Adoção e Arquétipo Fraterno - Renata Wenth

Ano de Publicação: 2001

Ano de Publicação: 2001

O tema e as reflexões de nosso encontro[1], O Arquétipo Fraterno, por serem tão fortes, tão essenciais e tão pouco explorados vêm ocupando desde então um espaço considerável em nossas reflexões.

Ao sair para caminhar e brincar com minhas reflexões ou ao contar estórias para minha filha, estava ele lá, fazendo-se presente. Comecei a juntá-lo com outro tema próximo: a Adoção. Tema este que me envolve há alguns anos, pessoal e teoricamente.

O irmão: estamos falando de um tema que envolve algum tipo de proximidade, porém não se restringe à intimidade familiar. Tornou-se também evidente o quanto o arquétipo fraterno relaciona-se com questões, por assim dizer, sociais. Sim, estamos falando de irmãos, de irmandade, de comunidade – onde, apesar das diferenças, somos iguais. Onde buscamos pelas igualdades e sentimos dificuldades ou criamos com as diferenças.

O fraterno revela-se nas relações entre os irmãos de “sangue”, mas também entre os irmãos de “espécie”: somos todos humanos. Entre aqueles que se tornam irmãos por pertencerem a um mesmo grupo: ideológico, de classe ou condição social. Temos associações de bancários, associações Junguiana, partidos políticos, grupos terroristas, os cristãos, os judeus, enfim, os “iguais    se buscam” – e neste encontro um caldeirão de emoções características às relações entre irmãos surgem: alegria pelas aventuras em conjunto, proteção mútua, competições, brigas, ciúmes e inveja.

Em nosso encontro falamos dos órfãos, dos abandonados e então proponho refletirmos sobre os adotivos, ou em sentido mais amplo, as adoções que em   nossas vidas fazemos, inclusive a adoção de um partido, de uma pátria, novamente, a busca por uma irmandade.

Podemos refletir sobre a adoção em dois sentidos, misturando um ao outro:

A adoção em um sentido amplo, arquetípico: os seres humanos se adotam, ou não. Um marido adota a mulher; adotamos amigos, filhos (mesmo os biológicos), ou não. Adotamos ideias, direções políticas, novas posturas de vida. Adotamos uma pátria.

Estou aqui pensando na etimologia da palavra adoção = ad +optare.  Ad= aproximação no tempo e no espaço e  optare= opção. Daí ser a adoção   uma opção por aproximação. Portanto, quando optamos por estar próximos de alguém ou de algo, a adoção entra em jogo.

Uma outra forma de olharmos para a adoção seria em sentido mais concreto, como uma das formas de se ter filhos, de sermos ou termos pais. Onde a opção está ou torna-se evidente, onde opta-se por deixar de lado laços sanguíneos e outros laços entram em cena.

Na adoção de um filho, por exemplo, a função fraternal faz-se evidente. Somos “forçados” a uma conscientização da singularidade do outro – a “falácia parental” como diz Hillman[2], o acreditar que nossos filhos apenas nos reproduzem, o acreditar que aquilo que eles são é devido aos pais, cai por terra. Sabe-se de antemão que este filho terá suas características, no mínimo, físicas. O respeito por suas especificidades é tácito: somos diferentes, com histórias singulares mas iremos ficar juntos para sempre, traçaremos uma história comum à nós.

Quando estamos em grupo, juntos por uma causa comum, também as diferenças ficam suspensas em função daquilo que nos une e é comum. Assim como, em grupo, às vezes as diferenças se revelam, são as brigas, as competições e também oportunidades criativas, de com o outro aprendermos.  Pais e filhos biológicos também possuem as suas diferenças, na adoção estas se tornam mais evidentes e a aceitação destas torna-se condição sine qua non para que o processo “dê certo”.

Separei duas “citações” que gostaria de compartilhar: a primeira, de um livro infantil e a segunda, de um livro sobre adoção.

É o conto de Stellaluna[3], uma morceguinha que, ao perder-se da mãe quando esta lutava com outro pássaro, cai em um ninho de passarinhos (Flipe, Flape e Flope) e passa a conviver com eles. Eles a “adotam” e assim, apesar de grandes diferenças (ela passa a comer insetos, dormir de cabeça para cima, não voar à noite), vivem juntos. Até ela reencontrar a mãe e levá-los para conhecer a vida dos morcegos. O que diz respeito ao nosso tema é o seguinte diálogo entre Stellaluna e os passarinhos:

– Como podemos ser tão diferentes e nos sentirmos tão iguais? – perguntou Flipe, pensativo.

