abre. A imagem se mostra por passos na espiral que desce da lua para a mulher, depois para a água e chega aos arbustos.
Na língua suméria, a significava água, mas, também, esperma, concepção, geração. Ouvi uma história certa vez, que os índios Pima do Novo México, têm um mito que fala que uma bela mulher (a Terra-Mãe) foi fecundada por uma gota de água caída de uma nuvem. Em leitura do livro Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo encontrei a seguinte passagem sobre o A:
A representa o interior; em certo sentido é a origem e a fonte de onde provêm as demais letras, sendo, ao mesmo tempo, a meta final e definitiva à qual retornam todas as outras coisas, tal como os rios que fluem de volta ao Oceano ou ao grande mar. Basta somente essa explicação para mostrar que o recipiente não é senão um mandala que simboliza o Si-mesmo ou o “Adam ano” (Adão superior), com as suas quatro emanações (à semelhança de Horus com seus quatro filhos). (JUNG, 9/2, par. 378).
Por isso a água é vista na estrutura cosmológica como germinativa; fonte de vida, em todos os planos da existência, ela rejuvenesce e assegura a vida eterna.
Reporto-me à poesia de Vinicius de Moraes do livro intitulado Antologia Poética:
O RIO
Uma gota de chuva a mais,
E o ventre grávido estremeceu.
Da terra através de antigos sedimentos,
rochas ignoradas,
Ouro, carvão, ferro e mármore.
Um fio cristalino distante milênios,
Partiu fragilmente,
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
Um rio nasceu.
III.III. O ELEMENTO FOGO
“Pedi e vos será dado;
Buscai e achareis;
Batei e vos será aberto”.
(Lucas 11: 9)
Deparei-me, nesta figura, com a imagem do xamã e um animal de poder, a águia. Numa atitude de receptividade, abertura, o xamã invoca as forças sagradas. No vale, as águas da nascente correm tranqüilas em direção ao oceano. A imagem sugere liberdade; amplitude de visão, conexão e inteireza, bem como a presença de energias cósmicas em resposta a seus apelos e preces.
Essa imagem do masculino numa invocação de energias sagradas lembra-me o conceito de Jung quando fala do supraordinário Si-mesmo, que designa enquanto conceito, “designa o âmbitotal de todos os fenômenos psíquicos no homem” (6, par. 902).
Parece que a autêntica experiência do sagrado se dá como numinoso, proporcionando ao sujeito conhecimento direto do poder sobrenatural divino. Jung tomou emprestada de Rudolf Otto a palavra mysterium tremendum para explicar a experiência subjetiva do numem, que Otto dizia produzir reações pessoais de terror, poder superior, influxo de energia, consciência da presença do “totalmente outro”, e também fascinação (OTTO, 1923, p. 16). Jung sabia que essas reações humanas eram a presença da imagem de Deus, um símbolo do Si-mesmo e que cada arquétipo estava essencialmente além da representação.
Retornando à imagem, é sugerido a mim o homem solitário, que tem como luz na escuridão o raio e o trovão, isolado da corrente dos humores, preconceitos e desejos coletivos, reduzindo ao silêncio a cacofonia da coletividade vociferante em torno de si, a fim de ouvir e entender a harmonia hierárquica das esferas; sugere-me que ele cria a luz, cria o silêncio e cria a certeza. O manto é azul. Conforme o dicionário de símbolos de Chevalier:
O azul é a mais profunda das cores; nele, o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpétua fuga da cor. O azul é a mais imaterial das cores: a natureza o apresenta geralmente feito apenas de transparência, i.e., de vazio acumulado, vazio de ar, vazio de água, vazio do cristal e do diamante. O vazio é exato, puro e frio. O azul é a mais fria das cores e, em seu valor absoluto, a mais pura, à exceção do vazio total do branco neutro. O conjunto de suas aplicações simbólicas depende dessas qualidades fundamentais. (…) imóvel, o azul resolve em si mesmo as contradições, as alternâncias – tal como a do dia e da noite – que dão ritmo à vida humana. Impávido, indiferente, não estando em nenhum outro lugar a não ser em si mesmo, o azul não é deste mundo; sugere uma idéia de eternidade tranqüila e altaneira, que é sobre-humana – ou inumana. Seu movimento, para um pintor como Kandinsky, é a um só tempo movimento de afastamento do homem e movimento dirigido unicamente para seu próprio centro que, no entanto, atrai o homem para o infinito e desperta-lhe um desejo de pureza e uma sede de sobrenatural. (1997, p. 107).
Penso que a natureza tem horror ao vazio, mas a contraverdade espiritual é que o espírito tem horror ao cheio, portanto, é preciso criar um vazio natural – o que é feito pela renúncia – para que o espiritual se manifeste, fazer silêncio profundo dos desejos, da imaginação, da memória e do pensamento discursivo.
Essa imagem sugere uma completude, uma totalidade, em que os quatro elementos se fazem presentes: terra, fogo (raio), ar e água. Quanto à imagem da águia, sabemos que os antigos rituais de mistério vinham sempre ligados a divindades psicopompas. No xamanismo, a águia faz parte do quatérnio (águia, lobo, búfalo e urso).
III. IV. O ELEMENTO TERRA
“O homem tem uma alma e…”.
Há um tesouro enterrado no campo”.
