Índice
Introdução
Parte I
A Solidão do Monachos
Parte II
Conhecimento e Inocência
Considerações Finais
Bibliografia
Anexo
Dados Biográficos
Meus sinceros agradecimentos
à Beth, pela orientação e força para desenvolver o trabalho;
ao Glauco, pelo estímulo desde a escolha do tema;
ao Léon, por ter me instigado ao envolvimento apaixonado;
aos amigos Wilson e o ex-monge Nestor, pelos livros emprestados;
à Laisa, minha companheira, pelo apoio e paciente digitação desta monografia.
“O si mesmo (self) se situa no
divisor de dois mundos; deter-se
aí é correr o risco de trair,
ao mesmo tempo, o homem e
Deus. É necessário transcender
o si mesmo”.
Erna van de Winckel
A preocupação de Erna van de Winckel de que a completude humana só tivesse sentido quando nos permitisse passar do natural ao sobrenatural, da imago Dei em nós à experiência viva da presença divina, me fez refletir sobre tal processo na figura de Thomas Merton, monge trapista considerado o São Bernardo de nosso tempo, morto tragicamente em 1968.
Esta monografia está centrada no processo de individuação de um dos mais notáveis homens do sentido do nosso século – Thomas Merton -que transcendeu o si mesmo.
Thomas Merton nasceu em 1915, e viveu 27, dos 53 anos de vida, como monge, no caminho religioso de busca do sentido. Nesse caminho aprofundou-se na teologia cristã e no estudo das grandes Tradições monásticas ocidentais e orientais. Escreveu, pesquisou e, principalmente, experienciou o processo de desenvolvimento da personalidade do monachos, chegando a vislumbrar, ao final da jornada, uma “terapia monástica”, que culminava na maturidade transcultural da pessoa do monge.
A afirmação de Erna van de Winckel, de que a ajuda psicológica poderia ser uma preparação para a ascese cristã e que não se poderia pensar numa ascese autêntica em meio à neurose e imaturidade, encontrou sintonia em inúmeras colocações de Thomas Merton.
Merton, em seu livro “Reflexões de um Expectador Culpado”, colocou a hipótese de que a principal razão para que tenha havido tanta oposição à Psicanálise, por parte do meio religioso, seria que esta teria solapado completamente uma ética complascente e evasiva em relação às “boas intenções” e à “boa consciência”:
“Em realidade, ao demonstrar que a consciência ‘correta’ pode ser, de fato, máscara que encobre uma inconsciência brutal, egoísta, cruelmente injusta, gananciosa e hodienta, e desafiando o homem a manter ‘a casa inteira em ordem’ pelo humilde reconhecimento da realidade em toda a sua profundeza, a psicanálise pode realmente prestar verdadeiro serviço ao cristianismo”.[1]
Quando se referiu a Freud, em seu livro “Contemplação num Mundo de Ação” (p. 51), Merton não caiu nas críticas convencionais sobre a questão da sexualidade, até ao contrário, entendeu o propósito de desenvolvimento da sexualidade madura a serviço da identidade e da capacidade de amar ao invés do prazer sexual fácil, infantil e pervertido. Entretanto, refletiu também sobre os riscos da Psicanálise agir para a conformação a uma sociedade massificada, em que não é desejável o crescimento verdadeiro, que leve o homem a questionar sua alienação, sair da passividade e se ultrapassar.
Tratava-se dos anos 60, e Merton se viu diante da Psicologia da Crise e da Mudança:
“O medo da mudança é o medo da desintegração da unidade interior da pessoa e da unidade do mundo a que está acostumada”.[2]
Tempos dos “hippies”, das drogas, da Yoga e do Zen, dos movimentos pela paz e pelos direitos civis. Movimentos que implicavam numa ruptura radical, que despertaram certa simpatia, e ao mesmo preocupação em Merton, que viria citar Jung (citação feita no início dos anos 60):
“As pessoas farão qualquer coisa, mesmo as mais absurdas, para evitar enfrentar seu psiquismo. Praticarão o ioga com todos os seus exercícios, observarão um severo regime dietético, aprenderão de cor a teosofia, ou repetirão textos místicos da literatura mundial. Tudo isso porque não conseguem suportar-se e não têm a mínima fé no fato de que algo de útil possa jamais vir do psiquismo”.[3]
Merton viu a maioria das pessoas, naquela época, tentando resolver sua crise de maneira rasa e nada salutar. O conflito de opostos irreconciliáveis levava à divisão e uma “pseudo unidade” era erguida sobre uma das partes da oposição, se projetando a parte inaceitável sobre os outros, que passariam a ser considerados demoníacos, heréticos, destruidores da sociedade.
Merton entendeu as crises do seu tempo como inevitáveis. Soube e viveu a necessidade de aceitar os conflitos, suportar a desintegração e restabelecer a unidade num plano mais elevado, incorporando os elementos opostos numa unidade superior. Essa constatação o aproximou de Jung, como veremos mais adiante.
Para o homem religioso havia sempre o risco de um desastroso equívoco:
“(…) quando o cristão imagina que salvar sua alma consiste simplesmente em manter a unidade interior evitando os pecados que causam desintegração dessa unidade (…) como se salvar a própria alma nada mais fosse do que aprender a viver em paz consigo (…). Por que isto é desastroso? Porque o mal, mesmo o pior, pode muito bem não ter nenhum efeito desintegrador sobre a nossa psique. Pode-se cometê-lo e viver em paz. A sociedade pode oferecer bastante ajuda para tranqüilizar a consciência de alguém e assegurar plena proteção contra a desintegração interior. Grande parte da psicoterapia consiste precisamente nisso e nada mais”.[4]
Merton citava como exemplo o profundo ódio racial em pessoas que se consideravam, e talvez em certo sentido o fossem, boas e tolerantes, civilizadas e religiosas.
Focado na vida monástica, Merton acompanhou penosamente a luta obscura entre o carisma e a instituição em que o Espírito foi sendo gradualmente neutralizado pela organização. Como conseqüência, houve o aumento das neuroses, principalmente do masoquismo, das obsessões e compulsões.
Em seus últimos textos, escritos antes de sua viagem à Ásia, publicados após sua morte, Merton buscava uma terapia monástica, ajuda psicológica para os monges que viviam as angústias frutíferas, que levariam ao renascer psíquico. Voltou a citar Jung:
“O desenvolvimento da pessoa até a plena maturidade é ao mesmo tempo um carisma e uma praga, pois seu primeiro fruto é a consciente e inevitável segregação do indivíduo em relação ao rebanho indiferenciado e inconsciente. Isso significa isolamento e não existe outra palavra mais confortadora para tal situação. Nem a família, nem a sociedade, nem a posição podem salvar a pessoa dessa situação – nem mesmo a mais bem sucedida adaptação ao meio ambiente que lhe é próprio”.[5]
Merton soube, como Jung, que seria totalmente inútil tentar “curar” tal paciente, e em tom irônico chegou a colocar a hipótese de que, se a qualquer pessoa, na época atual, acontecesse cair na “noite escura da alma”, se descoberta, seria sujeita a um tratamento com eletrochoques.