– E como podemos ser tão diferentes e sermos tão iguais? – espantou-se Flope.

– Acho que isso é um grande mistério. – piou Flape.

– Concordo – respondeu Stellaluna – mas somos amigos e isso é um fato.”

              A outra citação vem de um livro sobre adoção[4], dois volumes com vários textos e o que cito é sobre adoção e fraternidade:

No mergulho do homem em suas águas mais silenciadas, o que vêm à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se que o particular e o universal coincidem. […][5]

Nas adoções somos envolvidos com a “causa” da fraternidade, com o mistério de “sermos tão diferentes e tão iguais ao mesmo tempo”, como diz o passarinho do livro infantil. Com a vontade de juntos estarmos e sermos diferentes. Temos histórias e raízes diferentes mas sentimos que “fomos feitos um para o outro” – o amor entrou em cena, mistérios da vida.

A palavra “mistério”, nos reporta à segunda citação, onde chegamos à conclusão de que a direção horizontal, a da singularidade, a da diferença, do respeito pelo outro como o outro é, nos encaminha para a direção vertical, a da pluralidade, a da semelhança, onde somos todos um, todos irmãos. Aos mistérios de nossa existência, aos mistérios do amor, das uniões ou separações entre as pessoas; às fantasias sobre nossas origens não mais em um sentido pessoal. Somos mais objetos que sujeitos, de alguma forma não traçamos completamente nossos destinos, nossos encontros.

Pois, quando temos um filho adotivo, temos a certeza de que ele foi feito para nós; não importando a diferença, seja “genética” e todas os seus possíveis desdobramentos, seja seu nascimento à partir de outra pessoa. Aliás, a genética é constantemente levantada como fator supostamente impeditivo, mas sempre digo: quem diz que a sua genética é melhor que a do outro? Por que a semelhança precisa ser física?

Portanto, para adotarmos, faz-se necessário uma abertura tanto para a horizontalidade quanto a verticalidade de nossas relações. A horizontalidade pede um respeito à diferença. E, a verticalidade, um olhar que não olvide a igualdade, como diz a citação. Afinal, os pais que adotam também já sentiram-se abandonados, também serão adotados.

Nas singularidades, na difícil e extremamente apaixonante e criativa convivência entre as diferenças está, ou podemos encontrar, a grande igualdade humana.

Penso a esse respeito em todas as adoções em nossas vidas. Todas as vezes que “optamos por uma aproximação” seja de nossos companheiros, filhos, amigos, pais, teorias, países, as diferenças estão urgindo por aceitação, por espaço e, então, a semelhança, o fato de sermos todos irmãos começa a aparecer. Isso é fato, como diz Stellaluna no conto. Fato é que somos colocados perante algumas pessoas em   nossas vidas, de algumas nos aproximamos e outras abandonamos, ou somos abandonados.

Obviamente, na adoção de um filho, os arquétipos materno e paterno são centrais, tal qual uma relação biológica de pais e filhos. Porém, o arquétipo fraterno pode proporcionar um olhar de aceitação e admiração para com as   diferenças/singularidades e uma abertura para os mistérios de nossos destinos de irmãos: somos todos iguais e subordinados a algo maior, em nossos encontros ou desencontros vivemos a experiência de sermos juntos colocados ou não.

Podemos estar em relação fraterna com: nossos filhos, nossos pais, nossos irmãos, nossos pacientes; ou não. Até porque, não é e nem poderia ser este, o único padrão arquetípico; outros entram em cena, outros a este se misturam.

 

Renata Cunha Wenth

Outubro 2001 – Curitiba

 

Bibliografia:

 

ANDRADE, E. Fraternidade e Afeto, em Abandono e Adoção – contribuições para uma cultura da adoção. Terre des hommes, PR, 1991.

CANNON, J. Stellaluna. Rocco, RJ, 1997.

 

[1] Primeiro Encontro dos Amigos da Psicologia Arquetípica. Sítio Pedra Grande, São Francisco Xavier, SP. Junho 2001.

[2] Em “O Código do Ser”.

[3] CANNON, Janelle. Stellaluna.

[4] FREIRE, Fernando. org. Abandono e Adoção, contribuições para uma cultura da adoção.

[5] ANDRADE, E. Fraternidade e Afeto.

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