(C. G. Jung)
Vislumbrei a imagem como um templo na ordem natural do cosmo, um duplo círculo. O primeiro círculo é de robustos troncos, levemente espelhados pelos raios de sol, com galhadas carregadas de frutos e fortemente enraizados na terra. O segundo círculo é feito de pedras, pelas mãos do xamã. Tem um contexto ritualístico. Em postura de meditação, ele reverencia o fogo, símbolo de transformação e purificação. No Segredo da Flor de Ouro lê-se:
Mestre Lü Dsu disse: Comparado com o céu e a terra, o homem é como o inseto chamado efêmera. Mas comparado com o grande sentido, céu e terra não são mais do que uma bolha de ar e uma sombra. Só o espírito originário e o verdadeiro ser vencem tempo e espaço. A força da semente, tal como o céu e a terra, está submetida à caducidade, mas o espírito originário ultrapassa as diferenças polares. Dele deriva a existência do céu e da terra. Se os discípulos conseguirem alcançar o espírito originário, vencem as oposições polares de luz e obscuridade e não permanecem mais nos três mundos. No entanto, só quem olhou o ser em sua face originária é capaz disto. (JUNG e WILHELM, 1987, p. 100).
Transcrevi essa citação mediante reflexões sobre a imagem, pois na prática xamânica bem como na analítica, o que buscamos é ultrapassar as polaridades, mas, tendo consciência da necessidade de conjunção e integração delas. Fazemos parte do círculo maior; a experiência da dupla natureza do homem não é desconhecida nossa, algo transcende nossa compreensão, mas precisamos reconstruí-lo em margem menor, pois somente a partir disso podemos integrar o conhecimento do espírito originário. Citando ainda o mesmo texto, Jung e Wilhelm afirmam:
O caminho para o Elixir da Vida reconhece como a mais alta magia a água-semente, o fogo-espírito e a terra-pensamento, todos os três. O que é a água-semente? Uma força (eros) una e verdadeira do céu primeiro. O fogo-espírito é a luz (logos). A terra-pensamento é o coração celeste da morada do meio (intuição). Usamos o fogo-espírito para agir, a terra-pensamento como substância e a água-semente como fundamento. (ibid., p. 101).
O Eros, enquanto eterno desejo da alma de estar em conexão com a fecundidade das coisas vivas, está contido nas emoções e no mistério do amor: já o logos, seu significado mais antigo é: “o princípio ativo por trás do pensamento e da razão humanos” (STEIN, 1999, p. 156). Ou seja, um diálogo entre a consciência e os poderes transpessoais são as expressões vivas para esse processo.
Retornando à imagem, a maioria das árvores sagradas e rituais que são encontradas na história das religiões não passa de réplica, ou de cópia imperfeita do arquétipo exemplar, que é a Árvore do mundo, quer dizer, supõe-se que todas as árvores sagradas se encontram no centro do mundo e todas as árvores rituais, que se consagram antes ou durante cerimônias religiosas, são como que magicamente projetadas no centro do mundo. A árvore xamânica, quando escalada pelo xamã, simboliza a ascensão aos céus. Há um número considerável de mitos que fala de uma árvore, uma corda, um fio de aranha ou de uma escada que liga a terra aos céus.
Como percebi um duplo círculo ou duplo centro na figura, co-relaciono com o mandala, já que sua função pode ser considerada pelo menos dupla, tal como a do labirinto. Por um lado, a inserção num mandala desenhado no chão equivale a um ritual de iniciação; por outro lado, o mandala “defende” o neófito de todas as forças exteriores que podem ser nocivas e ajuda-o, ao mesmo tempo, a concentrar-se, a encontrar o seu próprio centro. Mais explicações sobre o mandala serão dadas em capítulo posterior.
A primeira associação que fiz com a figura que intitulei de elemento terra foi com a videira. Vi as vinhas na gravura, mas meu pensamento racional interviu e pensei que não fazia sentido. Retomo aqui essa primeira associação. No Evangelho de João, Cristo diz de si mesmo:
“Eu sou a videira e meu pai é o agricultor.
Todos os ramos que não derem fruto em mim
Ele os tirará e todos os ramos que derem fruto
Ele os limpará, para que dêem mais fruto…
Eu sou a videira,
Vós sois os ramos.”
(João 15:1-5).
A vinha na simbólica bíblica é a árvore da vida. E nossa vinha é parte do universo que nos foi confiado. A vinha é o corpo, o mental, as emoções, as afeições.
Assim se pronuncia Chevalier:
No mandeísmo, o vinho é a incorporação da luz, da sabedoria e da pureza. O arquétipo do vinho encontra-se no mundo celeste. A videira arquétipo, é composta de água no interior, sua folhagem é formada de espíritos da luz e seus nós são grãos de luz. A videira é considerada uma árvore cósmica, pois envolve os céus, e os bagos da uva são as estrelas. (1997, p. 955).
Para mim, isso significa que o homem, mesmo na sua distância existencial de Deus e nas distorções resultantes de sua humanidade, nunca perde a conexão essencial com o sagrado, pois ele continua enraizado na matriz divina, de onde procedeu para entrar na criação.
III.V. TRANSCENDÊNCIA
“A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto…
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Ninguém jamais se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.”
(Fernando Pessoa)
Para mim essa imagem foi vivida com um impacto, a finitude do corpo, uma tênue linha entre o corpo físico e o espírito, o dia e a noite, o consciente e o inconsciente. O que aparece como divisão de mundos sugere, na verdade, uma inteireza, um eterno continuum.
Consentir na morte é aceitar a solidão, o anonimato. É juntar terra e céu, com discernimento, sem mistura, sem divisão. A morte é alvo e portal, é ponto de chegada e de partida, pois a vida só se torna real quando é delineada pela morte.