O próprio Merton, angustiado e questionando se sua atração pela solidão teria componentes neuróticos mais fortes do que sua vocação religiosa, passou por sessões de psicanálise no ano de 1955 (a primeira ausência após 15 anos sem sair do Mosteiro de Getsêmani) e, segundo J. C. Ismael, autor de sua biografia, aconteceram no pico do chamados “anos terríveis” (toda década de 50) para Thomas Merton.
Relatos dessa vivência solitária, encontrados especialmente sob o título “A filosofia da solidão”, do livro “Questões Abertas”, publicado em 1960, estão sintetizados na Parte I – Solidão do Monachos – desta monografia. Nesta parte veremos sinais claros de um processo de reintegração (como o próprio Merton chamaria mais tarde) com influências do pensamento oriental.
No início dos anos 60, passando a maior parte do tempo numa cabana nos bosques de Getsêmani, isolada do mosteiro, Merton mergulhou nos textos de Chuang-Tzu, filósofo chinês (séc. III, A.C.) e de outros grandes místicos orientais, através de sua correspondência com Suzuki. Seu encontro em New York com o então nonagenário Suzuki, que gerou, em 1965 o livro “Zen e as Aves de Rapina”, foi o motivo para a obtenção de licença para sua segunda ausência do Mosteiro Getsêmani (a primeira 10 anos antes – Minnesota, 1955). Duas saídas em 25 anos, marcos da “biografia da alma”, não do pequeno homem e seus projetos grandiosos, mas do ser em busca de universalização, avançando no sentido da Integração Final Transcultural, como chamaria o próprio Merton tempos depois.
A Parte II – Conhecimento e Inocência – tratará dessa “ponte oriental”, principalmente na esfera do não lógico, que tanto fascinou Merton. Entretanto, como já dissemos, Merton vislumbrou algo em direção a uma terapia monástica, postulou mudanças que se ajustariam plenamente aos tempos atuais – anos 90 -, e disso trataremos nas nossas Considerações Finais.
“A alma verdadeiramente
solitária torna-se incolor e o
seu retiro deixa de excitar nos
outros o amor ou o ódio”
Thomas Merton
Quando Merton citou Jung sobre a solidão e o inevitável isolamento, na busca da verdadeira identidade do homem, retirou tal citação de um livro de Reza Arasteh (terapeuta que trabalhava nos EUA e com quem se aprofundou em estudos de Psicologia). A fonte original trata-se de “A Voz do Íntimo” – “Sobre o vir a ser da personalidade”, uma palestra realizada por Jung na União Cultural em Viena, novembro de 1932.[6]
Vamos à citação original na íntegra:
“A sentença: “muitos são os convocados e poucos os escolhidos” vale aqui como em nenhum outro lugar, porque o desenvolvimento da personalidade, desde as suas bases germinativas até a consciência plena, constitui um carisma mas ao mesmo tempo uma execração, porque sua primeira conseqüência será o destacamento inevitável e consciente do ser singular da indiferenciação e inconsciência das massas. É um isolamento e para isso não há outra palavra mais consoladora. Disto não se escapa por adaptação bem sucedida, nem por entrosamento sem atrito no meio, na família, na sociedade ou numa posição. O desenvolvimento da personalidade constitui tal afortúnio que só pode ser pago bem caro. Mas justamente aquele que mais fala sobre o desabrochar da personalidade pensa muito pouco sobre as conseqüências que já de antemão espantam totalmente as mentes mais fracas”.[7]
Jung continua o parágrafo ressaltando que tal empreitada significa mais que isolamento, uma absoluta lealdade para com a própria lei interior. Para a palavra lealdade Jung preferiria antes usar uma palavra do Novo Testamento – pistis -, que erradamente teria sido traduzida por fé, quando o seu sentido seria “lealdade confiante” – lealdade para com o seu próprio caminho.
Tal lealdade viria de um fator irracional que impele a pessoa a se emancipar do rebanho e seus caminhos convencionais. A pessoa estaria em pistis com ela própria como com Deus – “uma lei divina da qual não se pode afastar”. Uma autêntica experiência de Vocação.
Vocação no sentido literal: ser chamado por uma voz. A questão mais forte em Thomas Merton: o monge vai ao deserto escutar, nessa solidão, a voz do seu íntimo.
Na verdade, Merton evita o termo monge no capítulo “Filosofia da solidão” de seu livro “Questões Abertas” (1960). Prefere monachos – o ser solitário- não implicando no engajamento a nenhum voto ou instituição (monge do ponto de vista jurídico).
A leitura cuidadosa dos textos de Merton a partir daí até as suas palestras em seus últimos dias de vida, foi mostrando a tendência de ver o monachos em sua essência.
O monge desvestido do hábito, da cogula, não confinado ao mosteiro perambula invisível, morto para o mundo, sem desejar nem despertar qualquer atenção. Sem nenhum poder especial.
O deserto se transforma em metáfora do cenário por onde peregrina o “estrangeiro vagabundo”. Nenhuma ilusão. Só o vazio.
A voz do seu íntimo se transforma, enfim se cala e ele escuta o silêncio de Deus.
Como Jung desenvolveu em sua palestra em Viena sobre o “vir a ser da personalidade”, Merton, talvez, tenha escutado sua voz interior. Talvez, ela o tenha tentado a estudar textos estranhos, orientais, absurdamente diferentes de tudo que os seus superiores o orientaram a ler, estudar, e obrigaram a escrever (Merton recebeu ordens e obedeceu publicando livros escolhidos por seu superior nos primeiros anos de mosteiro).
Merton, na realidade, sempre esteve engajado no monaquismo cristão. Até o final continuou pesquisando e estudando dentro do espírito da religião católica e do espírito do Concílio Vaticano II e seus ventos renovadores.
Do início ao final, dos seus primeiros relatos sobre a vida no Mosteiro de Getsêmani (do qual jamais pretendeu sair, mesmo nas fases de perseguição opressiva de seu Superior – como nos conta sua biografia) até suas últimas contribuições para o monaquismo de sua ordem, permaneceu num profundo engajamento, numa transparente coerência. Coerência esta evidente na passagem do monge devendo espelhar-se em Maria, irmã de Marta, sentada aos pés de Cristo, como sendo o mais elevado valor da vida do monge – “é quando sua alma escuta sem intermediários, sem mensageiros, imagens ou formas”.
Marcado por uma espécie de candura, Merton tratou desse estado de união interior como algo secreto e inexprimível e “mesmo os que nela penetram, só a conhecem, por assim dizer, de maneira incognoscível. (…) A solidão (neste estágio) não separa dos outros num contraste de auto-afirmação. Não afirma nada. É ao mesmo tempo vazia e universal”.
Assim impelida para além dos muros do mosteiro, a alma do monge Thomas Merton buscou contato com monges de outras religiões.
