O Desenvolvimento da Personalidade na Formação Humana – Sonia Lyra

Ano de Publicação: 2005

Ano de Publicação: 2005

O inconsciente é a mãe criadora do consciente. A partir do inconsciente é que se desenvolve a consciência. Há dois caminhos pelos quais surge a consciência. O primeiro é o momento de uma forte tensão emocional, e o segundo caminho é um estado contemplativo no qual as representações se movimentam como as imagens oníricas.

A maioria das impressões surgidas nos primeiros anos de vida se torna rapidamente inconsciente e forma a camada infantil do inconsciente pessoal. O inconsciente pessoal encerra tudo o que foi esquecido ou reprimido ou de qualquer forma se tornou subliminar. Mas no inconsciente podem ser encontrados outros conteúdos, inteiramente estranhos à pessoa, e muitas vezes não apresentam o menor vestígio de uma qualidade pessoal. Material deste tipo é frequentemente encontrado em doentes mentais contribuindo em muito para sua perturbação. Esses materiais estranhos podem aparecer também em nossos sonhos. A esta camada impessoal da alma denominou-se inconsciente coletivo.

Nossa consciência pessoal é como que um edifício erguido sobre o inconsciente coletivo, de cuja existência sequer suspeitamos. Em geral nos sonhos e também em certos tipos de psicoses encontram-se muitas vezes material arquetípico que consiste de imagens e conexos correspondentes aos que existem nos mitos. (Ex. sonho, p. 123 vol. XVII).

Como se dá o desenvolvimento da personalidade e o que é a personalidade é uma questão que requer toda nossa atenção. Falamos comumente de “ser uma personalidade” e de “ter uma personalidade”; em geral o que se quer dizer é que “Pelë” é uma personalidade, o que não quer dizer que “ele” tenha personalidade. São distorções da linguagem que nos confundem. Para que possamos ter personalidade precisamos ser educados e formados para tal. Isto requer que, primeiramente, nossos formadores tenham personalidade. Ninguém pode educar para a personalidade se não tiver, ele mesmo, personalidade. De modo geral como adultos recebemos uma educação defeituosa, o que também aconteceu com nossos formadores e educadores. Da média dos professores não se pode esperar mais que da média dos pais, ou seja, precisamos nos satisfazer com que ofereçam o melhor que podem e isto é o “que podem”. Não é possível exigir das crianças que tenham personalidade, pois isto é um ideal da vida adulta.

Ter personalidade implica uma totalidade psíquica, dotada de decisão, resistência, e força. Por outro lado, em cada adulto, está oculta uma criança em desenvolvimento, até que a personalidade possa completar-se, casos mais raros. O homem de nosso tempo se acha imensamente distante dessa totalidade. O conto de ANDERSEN a respeito das roupas novas do Imperador (do meu livro: Nunca mais quero me sentir vulnerável), retrata o quanto as crianças são perceptivas e não tolas como às vezes se imagina. Tudo aquilo que quisermos mudar nas crianças é melhor examinarmos se não é melhor mudarmos em nós mesmos.

Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade, o que, naturalmente, não pode nem deve ser exigido da criança, uma vez que isso faria com que perdesse sua infantilidade, o que lhe é próprio. Mas, se a criança puder ver isto em um adulto que a eduque, crescerá sendo estimulado por suas realizações. Ninguém pode educar para a personalidade se não tiver personalidade. Atingir a personalidade significa o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado. Não é possível calcular o número de condições que devem ser satisfeitas para que isto aconteça. Envolve o desenvolvimento de aspectos, bio, psico, sociais e espirituais.

Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a melhor possível, a tudo que existe de universal, tudo isto aliado à máxima liberdade de decisão própria. Trata-se da maior de todas as tarefas de um desenvolvimento espiritual. A personalidade se desenvolve no decorrer da vida e somente pela nossa ação e pelo modo através do qual agimos, é que pode ser vislumbrada. De início não sabemos o que está oculto em nós, que feitos sublimes ou que crimes estão contidos em nós, que espécie de bem ou de mal. Ninguém desenvolve sua personalidade porque alguém disse que é isto o que precisa ser feito, a natureza não se deixa impressionar por falatórios. Sem que haja necessidade, nada muda e menos ainda a personalidade. A natureza precisa ser motivada pela coação de acontecimentos internos ou externos. A expressão: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, é válida neste caso como em nenhum outro, pois, o desenvolvimento da personalidade até o seu termo é um carisma ou mesmo uma maldição. Como primeira e inevitável consequência, o indivíduo se separa da massa, que é indeterminada e inconsciente. Isto significa isolamento, o qual não se pode evitar nem com a melhor adaptação; o preço da felicidade decorrente de desenvolvermos nossa personalidade é caro e ninguém pode pagá-lo por nós. Fala-se muito em desenvolvimento da personalidade mas pensa-se pouco nas consequências, as quais podem atemorizar profundamente os espíritos dotados de menos vigor. Como segunda consequência, não menos difícil, indica-se também uma: fidelidade à própria lei, isto é, é preciso obedecer à “voz da consciência”. Requer-se para isto, uma confiança, semelhante àquela que uma pessoa religiosa tem para com Deus. A personalidade jamais poderá desenvolver-se se a pessoa não escolher seu próprio caminho, de maneira consciente e por uma decisão consciente e moral. Portanto, aqui, unem-se, necessidade, consciência, decisão e moral. A escolha do caminho sempre pressupõe que este caminho seja o melhor, os outros caminhos, podem ser convenções, morais, sociais, políticas, filosóficas ou religiosas. O fato de as convenções de algum modo sempre florescerem prova que a maioria esmagadora das pessoas não escolhe seu próprio caminho, mas a convenção, aquilo que é mais conveniente, que criará menos transtornos, que nos fará mais “bem vistos”, e quem sabe, porque não, o caminho mais fácil? Não há um método. É preciso aprender a ouvir a própria consciência.