O que chama a atenção na imagem são os olhos da figura, que não me parecem reais. Não mais deste mundo. Sugere o olhar que tudo vê além da realidade física.
Em Mysterium Coniunctionis lê-se:
Por fim apareça na obra “aquela cor azul ou celeste, tão ardentemente desejada, a qual pela atuação curativa de seu brilho não ofusca nem embota a vista de quem olha, como vemos na irradiação do sol exterior. Antes até, aguça e fortalece esta, e não mata o homem por seu olhar, como o basilisco; antes até, chama ela de volta os que já estão próximos da morte pelo seu próprio sangue derramado e lhes devolve a integridade anterior da vida, como o pelicano” o qual por meio de seu sangue reanima seus filhotes mortos. (JUNG, 14/1, par. 11).
Como não falar aqui do sacrifício tão necessário ao processo de transformação, em que sacrificado e sacrificador são um só. Corpo e espírito: essa idéia da união entre a prima e a última matéria, que busca extrair ou tornar manifesta sua essência espiritual. Como é difícil ter uma abordagem puramente psicológica das energias numinosas da psique!
Jung sempre buscou ir além das fronteiras do conhecido. Como o arquétipo per se é psicóide e não se encontra rigorosamente dentro dos limites fixados pelas fronteiras da psique, serve de ponte entre os mundos interior e exterior, ele decompõe a dicotomia sujeito-objeto, tanto que a teoria da sincronicidade de Jung fala da profunda e oculta ordem e unidade entre tudo o que existe, pois aparece como que articulando um único sistema unificado que abrange matéria e espírito e lança uma ponte entre tempo e eternidade.
Sabe-se que a teoria da sincronicidade veio acrescentar à teoria de Jung a noção de que existe um alto grau de continuidade entre a psique e o mundo; a psique não é algo que começa e termina somente no ser humano e em isolamento do cosmo. Há uma dimensão na qual a psique e o mundo interagem intimamente e se refletem reciprocamente.
Os fenômenos sincrônicos manifestam-se com muito maior freqüência quando a psique está funcionando em nível menos consciente, como nos sonhos ou devaneios. O xamã não trabalha no escuro? Não é com os olhos vendados que ele busca um contato com o “outro” mundo? Temos, então, no ritual de cura do xamanismo dois acontecimentos: um físico e outro psíquico. Do lado físico, o xamã deita-se ao lado do paciente sobre uma esteira no chão, segura sua mão e pratica respiração com o paciente. O ambiente fica em penumbra. Do lado psíquico, pode ser a imagem interna do corpo do paciente que o xamã visualiza ao fazer o ritual de cura; ele “percorre” todo o corpo do paciente em busca da alma perdida ou, ainda por meio de um pensamento ou de uma intuição.
Lembremos que o xamã está num abaissement du niveau mental uma espécie de obnubilação da consciência, o que facilita a ativação de complexos e arquétipos. Trago aqui uma experiência vivida: Ouvi um barulho grande na porta de vidro de minha sala. Não sem susto, fui ver o que era. Um sabiá veio numa velocidade enorme contra o vidro da porta, onde eu trabalhava. Com o choque ele caiu no chão, perninhas para cima. Imóvel. Corri e peguei-o. Ele parecia estar morrendo. Senti uma dor imensa ao vê-lo assim. Mal sentia o coraçãozinho dele. Vários pensamentos passaram pela minha cabeça. Qual o sentido? Que sincronicidade! Justamente enquanto eu escrevia sobre a morte, sobre a sincronicidade. Senti um amor enorme pelo pássaro. Comecei a falar com ele. Pedi ao Grande Espírito (Wakan Tanka) que o salvasse da dor. Fiquei ali, com ele nas minhas mãos. Foi então que ele começou a se recuperar. Mexeu a cabeça e começou a voltar a si. Foi tomando força e, depois de um tempo, sendo que eu o estava segurando com as mãos abertas, ele piou e alçou vôo. Imediatamente mandei um e-mail para meu orientador, que me retornou com essa explicação:
Mais importante do que só teorizar, é vivenciar. Vivenciar a transição da vida para a morte e da morte de volta para a vida, então nem se fala. E haja sincronicidade: depois de ler o seu e-mail e começar a respondê-lo, parei para fazer algumas coisas, entre elas, jantar e, em seguida, antes de voltar para o escritório, assistir a um capítulo da série Lost que tinha em DVD: o que passa é uma cena em que a família está reunida na sala e a mãe do garoto sente-se mal. Nisso um beija-flor bate no vidro e cai morto no chão, associando-se o fato com a mãe que viria a morrer em poucos dias por um problema no sangue. Pode parecer tétrico, mas isso fez com que o garoto viesse a se reaproximar do pai que essa mãe afastou do filho desde cedo. Não sei se você assistiu e se lembra desse episódio. Não deixa de estar ligado a um renascimento também. Bom, nós podemos dizer que tem alguma coisa a ver com a sua monografia que está renascendo também, não? (Recebido por: gmail.com, data: 22/06/2007 12h42min).
Depois desse fenômeno sincrônico, não consegui mais desenvolver o texto referente à imagem, a não ser trazer uma citação do livro: O Mito do Significado lê-se:
“O que farás, Deus, se eu morrer?
Tua taça quebrou? (Essa taça sou eu).
Tua bebida estragou-se? (Essa bebida sou eu).
Sou Teu ofício e Tua roupagem,
Comigo perde-se o Teu sentido.”
(JAFFÉ, 1983, p. 146).