Antes vale transcrever trechos importantes de sua viagem solitária:
“A vida solitária para ser autenticamente cristã deve ser, é verdade, vida de oração e meditação. Pois em nosso contexto o monachos é pura e simplesmente o homem de Deus, mas que oração! Que meditação! Nada mais se assemelha ao regime de pão e água do que essa oração interior do solitário. Pobreza total. Freqüentemente incapacidade de orar, de ver, de ter esperança. Não a doce passividade tão louvada nos livros, mas a amarga e dura luta, o esforço árido para avançar através de uma tempestade de areia. O solitário bem poderá bater com a cabeça de encontro a um muro de dúvidas. Isso poderá ser a medida plena de sua contemplação. Não se trata de uma dúvida intelectual, de uma investigação analítica de algumas verdades teológicas, ou filosóficas ou outras. É algo de diverso, uma espécie de “inconhecimento” de si próprio, gênero de dúvida que desconfia das próprias raízes da existência do solitário; uma dúvida que sacode as mais íntimas razões que ele tem para existir e fazer o que faz. É essa dúvida que, por fim, o reduz ao silêncio e, no silêncio que deixa de fazer perguntas, ele recebe a única certeza que possui: a presença de Deus em meio à incerteza e ao nada como a realidade única, mas que não pode ser “classificada” ou identificada.” [8]
“A vocação à soledade não é, portanto, vocação a um confortável sonho nascísico de alguma religião particular. É sim uma vocação a se manter plenamente acordado”.[9]
“A vocação à solidão é ao mesmo tempo vocação ao silêncio, pobreza e vazio. Mas esse vácuo tem em vista a plenitude pois a finalidade da vida solitária é a contemplação. Não porém a contemplação no sentido pagão de uma iluminação esotérica conquistada por meio de técnicas ascéticas”.[10]
“O solitário procura em si mesmo unidade simples e espiritual que quando encontrada, se torna paradoxalmente a unidade de todos os homens – uma unidade que transcende toda separação, conflito ou divisão”.[11]
“Assim deve ficar bem claro, que não se trata nestas páginas da solidão excêntrica e agressiva que exige ser conhecida e aprovada e procura focalizar sobre si os olhares (…) um reforçar o prazer que se pode encontrar em si (…) em última análise, o que desejam não é o deserto mas o seio”.[12]
Após intensa busca vertical vem a abrangência, o voltar-se para outros monges buscadores, de outro hemisfério. Entretanto, importa observar outros movimentos nítidos em Merton nesse final da década de 50 e início dos anos 60.
Maior relativização, no sentido das exigências da instituição: Merton clamava pela aceitação de um limite para a fraqueza humana e sua incapacidade de suportar austeridade absoluta. Criticava esse absolutismo (que poderia se transformar numa espécie de “fortuna”, de “honra”) como sendo um desvio do rumo principal: a solidão em si, como a prática ascética primordial.
Nesse sentido, Merton defendeu um olhar mais compassivo para com as imperfeições, as excentricidades do solitário e maior aceitação daqueles que, após longos anos de confusão e desorientação, vinham ao monastério sem as condições para a ascese de virgindade absoluta, carisma de raríssimos, na opinião de Merton.
Imensa gratidão pelos solitários comuns, os monachos sem voto que suportaram o sofrimento do isolamento e chegaram a algum sentido de unidade e graça. Esses eremitas sem eremitério contribuíram profundamente para a Igreja, mesmo fora dela, e para a sociedade como testemunhas de outro reino, mesmo marginalizados. Merton se referia àquelas pessoas isoladas que não se julgavam superiores por pertencerem a uma pátria rica e poderosa, presenças anônimas que não se iludiam com as ficções enganadoras de poder e superioridade cultural, social e econômica dos E.U.A. nas décadas de 50 e 60.
Merton passou a se opor frontalmente a todo tipo de totalitarismo. Pronunciou-se, nesse sentido, quanto ao caso Pasternak, contra o Estado comunista totalitário russo.
Tais movimentos vão fortalecendo a presença do monge Merton em seu processo de reintegração nos acontecimentos do seu tempo.
Retomando sua já então sólida formação cultural, Merton aprofundou-se em grandes pensadores dos tempos modernos: Kierkegaard, Darwin, Marx, Nietszche, Freud, Jung, Adler e Sartre, entre outros. Estudou também o filósofo Marcuse, no intuito de se aproximar e compreender os movimentos da juventude americana. Jovens estudantes americanos, que a despeito da rebeldia inconseqüente, das drogas, das comunidades “hippies”, mobilizaram-se fortemente contra a Guerra do Vietnã e participaram dos movimentos civis pela igualdade dos direitos dos negros e outras minorias.
Merton, nos seus 50 anos de idade, retomando seus ideais de jovem ativista, solidarizou-se com a onda mundial de protesto da juventude, mas advertiu para o risco de fuga para uma minoria incorfomada não levar a uma verdadeira maturidade. Merton esforçou-se na compreensão do ímpeto jovem pela expansão da consciência, o uso do LSD e da mescalina, as drogas psicodélicas, mas não aceitava o abandono de uma ilusão imposta ser substituída por outra, uma ficção por outra. Afinal a vocação à solidão do monachos, de qualquer idade, se havia fixado no coração de Merton, como a vocação de estar plenamente acordado.
Alienação e despersonalização não combinam com o caráter do monachos. Tornou-se essencial, para Merton, que o monge estivesse acordado para não sucumbir ao domínio da “imagem social” (persona), que só permite e aprova em si o que é proveitoso e digno socialmente, dentro do âmbito dos “slogans” e do divertissement, que desviam da inexorabilidade da morte, que se dará para todos nós na solidão. Estaria aí o pânico dos semi-acordados.
Somente quando se enfrenta o aparente absurdo da vida e da morte, é que a fé se tornaria realmente possível. Assim, as práticas religiosas convencionais deixariam de ter um caráter automático e padronizado, para ter um sentido mais profundo e realmente iluminar a travessia da “noite escura da alma” do monge.
Para Thomas Merton, o processo se deu quando a fé perdeu qualquer conexão com palavras e pensamentos e se transformou num indizível pulsar de um “Coração dentro do coração”, num inexprimível curar do “coração dentro do Coração”.
“A não ser que alguém se torne solitário e vazio, não poderá se dar aos outros no amor, porque não possui o “eu” profundo que é o único dom digno do amor. E esse “eu” profundo, digamo-lo imediatamente, não pode ser possuído. Meu ser profundo não é uma “coisa” que eu conquisto ou “consigo” após longo combate. Não me pertence e não pode pertencer-me. Não é “qualquer coisa”, não é um objeto. Sou “eu”.[13]
Tratando-se da dimensão amorosa, Merton observou em muitos de seus companheiros monges duas grandes tendências.
A tendência romântica desviaria o monge de sua capacidade para o amor humano de carne e osso, para um amor idealizado “o amor do amor do Cristo” que, na maior parte das casos, tratava-se de pura abstração mental.
A outra tendência seria a legalista, onde o monge amava como o cristão autoritário: que faz “o irmão entrar na linha”, para torná-lo “digno de amor”.
Merton acreditava na transformação progressiva de Eros em Ágape, mas nada que oprimisse os monges num ideal sobre-humano. Em sua última palestra sobre a vida monacal, pronunciada informalmente em Calcutá, outubro de 1968, falou da necessidade do monge aceitar, no íntimo, sua limitação na capacidade de amar e de receber amor, e buscar a espécie de vida que está aberta à dádiva: dádiva de Deus e dádiva dos outros. A compaixão de Deus e dos outros. Merton sabia da necessidade profunda, no ser humano, de ser olhado por Deus com um olhar compassivo que nada cobra.