O empreendimento de desenvolver a personalidade, é, na opinião dos que estão de fora, um risco nada popular e nada simpático, pois implica, de certa forma, viver ao modo do eremita, à margem de. Implica também na coragem de ir se libertando das convenções e de afastar-se dos caminhos largos, seguindo a via estreita, enquanto a massa apega-se a temores, convicções, leis e métodos pré-estabelecidos.

Que impulso é este então, que impulsiona o homem a seguir um caminho para além do comum? Jung denominou-o designação. Esta designação age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se, é um fator irracional, traçado pelo destino, que impele o homem a emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos desgastados pelo uso. Quem tem designação, escuta a voz do seu íntimo, está designado. A designação não constitui um privilégio das grandes personalidades, estas, foram as que ouviram o apelo e lançaram-se no grande desconhecido. Todos os indivíduos têm designação, apenas que, em alguns, quanto menos desenvolvida estiver a personalidade, tanto mais imprecisa e inconsciente a voz, até confundir-se com a sociedade. A voz interior é substituída pela voz do grupo social e de suas convenções. A voz induz o indivíduo a deparar-se com questões e problemas dos quais os outros nada sabem. Aos olhos da coletividade este fator, designação, pode aparecer como sintoma ou doença, “loucura”. A voz do coletivo diz: “somos todos iguais” e a voz interior diz: somos únicos, cada um é um. A voz do coletivo diz: “isto é só psicológico”, não tem importância, esta a acusação mais popular hoje em dia, expressada pelos menos avisados e, provém da grande subestima que se têm pelas forças motoras da vida e da alma. Nega-se o que é incomodo, sublima-se o que é indesejável, afasta-se com explicações o que é angustiante, corrige-se o que se julga um erro; e tem-se por fim, a impressão de ter colocado tudo no lugar. A única coisa que distingue este homem de todos os outros é a designação. Esta designação implica na coragem de seguir o seu próprio caminho e de colocá-lo acima de todos os outros, enquanto as convenções nada mais podem nos dar que as rotinas da vida, leis que vêm de fora para dentro, absolutamente necessárias em determinadas épocas da vida. Porém, o perigo das convenções, é que mantêm o homem inconsciente, e não implicam em maiores decisões. Toda vez que esta realidade, da designação, quer manifestar-se, precisa individualizar-se, pois normalmente não existe outra escolha possível a não ser a de expressar-se por meio de um indivíduo singular. Somente pode tornar-se personalidade, aquele que é capaz de dizer um sim consciente, ao poder da destinação interior que se lhe apresenta. O que cada personalidade tem de grande, é ela, por livre decisão, sacrificar-se à sua designação. Assim, um de nossos maiores exemplos é Jesus Cristo, quando em suas tentações pelo demônio, nem sufocou, nem se deixou sufocar por ele, mas assimilou-o.

Deveras é algo grande e misterioso o que designamos por personalidade.

O homem desprovido do amor ao destino “amor fati” é o neurótico. A neurose é uma proteção contra a atividade interior da alma ou também uma tentativa de esquivar-se à voz interior e à designação, pois o preço por ouvi-la é muito alto. Na mesma medida em que um homem torna-se infiel à sua própria lei interior e deixa de tornar-se personalidade, perde também o sentido da própria vida. Porém a voz interior, geralmente nos traz, não somente um bem, mas um mal. É quando poderíamos dizer com Cristo: “… se for possível, afasta de mim este cálice…” Mas, por outro lado, aquele que não puder arriscar perder sua vida, também não a ganhará”, pois, nos diz Nietzsche:

“Jamais se eleva o homem mais alto do que quando não sabe para onde seu destino o conduzirá”.

 

Texto baseado no vol. XVII – O desenvolvimento da Personalidade, de C.G. Jung. ed. Vozes, 1981.

 

Sonia R. Lyra

CRP 08/0745

Setembro de 2005.

 

 

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