CAPÍTULO IV
RODA DA CURA – UM RITO DO XAMANISMO.
“Sê, para teu inimigo, o que é a
Terra que recompensa com fartas
Colheitas o lavrador que lhe
rasga o seio.
Sê, para aquele que te aflige,
O que é o sândalo, que perfuma
O machado do lenhador
Que o corta”.
(Vedas)
A roda da cura também é uma característica fundamental do xamanismo, com base nisso procura-se desenvolver o tema neste capítulo numa abordagem teórica juntamente com a experiência vivida em grupos xamânicos.
Todo ser humano tende, mesmo inconscientemente, para seu próprio centro, o que lhe confere a realidade integral, a sacralidade. Os nativos reconhecem, por exemplo, o círculo como o principal símbolo para o entendimento dos mistérios da vida. Observaram que ele estava impresso em toda a natureza.
No livro Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo, Jung fala sobre o arquétipo do Si-mesmo: “Deus é um círculo cujo centro está em toda parte e cuja periferia não está em lugar algum” (9/2, par. 237). Os círculos formam, naturalmente, um mandala, no qual a periferia coincide paradoxalmente com o centro.
O homem olha o mundo através dos olhos, cujo formato é o de um círculo. A terra, a lua, o sol, os planetas, são todos circulares. O nascer e o pôr do sol acompanham um movimento circular. As estações formam um círculo. Os pássaros constroem seus ninhos em círculos; animais demarcam seus territórios em círculos; as cabanas, as ocas são circulares.
Os povos antigos consideravam a viagem circular da terra ao redor do sol uma roda, representando o eterno ciclo do nascimento e do desabrochar, crescimento e florescimento, maturidade e frutificação, envelhecimento e decadência, morte e decomposição e, novamente, renascimento, refletido na vida humana e na natureza.
Uma das chaves da sabedoria de muitas culturas xamânicas é o conceito da roda sagrada, conhecido no xamanismo como círculo da vida. Da mesma maneira que há muitas culturas diferentes que respeitam a roda sagrada, assim também há muitos símbolos associados a ela, o mandala tibetano, a roda medicinal, o pentagrama, a cruz céltica, a roda do sol, o sol espiral, e muitos outros. Esses símbolos procuram fazer uma conexão com o sagrado para aqueles que meditam e se conectam com eles.
Bachelard nos apresenta reflexões sobre todos os compartimentos que têm a finalidade de envolver para proteger. Ele diz:
Com os ninhos, com as conchas, queremos simplesmente mostrar que quando a vida se abriga, se protege, se cobre, se oculta, a imaginação vive a proteção em todas as nuanças (…). Nesse refúgio, a vida concentra-se, prepara-se, transforma-se. (1989, p. 56).
A roda da cura é um símbolo nativo dos ciclos da vida. Se observarmos a imagem da teia, por exemplo, ela representa profundamente a estrutura da sociedade xamânica. A aranha tece todos os seus fios a partir do interior de seu corpo; portanto, todas as coisas do lado de fora lhe estão ligadas. As tramas circulares são pegajosas, mas as que conduzem ao centro, não.
A roda fala de um ciclo temporal, que se observa nas repetições de experiências na vida. Ela é um símbolo arquetípico; o tempo cíclico é arquetípico, representa desde nosso nascimento e morte, até a contração e a expansão do universo.
Jung diz que o processo de crescimento interno está dentro de um tempo cíclico e que não se pode pular etapas. Ao estudar o mandala, nota que a própria expressão do símbolo produz um efeito unificador, levando à inconsciência interna, que é a fonte e meta do psiquismo. O símbolo é um fenômeno em evolução e no momento em que surge, age e organiza um sentido que tem todas as características de uma evidência. Jung afirma ainda que algo já conhecido não será um símbolo vivo, pois a redução do significado a uma interpretação coletiva estanca a numinosidade, que é a aptidão para apoderar-se do consciente e trazer um sentido novo à vida.
A noção de numinoso tem lugar central na visão junguiana da experiência espiritual e no processo de individuação. O numinoso marca na alma o impacto da relação com a transcendência, que ativa grande número de emoções, conscientes ou inconscientes, podendo provocar assim uma transformação.
Um sagrado horizonte divide a Terra e o Céu. Nos rituais xamânicos, dá-se ao mundo uma dimensão sagrada, consagram-se as quatro direções na roda, as quatro estações, os quatro elementos. Acompanha-se e celebra-se a movimentação das luminárias – o Sol, a Lua, e as Estrelas, buscando a sua eterna renovação, ciclo que é conhecido como a roda do ano, a roda da vida ou roda medicinal.
“O que foi semente faz-se planta, o que foi planta faz-se grão, o que foi grão (…)
dá o pão, e o pão o liquido amniótico, e este o germe, o embrião, o homem e o cadáver
dá a terra e a pedra, e todas as formas da natureza (…).
A matéria é pois infrangível, tal como a forma substancial das coisas, a alma,
é indestrutível (…)”.
(D. A. Freher, Paradoxa Emblemata, manuscrito, séc. XVIII)
A roda participa da perfeição sugerida pelo círculo com certa valência de imperfeição. Os simbolismos mais difundidos da roda são ao mesmo tempo de sua estrutura radial e de seu movimento.