Voltando à vivência de Thomas Merton em seu mergulho:
“O “eu” superficial do individualismo pode ser possuído, desenvolvido, cultivado, mimado. Satisfeito; é o centro de todo nosso esforço na luta para acumular bens e satisfações, sejam eles materiais ou espirituais. Mas o “eu” profundo do espírito, da soledade e do amor não pode ser “obtido”, possuído, desenvolvido, aperfeiçoado. Só pode ser e agir de acordo com leis interiores e profundas que não são de fabricação humana, mas emanam de Deus. São as Leis do Espírito que, semelhante ao vento, sopra onde quer. Esse ‘eu” interior, que está sempre em soledade, é também sempre universal. Pois nesse “eu” íntimo em extremo, minha soledade se encontra com a soledade de todos os homens e com a de Deus. Daí estar fora do âmbito da divisão, das limitações, das afirmações egoístas. Só esse “eu” íntimo e solitário é que sabe verdadeiramente amar com o amor do Espírito de Cristo. Esse “eu” é o próprio Cristo vivendo em nós, e nós nEle, vivendo no Pai”.[14]
A identidade-ego vai se desvanecendo até surgir o novo homem. Como nos diz o Apóstolo Paulo:
“Eu vivo, mas neste momento não sou eu e sim Cristo que vive em mim”.
São Paulo distingue dois tipos de sabedoria: a racional (conhecimento das palavras, da linguagem) e a não racional, experiencial, que “destrói a sabedoria dos sábios”, simbolizada pela “força da Cruz” (I, Cor. 1, 17).
A sabedoria da “força da Cruz”, atua na experiência crua de “estar pregado na Cruz com Cristo” vivendo o total esvaziamento do eu, em união com o total esvaziamento de Jesus, obediente até a morte.
O “vazio” cristão para ouvir plenamente o Espírito Santo.
Thomas Merton afirmou o que muitos esquecem, que o cerne do catolicismo é também uma “experiência vivencial, o sabor e a experiência direta da vida que não acaba”.
A ênfase na experiência e não na crença correta, externa, obsessivamente voltada ao ritualismo e aos códigos rígidos, aproxima novamente Merton do pensamento de Jung. E, como este, se interessa profundamente pela experiência oriental, no que se relaciona à Psicologia.
O mergulho de Merton, com seu espírito de investigação e agudeza analítica, trouxe à tona as vivências psíquicas do verdadeiro monachos, independente da religião, da identidade cultural e racial.
“Assim com a devida e total deferência para com as vastas diferenças entre budismo e cristianismo (…) e de modo algum confundindo “a visão mística de Deus”, do cristianismo, com a “iluminação” do budista, podemos, entretanto, dizer que ambos possuem em comum essa “ilimitação” psíquica. E tendem, ambas, a descreve-la numa linguagem quase igual”.[15]
Nesse sentido, foi interessante observar termos como: plenamente acordado (awareness), vazio, nada, vácuo, talidade, ser o que se é (sucheness), entre outros, típicos da linguagem oriental ao lado de seus correspondentes ocidentais: vigilância, pobreza, “noite escura”, inocência, pureza de coração. Ou ainda o “wu-wei” (não intencionalidade) dos chineses e a “liberdade dos filhos de Deus” no Novo Testamento.
Com o sentimento profundo de solidariedade próprio do encontro entre homens de mesma vocação, o monge Merton dedicou-se à pesquisa de textos antigos orientais de monges de outros tempos. Em decorrência, aprofundou-se no conhecimento das filosofias e religiões orientais, orientado por correspondência pelo amigo Suzuki.
“O gosto do Zen despertado no Ocidente é, em parte, a sadia reação de pessoas exasperadas com a herança de quatro séculos de cartesianismo: a deificação de conceitos, a idolatria pela consciência refletiva, a fuga da realidade para ater-se ao verbalismo, à matemática e à racionalização. Descartes fez do espelho em que o eu se encontra um fetiche. O Zen o despedaça pondo-o em frangalhos”. [16]
Essa “ponte oriental” gerou livros como “A Via de Chuang Tzu” e o “Zen e as Aves de Rapina”, publicados em meados dos anos 60 e, após a sua morte, “O Diário da Ásia”, publicado em 1973. A Parte II estará centrada nessas produções de Merton.
“Antes que eu penetrasse no
Zen, as montanhas nada mais
eram que montanhas e os rios
nada a não ser rios. Quando
aderi ao Zen, as montanhas não
eram mais montanhas nem os
rios eram rios. Mas, quando
compreendi o Zen, as
montanhas eram só montanhas
e os rios só rios”.
Declaração Zen
Iniciamos com um momento poético da vida de Thomas Merton, revelador de seu estado de consciência, nos idos de 1962.
“Como desperta o vale! Às duas e quinze da madrugada, não há ruídos, a não ser no mosteiro: tocam os sinos, o Ofício divino se inicia. Lá fora, nada, exceto, talvez, um sapo-boi coaxando “om” na vala, ou no pequeno lago da hospedaria. Em algumas noites, ele fica no Samadhi; e, lá, nem se ouve o “om”. O misterioso e ininterrupto grito do noitibó começa mais ou menos às três, nestas manhãs. Nem sempre ele está perto. Por vezes, há dois ou três gritando juntos. Talvez a uma milha de distância nas florestas, do lado do nascente.
Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point-vierge da aurora sob um céu ainda desprovido de luz real. É um momento de temor reverente e de inexprimível inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos. Eles começam a falar-lhe, não em um cantar fluente, mas com uma pergunta despertadora que é o estado de aurora deles, seu estado no point-vierge. Sua condição pergunta se é tempo, para eles, de “ser”. Ele responde “sim”. Então, um por um, eles despertam e se tornam passarinhos. Manifestam-se como passarinhos e começam a cantar. Dentro em pouco, eles se tornarão plenamente o que são, e até voarão.
Entretanto, o momento mais maravilhoso do dia é aquele em que a criação em sua inocência pede licença para “ser” de novo, como foi, na primeira manhã que uma vez existiu.
Toda sabedoria procura preparar-se e manifestar-se neste ponto cego e suave. A sabedoria do homem não no consegue, pois caímos no autocontrole e não podemos pedir licença a ninguém. Enfrentamos nossas manhãs como homens de propósito indômito. Sabemos a hora e impomos os termos. Estamos em posição de impor termos, pensamos. Temos um relógio que prova desde o início estarmos certos. Sabemos o que seja o tempo. Estamos em contato com as leis interiores ocultas. Diremos, antecipadamente, que espécie de dia deverá ser. Em seguida, se necessário, tomaremos medidas para fazer esse dia enquadrar-se em nossas exigências.
Para os passarinhos, não existe um tempo que conheçam, e sim, o ponto virgem entre trevas e luz, entre o não-ser e o ser. Nós é que podemos calcular a hora pelo despertar dos pássaros, se somos experientes. Mas isso é a nossa loucura, não a deles. Maior loucura ainda se cremos que eles nos estão dizendo algo que pudéssemos considerar útil – isto é, por exemplo, quatro da manhã.
Eles, pois, despertam: primeiro os sabiás e os cardeais e alguns que não conheço. Mais tarde os pardais que cantam e as carriças. Por último, as rolas e os corvos.
O despertar dos corvos é o que mais se parece com o despertar dos homens: rixentos, barulhentos e rudes.
Há, aqui, um segredo inefável: o paraíso nos envolve e não o sabemos. Está escancarado. A espada foi retirada, mas nós o ignoramos. Partimos: “um para sua fazenda, outro para seus negócios”. Luzes acesas. Tique-taque dos relógios. Barômetros em ação. Fogões cozinhando. Barbeadoras elétricas enchendo o ar de estática. “A sabedoria”, clama o diácono da aurora, mas nós não a atendemos”.[17]
Interessado nas origens do Zen budismo, Thomas Merton estudou textos antigos do período clássico da filosofia chinesa (550 a 250 A.C.). Chuang Tzu, tido por Suzuki como o maior filósofo taoísta chinês, contribuiu grandemente para as transformações no pensamento oriental, que culminaram no Zen.
Humor, paradoxo, humildade, busca da autenticidade esquecida, simplicidade, foram alguns dos ingredientes que Merton encontrou lendo Chuang Tzu.
“Você nunca encontrará a felicidade, a não ser quando cessar de procurá-la”.
Chuang Tzu
Monge há quase 25 anos quando escreveu “A Via de Chuang Tzu”, Merton revelou ter sido o livro que mais gostou ter escrito. Descreveu o pensador chinês como sendo espirituoso, sutil e inconformista. Sentiu por ele a empatia dos solitários de todas as idades e culturas.
“Chuang Tzu certamente haveria de concordar com São João da Cruz, que só podemos penetrar nessa espécie de via quando abandonamos todos os caminhos e, de certo modo, procuramos perder a nós mesmos”.[18]
Merton viu “na vida de fé” cristã analogia (pelo menos psicologicamente) com a via de Chuang Tzu.
Voltando à China antiga, lembramos que o homem superior (aquele do I Ching), segundo a filosofia clássica de Confúcio, estaria apoiado em quatro virtudes básicas: compaixão, justiça, contemplação e sabedoria. Esta última abarcaria todas as outras e aquele que tivesse atingido a perfeita sabedoria, não seria governado por regras externas, teria aprendido uma obediência espontânea interior (o correspondente a: “Ama e faça o que quiseres” – de Sto. Agostinho)
Citando o comentário Julgamento do Hexagrama 25 do I Ching – Inocência -, temos:
“O homem recebeu do céu uma natureza essencialmente boa, para guiá-lo em todos os seus movimentos. Entregando-se a esse princípio divino dentro de si, o homem alcança uma inocência incontaminável. Ela o conduz ao bem com certeza instintiva e livre de intenções ulteriores de recompensa ou vantagem. Essa certeza instintiva traz supremo sucesso e “favorece através da perseverança”. Mas nem tudo o que é instintivo é também natural, nesse sentido mais elevado da palavra, mas somente o que é correto, aquilo que corresponde à vontade dos céus. Uma forma de agir instintiva e irrefletida, que não possua retidão, só poderá causar infortúnio. Confúcio comentava a respeito: “Onde irá aquele que se afasta da inocência? A vontade e as bênçãos dos céus não acompanham seus atos.”[19]
Mas, o confucionismo degenerou em esforço ritualístico e rigidez, aprisionando seus homens superiores e sufocando sua criatividade. Nas parábolas e histórias engraçadas de Chuang Tzu, coletadas por Merton, são muitas as ironias a respeito da “correção” e “cerimônia” dos homens superiores de sua época.
“Se um homem atingi a idade dos 40 ou 50 anos sem jamais ter “escutado o Tao”, nada há que o torne digno de respeito.”[20]
Não se tratava, entretanto, de negar a importância da disciplina e do conhecimento, mas de ir além. Recuperar e cultivar a talidade[21] que já possuímos.
“O segredo da via proposta por Chuang Tzu é, portanto, não a acumulação da virtude e do mérito, mas wu-wei, o não fazer, que não almeja resultados e não se preocupa com planos conscientemente estabelecidos, nem tentativas deliberadamente organizadas”. [22]
“O bem pregado pelo moralista torna-se assim o mal (…) levada ao extremo a busca desenfreada do bem, desvia-o do bem verdadeiro, que já possuímos dentro de nós e que agora ignoramos”.[23]
“Em vez de cultivarmos o bem auto-conscientemente (que desaparece quando para ele olhamos e torna-se intocável, quando tentamos pegá-lo) vamos progredindo na humildade de uma vida simples e corriqueira (…). É mais uma questão de acreditar no bem, do que contemplá-lo como o fruto do nosso esforço pessoal”.[24]
“Uma vida contemplativa e interior que fizesse com que o indivíduo se conhecesse mais a si mesmo e que permitisse tornar-se obcecado pelo seu próprio progresso interior seria, para Chuang Tzu, uma ilusão não menos importante do que a vida ativa do homem “benevolente” que tentasse por seus próprios esforços impor a sua idéia do bem a todos os que se pudessem opor a essa idéia e, assim, tornar-se-iam, a seus olhos, “inimigos do bem”. [25]
O conflito entre ação e contemplação para Chuang Tzu (na visão de Merton) não seria resolvido mas sim transcendido pela experiência de união com o Tao incognoscível.
“O Tao está além das palavras
E além das coisas
Não se exprime
Nem por palavras
Nem pelo silêncio
Onde não existe
Nem mais as palavras
Nem o silêncio
O Tao é apreendido.”[26]
O Tao incognoscível, o Tao misterioso, a que se referia Chuang Tzu, estava “além da sabedoria tradicional ensinada pelos antigos, do guia para a vida prática, do caminho da virtude”, ou seja, além do Tao da filosofia do confucionismo.
A experiência impactante do Tao do Céu, o Tao misterioso, para Merton teria como efeito fulminante uma espécie de humildade e simplicidade absolutas – “Humildade cósmica – diante da vida e de todos os seres.” Numa reflexão ocidental: a ausência de toda possibilidade de conhecer Deus, o impacto da ausência do Deus transcendente, paradoxalmente, é sua presença como ser imanente (Merton faz analogia entre a experiência do Vazio oriental e a experiência de Deus no misticismo cristão apofático do “não conhecimento”).
Algo como a união simples e profunda dos franciscanos, essa união com o Tao do céu se daria quando o homem estivesse “esvaziado” de si mesmo, pobre em espírito, em paz, e reconectado à sua verdadeira raiz (Merton associa tal estado à condição primordial do Paraíso).
Na busca do transcendente se encontra o imanente, quando a busca deixou de ser buscada. Como nas expressões do próprio Merton “o inconhecimento de si mesmo” levou a um “eu” profundo, ou melhor, converteu-se no “eu” profundo.
Somente ao deparar-se (com todo sofrimento e agonia) com o “inconhecimento de si mesmo”, Merton viveu a única certeza, na exaustão da busca, com o ego rendendo-se à insignificância.