E é da roda da cura na tradição xamânica dos Videntes do Sul, um grupo de tradição xamânica, que se abordará o tema das quatro direções. Trata-se de um espaço sagrado, construído ritualmente. Ele é materializado com pedras pequenas ou grandes, e o centro constitui o ponto de intersecção das direções. Ao adentrar na roda, torna-se possível uma ruptura de nível e, ao mesmo tempo, uma comunicação entre as regiões cósmicas: céu, terra e inferno. Conta-se que a criação do homem, réplica da cosmologia, teve semelhante lugar num ponto central, no centro do mundo.
As direções na roda da cura representam caminhos de transformação, e pode-se fazer analogias com o processo de individuação. Veja-se:
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio Si-mesmo. Podemos pois traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se Si-mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do Si-mesmo’ (Selbstverwirklichung). (JUNG, 7, par. 266).
NORTE
A direção do norte na roda da cura simboliza o compartilhar da sabedoria, viver livre do julgamento. Precisa-se rever o conhecimento adquirido e saber compartilhar o que é possível e o que pode ser experimentado.
No processo de individuação a conquista da alma é, na realidade, um opus de paciência, de abnegação e de entrega. O caminho da sabedoria é a integração dos opostos e a busca da totalidade. Em A Prática da Psicoterapia tem-se a seguinte explicação sobre a integração dos opostos ou coniunctio: “A coniunctio diferencia-se dessa, não enquanto mecanismo, mas pelo fato de não ser um estado inicial natural, mas o produto de um processo ou a meta de um esforço” (JUNG, 16, par. 462).
OESTE
A direção do oeste na roda da cura xamânica é símbolo de introspecção e escutar. O sol se põe no oeste.
No processo de análise, quando se identifica o conflito e se o transforma, resgata-se o sentido da vida, isto é, necessita-se trazer à consciência os complexos inconscientes. Isso acontece por meio de uma escuta elaborada por parte do analista e o analisando, bem como um compartilhar do conhecimento. Nesse processo Jung diz que: “Deve ser levada a sério à eventualidade de a personalidade de o paciente ultrapassar a do médico em inteligência, disposição, grandeza e profundidade” (16, par. 11). Quanto à assimilação dos complexos é importante que:
Junto à sua compreensão em termos intelectuais, que os afetos nele condensados sejam abreagidos, isto é, exteriorizem-se através de descargas emocionais. Os primitivos davam expressão a choques e traumas emocionais por meio de danças e cantos repetidos inúmeras vezes até que se sentissem purgados desses afetos. (SILVEIRA, 1981, p. 37).
Na tradição xamânica encontra-se na direção oeste o arquétipo da cura do sapo. Faz-se necessário comentar que se reconhece no xamanismo a imagem dos animais como arquétipos por serem animais de poder, animais que, com seu comportamento, ensinam lições aos homens. Segundo a mesma, o sapo ensina a limpar o que é velho, o indivíduo precisa re-conhecer pensamentos, comportamentos e sentimentos ultrapassados, bem como faz parte dessa direção, o arquétipo da cura do morcego que, segundo a tradição, ensina a respeitar o processo de renascimento, o qual não é um processo necessariamente observável e pode escapar aos sentidos. É o ficar com a cabeça para baixo do morcego que sugere, segundo a tradição, mudança de tudo antes de se renascer.
No processo de individuação pode-se dizer que é um renascimento quanto ao modo egóico de ser, onde se transformam velhos padrões de comportamento, buscando-se novos valores. Em Ego e Arquétipo lê-se:
Há um constante encontro com um processo de duas faces. De um lado, vemo-nos expostos aos encontros com a realidade das coisas que a vida nos oferece; encontros que contradizem, de forma constante, as suposições inconscientes do ego. É por meio deste processo que o ego cresce e se separa de sua identidade inconsciente com o Si-mesmo. Ao mesmo tempo, devemos experimentar uma reunião recorrente entre ego e o Si-mesmo para que seja mantida a integridade da nossa personalidade total; se isso não ocorrer, há um verdadeiro perigo de que, conforme o ego vai se separando do Si-mesmo, o vínculo vital que os liga seja danificado. Se isso ocorrer de forma ampla, estaremos alienados do nosso próprio íntimo, estando o terreno preparado para o surgimento de enfermidades de caráter psicológico. (EDINGER, 1995, p. 34).
Essa postura do morcego, de cabeça para baixo, pode remeter a associações tais como: a inversão da palavra lived (vivido), em inglês, que, quando escrita de trás para frente, é devil (demônio) ou viled (velado) e, ainda, live (viver) também forma evil (mal) ou veil (véu), que representam também esse processo de dupla face.
Mas o dom do equilíbrio na direção oeste está contido ainda, segundo a tradição, nas lições arquetípicas fornecidas pela cura da lontra, que ensina buscar-se equilíbrio entre o trabalho e o lúdico, o dar e o receber.
SUL
Esta direção sugere simbolicamente para a tradição xamânica, o retorno à confiança e à inocência. A fé é testada ou provada. Necessita-se trabalhar padrões negativos do comportamento humano, pois à medida que esses padrões vão sendo transformados, acontece uma sincronicidade entre a energia do universo e o coração do homem. Na tradição dos videntes do sul, esse arquétipo é chamado de a sincronicidade da cura do galo silvestre devido ao vôo espiralado do galo silvestre.
Faz-se aqui analogia com o processo de individuação que sugere uma circum-ambulatio, quer dizer, o processo de tornar-se um indivíduo não dividido é, metaforicamente falando, espiralado. A ambulação nos ritos ocorre geralmente guardando o centro à direita, isto é, no sentido do movimento aparente do sol. A roda como símbolo expressa com maior eloqüência um movimento concêntrico e progressivo em busca do conhecimento do Si-mesmo.