O interesse de Merton por Chuang Tzu e sua via que, “de tão simples poderia existir sem ser uma via”, reafirmava sua postura de monge trapista despojado de qualquer ambição espiritual, avesso às visões, êxtases fulgurantes, todas as espécies de ilusão de espiritualidade especial. A postura do monge, sem pretensão a auto-realização, torna-se a sabedoria simples dos que progridem no caminho da “não intencionalidade”, da “sabedoria unitiva” da pessoa.
O monge Zen, estando com o Tao, flui como a fonte, cujas águas correm inexoravelmente na direção de sua meta. E a fonte é inesgotável.
Jung encerra a sua palestra “A voz do íntimo” com a frase: “A personalidade é o Tao”.
Jung trata o Tao como o caminho não percorrido em cada um de nós, “a consumação, a totalidade, destinação e vocação cumpridas, começo e fim e a realização completa do sentido de existir, inato nas coisas”.
Retomando a questão da pessoa e da personalidade no livro “Zen e as Aves de Rapina”, Thomas Merton refletiu sobre a tendência ocidental de considerar o Zen budismo como negação diante da vida e do desenvolvimento da personalidade. Merton observou que pela própria austeridade das tradições Zen para com a questão do “vazio”, pouco mesmo poderia se esperar de uma ênfase na realização da personalidade e sim no esvaziamento do ego e no desnudamento da persona. Não haveria destruição da personalidade, mas restauração da pessoa.
Na prática (segundo Suzuki), a formação Zen terminaria quando o monge, despojado e nú, descobrisse que é o “João-ninguém” que sempre foi – a pessoa simples que, vivendo sua vida cotidiana, quando cansada dorme, quando faminta come.
Atingir o estado de “João-ninguém” seria a condição para se vislumbrar o satori. Somente quando as esperanças e temores, os apegos e aversões da identidade-ego são esquecidos, é que a verdadeira personalidade humana aparece.
Thomas Merton, em suas pesquisas, encontrou, no eminente filósofo Zen Kitaro Nishida, uma voz oriental preocupada com o “tornar-se pessoa”.
“O bem mais elevado é o bem da pessoa (…) (Nishida) não confunde a “pessoa” com o ser individual externo. Nem é a “pessoa” para ele simplesmente o “sujeito” relacionado a vários objetos, ou mesmo a Deus num relacionamento eu-Tu. A raiz da personalidade deve ser procurada no “eu verdadeiro” que se manifesta na unificação básica, onde sujeito e objeto são um só. Assim, o bem, mais elevado, é a fusão do “eu verdadeiro” com a mais elevada realidade. A personalidade humana é considerada como a força que efetua essa fusão (…) a realização da personalidade humana em seu sentido mais elevado, espiritual, é para nós o bem para o qual toda vida deve ser orientada.”[27]
O ser enquanto Ser, vivido pela pessoa, é eminentemente ontológico no Zen. A experiência da pessoa com “a mais elevada realidade” é essencialmente metafísica. Merton viu nesse estágio “o inconsciente do Zen antes metafísico do que psicológico”, antes supra-consciente do que subconsciente, ou inconsciente. O Ser, com S maiúsculo, do Zen é o vazio da plenitude.
A realização da personalidade no místico cristão não é do ego isolado, temporal, mas da pessoa identificada com o Cristo ou com o Espírito Santo “no íntimo” do ser.
“A pessoa, de fato, está enraizada nessa base, (…) e não na contingência fenomenal do eu-ser. Assim, se a pessoa tentasse “sair” desse fundamento metafísico, dessa base, de maneira a ter a experiência de si mesmo como sendo ou agindo, ou se se pusesse a observar-se como um objeto funcionando entre outros objetos, a experiência de sabedoria unitiva tornar-se-ia impossível, pois a pessoa estaria dividida em dois – daí o paradoxo de que logo que há “alguém ali” para ter uma experiência transcendente, a “experiência” é falsificada e torna-se, de fato, impossível.”[28]
Thomas Merton viu no Zen budismo o fluir na direção de uma meta que está além do sistema, das estruturas culturais e sociais, os ritos e as crenças estabelecidas. Viu meta semelhante no islamismo: “o sufis buscavam o Fana – a extinção do ser social e cultural que é uma aproximação no rumo da liberdade mística, em que o ser se perde e se reconstitui no Baga – algo semelhante ao Novo Homem do cristianismo.”
Viu na noção do “renascer” do cristianismo, sufismo e zen-budismo, o mesmo chamamento a que nos tornássemos quem já somos (em potencial) “a pessoa que somos realmente destinados a ser”.
Thomas Merton viu tanto o budismo como o cristianismo buscarem na vida cotidiana e corriqueira, cheia de confusão e sofrimento antes da transformação denominada “Grande Morte” pelo Zen e “Morte e Ressureição em Cristo” pelo cristianismo, a base fundamental de trabalho interior, o ponto de partida e de chegada para o enraizamento da pessoa em sua talidade.
O desejo do ego “agarrar” ou “conter o Sagrado” será sempre frustrado. É necessário atingir a pessoa.
Na simplicidade da “vida de fé cristã’, após longa jornada interior, o monge, se desvanecendo como ego, ressurge como pessoa identificada com o Cristo. Atingir a pessoa cristã seria, no caminho do monge, atingir o si mesmo (self).
Atingir o si mesmo, como diz Winckel[29], é chegar ao arquétipo da unidade primordial, “fim e novo ponto de partida”, é “estar preparado para ultrapassar o psicológico e o simbólico, para se abrir ao domínio ilimitado do Sagrado”.
Como alerta Jung:
“Mas o si mesmo não pode tomar o lugar de Deus, embora possa, às vezes, ser um receptáculo da graça divina”.[30]
Thomas Merton, citando Eckhart sobre a “perfeita pobreza” quando o homem “não possui em si nem mesmo um lugar onde Deus possa operar”, fala da renúncia mais elevada.
“É precisamente nessa tão pura pobreza (…) que Cristo, no mais elevado sentido, nasce em nós (Eckhart não nega a doutrina sacramental do nascimento de Cristo em nós pelo batismo, mas está interessado em algo mais plenamente desenvolvido).”[31]
A total transcendência do si mesmo se daria na total renúncia. Mestre Eckhart, citando São Gregório: “Ninguém recebe tanto de Deus como aquele que está completamente morto”.
Na santidade cristã, a pessoa se transfigura na Pessoa do Cristo.
No budismo, não se trata do homem santo, mas do Bodhisattva.
“Pessoa? O Buda, em que o Bodhisattva se transforma, é uma pessoa: a Pessoa Suprema. Em Buda temos o conceito de pessoa sem traço de ego. Há atividade sem apego. Não há nada que o Bodhisattva não possa sacrificar pelo bem dos outros. Ele dedica sua vida presente e suas vidas futuras sem reservas ao serviço de todos os seres”.[32]
Há sempre a idéia do retorno ao mundo, ao plano do Sansara (em muitas linhagens budistas quando a polaridade Sansara versus Nirvana foi também transcendida), para o compartilhar do conhecimento que, vindo da unidade iluminada, “cura a fratura”.
A compaixão e a caridade surgem na pessoa cristã pela intuição da pessoa no outro e pela vivência interior do mistério da comunhão em Cristo.
“A compaixão budista procura curar a fratura da divisão e da ilusão e restaurar a unidade não num “um” metafísico abstrato ou mesmo num imanentismo panteísta, mas no Nirvana (…) estar aqui e agora, em nossa talidade, é estar no Nirvana”.[33]
O monge budista fala em “fratura”, em restaurar a talidade. O monge cristão fala “em queda” e recuperar a inocência, a pureza de coração.
“Pureza de coração”, “inocência” e “unidade do espírito” foram as grandes metas do cristianismo primitivo, dos padres do deserto, a suprema realização da personalidade do monge.
Merton, no encontro com Suzuki, profundo conhecedor da linguagem da Bíblia, encaminhou o diálogo sobre a questão da inocência e da “recuperação do Paraíso” no sentido arquetípico da “queda” (citou Jung na p. 86 – “Zen e as Aves de Rapina”).
Para Suzuki, ao se perder da inocência e adquirir o conhecimento, ao comer o fruto da árvore proibida, o homem inicia o processo da consciência pelos julgamentos que “mancham a mente com toda espécie de pensamentos (…) o pior deles: o de si próprio”.
Nesse sentido, o esvaziamento da mente parte da premissa “selflessness” do budismo (não existência de um “eu” desde o início).
Suzuki acredita ser essa premissa correspondente ao “ser pobre em espírito” do cristianismo.
O esvaziamento se completaria no desapego total. Nesse sentido, a pobreza seria a virtude fundamental: “psicológicamente levaria ao esquecimento de si e à inocência”.
Desse estado de inocência, talidade, brotaria o senso ético, quando o gesto parte da unidade cristalina, sem mancha de intenção auto-consciente, origem de todo o mal e de todo o erro (nesse sentido a ênfase, para Suzuki, se daria na restauração da talidade na pessoa e não no conhecimento das leis).
Entretanto, Suzuki não pretende reduzir a questão pela desvalorização do conhecimento no universo judáico-cristão. Acredita no desenvolvimento de uma visão profunda na pessoa, que sustente a polaridade inocência versus conhecimento e abra caminho, na vida concreta, para cooperação mútua entre os dois polos.
Thomas Merton reafirma, então, a importância de encarar a restauração da inocência como vazio completo de si próprio e obra da graça, nunca obra do vazio do quietista e sua tola negação do conhecimento, nem a inocência infantil dos que permanecem crianças.
Nesse momento, lembramos de Jung quando fala dos crentes que “permanecem crianças em vez de se tornarem como crianças”. Ou ainda “a fé pode implicar sacrificium intellectus contanto que exista um intelecto para sacrificar”.
Quanto a isso, Merton surge implacável em vários de seus livros, para com aqueles monges submissos, passivos, com problemas adolescentes de identidade, sem convicções próprias.
“Essas pessoas não estão na noite mística das iluminações sobre-humanas, mas sim na noite sub-humana e psicólogica da despersonalização e da falta de identidade. Deus não está pedindo que sejam sub-humanas e permaneçam sem identidade.Quer que se tornem pessoas, para que possam amá-lO e entregarem-se totalmente à sua Verdade”.[34]
“Sua inocência era fictícia (…) Era a ignorância narcisista do bebê, não o vazio do santo, que é movido, sem reflexão ou auto-consciência, pela graça de Deus”.[35]
“Na pureza da inocência original, tudo é realizado em nós, mas sem nós (…) Antes, porém, de atingirmos, esse nível, precisamos também aprender a operar no outro plano do “conhecimento” – scientia – onde a graça age em nós mas “não sem nós”.”[36]
No caminho do conhecimento à inocência, a inocência não deve expulsar nem destruir o conhecimento, na visão de Merton.
Mas ao desejar profundamente a inocência e se erguer da condição de “queda”, o oposto se constela e o processo se dá, ao mesmo tempo, para cima e para baixo. Santo Antão, considerado por Merton, o primeiro e maior eremita do deserto, enfrentou o duro combate com o demônio para reconquistar a inocência original.
O conhecimento é oferecido pelo demônio como “algo melhor”, “mais semelhante a Deus” (como simbolicamente Merton interpreta a passagem do Gênese).
O conhecimento é domínio perigoso, cheio de artimanhas demoníacas. Vale lembrar, aqui, as passagens referentes ao “caráter luciferiano” das vozes interiores, no texto “A Voz do Íntimo”, de Jung, a qual já nos referimos.
Os padres do deserto sabiam do risco corrido pelo monge “presumidamente puro”, era quando se dava o pior dos combates, travado contra o mais sutil dos apegos: o orgulho espiritual. Nesse caso, a humildade se tornava essencial.
Thomas Merton lançou mão de trechos da obra de Santo Agostinho e os comenta:
“O conhecimento do bem e do mal começa com a fruição das coisas sensíveis e temporais queridas por elas mesmas. É esse ato que torna a alma consciente de si própria e a centra em seu próprio prazer. Isso desperta a alma para o que nela é bom e mau “por si mesmo” (…) opera-se uma completa mudança de perspectiva e deixando a unidade e a sabedoria (identificadas ao vazio e à pureza), a alma cai num estado de dualismo. Fica então consciente tanto de si própria como de Deus como seres separados”. [37]
“A alma torna-se inchada em lugar de edificada”. O conhecimento infla, como falou São Paulo.
O apego às coisas temporais carrega a alma de peso e a personalidade “gravita para baixo” na direção de “coisas mais baixas na escala do ser do que a própria pessoa”.
Há aí impressionante semelhança com o pensamento oriental: o apego à autoconsciência do eu como sendo o início de todo o mal.
Nesse sentido, o desarmar da autoconsciência obsessiva, o desativar da auto-ilusão, é a estratégia Zen de combate ao mal. Como colocou Merton, o próprio peso da alma é ilusão “resultado da inchação do orgulho, mero peso oco”. Ilusão que a presença do Cristo desvanece.
Merton viu contribuição significativa na experiência dos monges orientais, nesses estágios delicados de recuperação da inocência (para os budistas nunca perdida efetivamente).
Mas Merton, não entendeu a restauração do estado de inocência e pureza do coração como fim último, a meta derradeira do desenvolvimento da personalidade do monge. Na verdade, Merton entendeu como “um começar de novo”, “uma nova chance”.
Para Merton, a humanidade está nos tempos do fim e essa perspectiva escatológica, que não existe no budismo, prevê “a obra da nova criação”, “a restauração de todas as coisas em Cristo”.
A obra que unirá todas as pessoas em uma só Pessoa. Nesse sentido, será necessária uma preparação “não para continuação da luta entre o bem e o mal”, mas para a completação da vitória do Cristo, já realizada na cruz.
Para aquele que apreendeu a natureza dos tempos do fim, a proposta de “viver sua vida cotidiana e ordinária com simplidade de coração” fará todo o sentido. Simplicidade que liberta de “qualquer preocupação legalista em relação aos alimentos certos ou errados, maneiras certas ou erradas de viver”.
Thomas Merton tratou, nos tempos do fim, da formação de monges, que por profunda vocação, encontrariam maturidade transcultural, numa busca de universalização e integração final.