Na tradição xamânica o centro é uma dessas estruturas simbólicas graças às quais o homem pode apreender o mistério de uma vida divina futura.
O reino dos céus é como uma semente de mostarda que um homem pega e semeia no seu campo. Embora ela seja a menor de todas as sementes, quando cresce fica maior que as outras plantas. E se torna uma arvore, de modo que os pássaros do céu fazem ninhos em seus ramos. (Mateus 13: 31-32).
LESTE
Esta é a direção do nascer do sol. A busca nesta direção, dentro da roda da cura, é de clareza e iluminação de propósitos. Simboliza um novo começo. Precisa-se romper novamente com velhos padrões de comportamento para ir além do véu de maia e ter-se um outro nível de consciência. No livro A Vida Simbólica lê-se:
A individuação retira a pessoa da conformidade pessoal e, com isso, da coletividade. Esta é a culpa que o individuado deixa para o mundo e que precisa tentar resgatar. Em lugar de si mesmo precisa pagar um resgate, isto é, precisa apresentar valores que sejam um equivalente de sua ausência na esfera coletiva e pessoal. Sem esta produção de valores a individuação definitiva é imoral e, mais do que isso, é suicida. Quem não souber produzir valores deveria sacrificar-se conscientemente ao espírito da conformidade coletiva. (JUNG, 18/2, par. 1095).
Essa direção na roda da cura representa simbolicamente o arquétipo da cura do coiote, pois o coiote na tradição ensina como unir o sagrado com o profano, atingindo o equilíbrio.
No processo de individuação, para atingir esse equilíbrio se faz necessário primeiro ter o desejo de servir ao Si-mesmo, num segundo momento tomar a decisão de servir e finalmente com devoção pessoal assumir o compromisso de integração com o grande centro.
Diferencia-se, aqui, na roda da cura xamânica, o centro e a direção acima e abaixo da roda, o que no total forma sete direções, que são chamados na tradição dos Videntes do Sul de os sete caminhos da transformação humana.
Simbolicamente, o sete pode estar representando os sete céus planetários ou sete níveis celestes, os quais o iniciado percorre, sem se esquecer de que a roda estará representando o centro do mundo. No livro Alquimia e Misticismo lê-se:
Se eu vos quisesse falar do Divino (…) nas suas profundezas mais secretas, dir-vos-ia: é como se diante de vós estivesse uma roda com sete rodas que se interpenetram (…). São os sete espíritos de Deus. Engendram-se uns aos outros, e é como se, quando um faz girar uma roda, houvesse sete rodas embutidas umas nas outras, e uma delas rodasse sempre de modo diferente das outras, e os aros das sete rodas se encaixassem uns nos outros formando uma esfera. E é como se os sete cubos fulcrais constituísse um único cubo que, ao rodar, está em toda parte, e as rodas engendram sem cessar o mesmo cubo, e o cubo engendra sem cessar os mesmos raios das sete rodas. (ROOB, 1997, p. 667).
CENTRO
Eis o ponto central de repouso na roda da cura. A palavra maia que designa o centro do universo, o ponto zero, o ponto de equilíbrio, o grande vazio da divina neutralidade é Hunab K’u. Por meio desse ponto central vem a sabedoria de todos os caminhos para o corpo, mente e espírito. É o agora com entrada no passado e no futuro, nas extensões vivas da grande chama do amor incondicional que pode ser o manto de cura feito através de matéria sólida. Ele se torna vivo e Goethe poetisa o amor assim:
“O que o homem não sabe
Ou em que nem pensou,
Caminha de noite
Pelo labirinto do coração”.
(Apud, LECLERC, 1990, p. 90).
Estar no centro significa viver a vida com graça ilimitada, percepções aumentadas, presença aterrada e compaixão, e assim a continuação da evolução. O centro pode ser representado pela tartaruga, que traz um simbolismo fortíssimo em todas as tradições culturais.
Segundo Chevalier :
Macho e fêmea, humano e cósmico, o simbolismo da tartaruga estende-se a todos os domínios do imaginário (…) é uma representação do universo, constitui-se por si mesma uma cosmografia e cosmóforo, carregador do mundo (…) símbolo da matéria da arte, o melhor dos remédios. (1997, p. 868).
Reporta-se aqui a uma experiência pessoal; a roda da cura feita no jardim de minha casa. Alguns anos atrás, eu trouxe pedras de um rio da serra do mar, com a intenção de colocar no jardim tão somente para estética. As pedras ficaram nos cantos do jardim sem uso por muito tempo. Quando resolvi criar a roda da cura seguindo a tradição xamânica, lembrei-me das pedras e fui procurá-las. Algumas estavam meio soterradas pela terra. Resgatei-as e construí a roda de nove direções, incluindo a direção do centro. Ritualizei as direções conforme a tradição e por último coloquei a pedra do centro. Para minha admiração, a pedra do centro tinha a forma de uma tartaruga. Eis a sincronicidade, o inconsciente escolhe e nossas atitudes concretizam.
DIREÇÃO ACIMA DA RODA
Na roda da cura essa direção representa simbolicamente a natureza humana que busca o céu, a espiritualidade, o intangível e o desconhecido. Por meio dessa direção busca-se conexão com o sentido de orientação interior. Requer fé profunda e confiança no processo pessoal, bem como na ligação com o grande mistério. Tem-se aqui, segundo a tradição, o arquétipo da cura do lagarto, que representa o sonhador e guardião dos sonhos, uma nova perspectiva.
No processo de individuação faz-se necessário confrontar com a hybris, pois o grande perigo psíquico ligado à individuação, o tornar-se quem se é, reside na identificação da consciência do eu com o Si-mesmo. Isso produz uma inflação que ameaça dissolver a consciência.
Na cultura primitiva há em cada xamã uma sensibilidade mais fina em relação aos perigos da alma (fascínio, enfeitiçamento, perda da alma, possessão), que não perderam certo instinto anímico para os processos de fundo, quase imperceptíveis, mas de vital importância, o que já não se pode afirmar acerca da cultura moderna.
DIREÇÃO ABAIXO DA RODA
Representa simbolicamente a ligação do homem com a terra. Utiliza-se o conhecimento obtido ao longo do processo de vida e se permanece ancorado na realidade física, enquanto o corpo detecta inexplicáveis ondas de energia.
Fazem-se associações das quatro direções da roda da cura com as quatro funções psíquicas descritas por Jung, que são o pensamento, o sentimento, a intuição e a sensação, pois essas funções preparam para lidar com as impressões que se recebe do exterior e do interior.
Em Jung: vida e obra, lê-se:
São quatro as funções de adaptação, espécie de quatro pontos cardeais que a consciência usa para fazer o reconhecimento do mundo exterior e orientar-se: sensação, pensamento, sentimento e intuição. A sensação constata a presença das coisas que nos cercam e é responsável pela adaptação do individuo à realidade objetiva. O pensamento esclarece o que significam os objetos. Julga, classifica, discrimina uma coisa de outra. O sentimento faz a estimativa dos objetos. Decide do valor que tem para nós. Estabelece julgamentos como o pensamento, mas a sua lógica é toda diferente. É a lógica do coração. A intuição é uma percepção via inconsciente. É apreensão da atmosfera onde se movem os objetos, de onde vêm e qual a possível curso de seu desenvolvimento. (SILVEIRA, 1981, p. 54).
É por meio das funções psíquicas que se compreende e se assimila a experiência de vida.
A roda da cura é um mandala, e o mais importante do símbolo do mandala não é se está presente na adoração primitiva do sol ou na religião moderna, em mitos, sonhos, mas porque indica sempre o mais importante aspecto da vida que é a sua extrema e integral totalização.
Quando formada a roda da cura no solo, baseada num mandala, a roda é uma projeção da imagem arquetípica do interior do inconsciente humano sobre o mundo exterior. Torna-se símbolo da unidade psíquica e exerce influência específica sobre quem entra naquele lugar. Dá forma e expressão a alguma coisa que ainda não existe, algo de novo e único. Pode-se dizer que é um símbolo de proteção assegurada dentro de seus limites. O meio é o centro, onde jaz o tesouro, onde se dá a incubação, o processo do sacrifício ou, ainda, a transformação. Quando dividido por uma linha vertical, o círculo pode representar a força receptiva, o princípio feminino, sem largura ou profundidade. Quando dividido por uma linha horizontal, ele indica a divisão do espaço infinito na ordem para prover a vida no tempo. A fusão das duas linhas no círculo forma um terceiro, que é uma cruz circundada, representando tempo e espaço.
A cruz, quando contida dentro de um círculo, é um símbolo do ilimitado, mudando a realidade das coisas, perpetuando o espírito. Pode representar também as quatro expressões do poder cósmico fluindo para sua fonte, ou quatro elementos, quatro corpos, e muito mais. A psique é constituída de duas metades incongruentes que, juntas, formam um todo.
Sabe-se que a dialética do sagrado tende a repetir indefinidamente uma série de arquétipos. Seria certamente surpreendente se essas realidades cósmicas, pela própria maneira como são celebradas no xamanismo, pela riqueza afetiva e onírica de que estão impregnadas, não constituíssem, por si mesmas, uma espécie de linguagem: a linguagem da íntima experiência do sagrado.
Na Psicologia Analítica os arquétipos são como protótipos de conjuntos simbólicos, profundamente gravados no inconsciente, que dele constituem uma forma de estrutura. Na alma humana, são como modelos pré-formados, ordenados e ordenadores, isto é, conjuntos representativos e emotivos estruturados, dotados de um dinamismo. Os arquétipos baseiam-se nas raízes míticas mais profundas da humanidade e manifestam-se como estruturas psíquicas universais, inatas ou herdadas, como uma consciência coletiva; exprimem-se através de símbolos específicos, carregados de uma grande potencia energética. Têm um papel unificador considerável na evolução da personalidade. As estruturas arquetípicas são constantes e comuns à humanidade, ao contrário das imagens aparentes que podem variar de acordo com a época, a etnia e o indivíduo. É o símbolo arquetípico que faz a ligação entre o universal e o individual.
Algumas imagens arquetípicas são representadas por estruturas geométricas, como o círculo, o quadrado e a estrela, que são ubíquas e freqüentes e representam o Si-mesmo. Como na poética da salvação, precisa-se ter amplo olhar sobre a psique:
A alma humana – qualquer que seja, em seus sonhos, mesmo os mais ousados ou mais sutis, sua relação com o sistema econômico e social – ultrapassa o ambiente humano, no imenso ambiente cósmico. O contato com o universo faz vibrarem nela forças misteriosas e profundas, forças da vida eterna atuante, que precedeu as sociedades humanas e as ultrapassará. (JAURÉS, 1901, p. 12).
Vale dizer, o manifestar-se do sagrado no cosmos e o manifestar-se do sagrado na psique é a mesma coisa: explora-se a própria sacralidade, explorando a sacralidade do mundo.
CONCLUSÃO
O xamanismo, segundo Eliade (1989), representa o mais difundido e antigo sistema metodológico de tratamento da mente e do corpo que a humanidade conheceu. Os dados arqueológicos e etnológicos dizem que o método tem pelo menos 30 mil anos, com evidências vívidas nas pinturas das cavernas, principalmente as do sul da França.
O xamanismo foi a primeira manifestação espiritual do ser humano. Segundo a história das religiões, mescla-se a todas as fés e crenças, atingindo níveis profundos de nossa memória ancestral. É anterior à religião organizada, possuindo sua própria cosmologia e simbolismo do universo.
A palavra xamã (saman), na língua dos povos Tungusc, da região das montanhas Altai na Sibéria, foi adotada por antropólogos para designar pessoas de uma grande variedade de culturas não-ocidentais, que antes eram conhecidos pelos termos de bruxo, feiticeiro, curandeiro, mago, mágico e vidente, mas que descreve, na verdade, alguém que, através do transe e do êxtase, ingressa em outro estado de consciência. A palavra xamã pode ser traduzida também como “queimar, atear fogo”, “aquele que está agitado, erguido”, associado à raiz indo-européia, significando “saber” ou “aquecer a si mesmo”.
Enquanto homens “civilizados”, é-se invadido por sentimentos estranhos diante dos poderes invisíveis e arbitrários, pois há pouco se escapou do temível mundo das superstições e tem-se uma imagem mais racional do mundo, pois se obedece a leis racionais. O primitivo vive num mundo diferente, seus pressupostos são diferentes, o que se torna um enigma difícil de solucionar.
Mediante várias leituras, chega-se à conclusão de que a verdadeira essência nessa técnica é o estado de consciência xamânica, já que, em vez de se voltar para a racionalidade, o xamã volta-se para as experiências internas, recorrendo às memórias sensoriais e simbolismo, utilizando na prática o tambor que produz repercussão no sistema nervoso central, o jejum, a incubação dos sonhos, chocalhos e danças.
No xamanismo considera-se a doença como originária do mundo espiritual. A maior atenção não é dada aos sintomas ou à doença em si, mas à perda de poder pessoal que permitiu a invasão da doença.
Há duas abordagens básicas para a cura: restaurar os poderes benéficos e retirar os maléficos. A doença é então concebida como a perda do poder pessoal, da alma, e o tratamento é o restabelecimento desse poder, restaurar o equilíbrio.
Jung diz que se a cura significa tornar sadio um doente, então cura significa transformação. Ao que parece, não são os instrumentos e rituais que curam, mas o poder a eles conferido pela imaginação, pois se supõe ser essa, a maior e mais antiga fonte de cura do mundo. A imagem mental, ou matéria-prima da imaginação, afeta intimamente o corpo, em níveis mundanos e profundos, tem o poder sobre a vida e a morte e desempenha um papel-chave nos aspectos menos dramáticos da vida. Cada vez que se alteram prioridades, muda-se o caminho. Cada vez que se permite usar a imaginação, muda-se a visão da realidade.
Uma das chaves da sabedoria de muitas culturas xamânicas é o conceito da roda sagrada, ou roda da cura, conhecido no xamanismo como círculo da vida. O símbolo é um fenômeno em evolução e, no momento em que surge, age e organiza um sentido que tem todas as características de uma evidência. A roda da cura é um mandala, e o mais importante do símbolo do mandala não é se está presente na adoração primitiva do sol ou na religião moderna, em mitos ou sonhos, mas porque indica sempre o mais importante aspecto da vida, que é a sua extrema e integral totalização.
Sabe-se que a dialética do sagrado tende a repetir indefinidamente uma série de arquétipos. Seria certamente surpreendente se essas realidades cósmicas, pela própria maneira como são celebradas no xamanismo, pela riqueza afetiva e onírica de que estão inconscientemente impregnadas não constituíssem, por si mesmas, uma espécie de linguagem: a linguagem da íntima experiência do sagrado.
É grande a tentação de não ver no xamanismo mais que a expressão de uma visão do mundo por demais simples, por demais estreita e desusada. Para que perder tempo contemplando os quatro elementos fundamentais para os antigos, terra, água, fogo e ar, como se fossem as raízes do ser? E agora que os elementos se tornaram acessíveis e que brevemente não terão mais segredos, como se pode ver neles ainda a coisa “preciosa” que os põe em relação com o sagrado? Se, de fato, o xamanismo não fosse mais que a celebração de um sistema arcaico do mundo, seria muito difícil dar-lhe maior atenção. Poder-se-ia quando muito, admirar seus rituais. Propus-me em mostrar nesse trabalho que o que é expresso no xamanismo é mais uma experiência íntima e espiritual e não só cosmológica. A visão cosmológica aqui é o revestimento de um profundo enfoque simbólico.
Concluo que cada elemento celebrado no xamanismo, tais como o sol, a lua, o fogo, o ar, a água, entre outros, evocam uma realidade ao mesmo tempo muito próxima e muito longínqua, transparente e inesgotável, exterior e íntima; uma realidade que reflete, ao mesmo tempo, um olhar puro e as profundezas insondáveis da alma, cujo sentido é o de uma reconciliação total do homem com o mundo, consigo mesmo e com Deus.
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FILME
QUEM SOMOS NÓS? What the Bleep Does We Know? Produção de William Arntz, Betsy Chasse e Mark. 2006. DVD Vídeo (108min.). [Manaus]: PlayArte.