“Pensar nessas coisas, especular sobre elas, é talvez, afastar-se do vazio. Mas é uma atividade de fé que pertence ao nosso domínio de conhecimento e nos condiciona a uma inocência superior e mais vigilante: a inocência das virgens prudentes que vigiam com lâmpadas acesas, num vazio iluminado pela glória da Palavra divina e inflamado pela presença do Espírito Santo”. [38]
“O conhecimento autêntico de
nós mesmos, nos incita a
constatarmos o pouco que
somos e a admitirmos nosso
nada”
Erna van de Winckel
Thomas Merton, como homem e como monge, viveu vida amorosa, vida intelectual, vida poética e vida religiosa.
Até o final defendeu a necessidade de viver um pouco de tudo, para aceitar um pouco de tudo e aí tornar-se plenamente católico.
Ser um pouco ateu, viver a “incapacidade de crer”, fez parte da primeira metade da vida de Merton, como da maior parte de sua geração. Mais tarde, já dentro da vida religiosa, nas “crises de fé”, essa dimensão foi incluída como decisiva para o crescimento autêntico, para atingir níveis mais profundos de auto-conhecimento.
Auto-conhecimento que enquanto “eu” leva à profunda irrelevância do ser, com s minúsculo. E não se trata aqui de especulação intelectual sobre o incognoscível.
“Considerava a pessoa que eu era então, a pessoa resultante de Cambridge, e via com nitidez bastante que eu era o produto dos nossos tempos, da minha sociedade e da minha classe. Eu era algo que fora gerado pelo egoísmo e pela irresponsabilidade do século materialista em que vivia. Contudo, deixei de ver que a minha época e a minha classe apenas tinham a desempenhar nisso um papel acidental. Davam ao meu egoísmo, ao meu orgulho e aos meus outros pecados um caráter peculiar de petulância arrogante própria às características do século. Por baixo existia a mesma antiga história de avidez, ambição e narcisismo, as três concupiscências nutridas no subsolo rico e podre do que tecnicamente se chama ‘o mundo’ em todos os séculos e em todas as classes”.[39]
O sujeito, que tratava da “pessoa” acima, já transformado, tratou da fé em Jesus Cristo como verdadeiro filho de Deus, como sendo dom da Graça (“Ninguém chega ao Cristo a não ser impelido pelo Pai”[40]). Na plenitude da oração, Merton viveu a significância da Presença de Cristo.
O “mesmo” sujeito, anos mais tarde, em sua caminhada espiritual, permitiu-se uma profunda experiência de meditação. Pesquisou e escreveu sobre a experiência como sendo “conscientização pura”, experiência direta que ia além da consciência reflexiva. Awareness – “pura conscientização” do Ser – não “consciência de”.
No instante do lampejo, o sujeito se desvaneceu e a pessoa estava em sua base de “pura conscientização”. Posteriormente, ressurgiu novamente o sujeito que experiência e observa auto-conscientemente mas, a partir daí, cada vez menos centrado em si. Soube mais da sua irrelevância.
O engrandecimento da pessoa cristã, em Merton, se dá na vivência do Ser, via não-ser. E precisou da atmosfera oriental, interior, que Merton respirou na cabana próxima aos bosques de Getsêmani.
Suas vivências, pós metanoia, intensificaram a presença do monge na renúncia, na pobreza e na pureza de coração. Seu livro “A Montanha dos Sete Patamares” tem caráter autobiográfico (vai até os primeiros meses de mosteiro), publicado em 1948, teve várias edições e foi, provavelmente, um dos seus livros mais vendidos. Os direitos autorais de todos os seus livros foram entregues à Ordem Monástica.
A renúncia da persona – própria da vocação de monge – foi absoluta em Merton. Como escritor, não se notava qualquer concessão no sentido de estética de linguagem, preocupações acadêmicas e outras questões menores. Absoluto compromisso com a verdade, mesmo quando a tênue persona de monge cristão foi se rasgando para a experiência oriental. Rasgou-se a persona mas ficou o compromisso do coração cristão, aberto a outras culturas e religiões.
Sua independência e noção da própria individualidade se fez marcante já em 1930 (“soltar-me de todos e seguir sozinho o meu caminho”)[41] e foi se lapidando em polidez em sua resistência, para com os que se opusessem ao ímpeto de abrir seu próprio caminho. Qualidades que sobreviveram a todas as desintegrações e ressurgiram a cada etapa de desenvolvimento da pessoa de Merton.
A independência e coragem, para não sucumbir às exigências institucionais, foram marcantes em Merton até o fim. Em sua última palestra (1968, em Calcutá), sobre vida monacal, Merton se viu representando aquelas pessoas estranhas, marginalizadas, os poetas, os artistas, os eremitas sem eremitério.
Estudioso dos grandes Santos, das grandes Tradições Ocidentais e Orientais, Merton encontrava espaço, em seus textos, para falar de um eremita quase desconhecido, que após 30 anos de solidão morreu em “odores de santidade”, ou em seu “Diário da Ásia”, sobre seu encontro com um homem simples, tibetano, recém saído de uma caverna, após longa solidão.
Seu grande empenho, pouco antes de morrer, foi ajudar no processo de Renovação Monástica de sua ordem. Viu monges preocupados em “produzir” em suas “orações de petição” para se sentirem “realizando algo”, absorvidos pela cultura produtivista que atingiu a todos. Monges que não avançavam por temor às dúvidas e questionamentos comuns à atmosfera ateísta e materialista dos nossos tempos. Dúvidas que precisavam ser aceitas, suportadas e ultrapassadas para que se chegasse à verdadeira segurança. Tão importante em tempos de fanatismo ideológico e religioso, de egocentrismo, individualismo e auto-conscientização obsessiva em prejuízo da essência humana.
Merton, em seu empenho de Renovação, trabalhou no sentido de formar monges com maturidade transcultural e os vislumbrou caminhando entre as pessoas de todas as nacionalidades, raças, credos e classes, com seus olhares compassivos e suas mentes abertas, em convivência pacífica, sem julgamentos nos tempos do julgamento, nos tempos do fim. Tempos em que o olhar da Compaixão é urgência profunda.
A transformação da imagem de Deus em Merton, desde seus primeiros livros (especialmente os de caráter autobiográfico, como “A Montanha dos Sete Patamares” e “O Signo de Jonas”), até o final, caminhou no sentido da expressão da Compaixão. A imago Dei, do Merton jovem, foi como em todos nós, carregada de enorme Temor e Cobrança.
Nesse sentido, sua sólida formação intelectual – com todos os riscos de inflação e egoísmo – deve ter contribuído para tamanha transformação. No decorrer do tempo, a postura grave em relação ao mundo vai se transformando em abertura sincrônica aos desenvolvimentos no meio religioso pós-Concílio Vaticano II. Merton passa a entender que Deus também nos fala através dos acontecimentos no mundo. Os sinais da crise precisavam ser interpretados pelos homens de Religião.
Merton sabia que o monge não podia olhar para esses sinais no mundo com a mentalidade da Idade Média. Tornaram-se, para ele, fundamentais, além da sólida formação teológica, informações vindas dos campos da filosofia, psicologia, sociologia e religiões comparadas, principalmente, para a mentalidade moderna de um monge do nosso século.
A imago Dei arraigada nas profundezas da psique tende, assim, à transformação nesse diálogo com a consciência racional dos que estimulam a reflexão intelectual, como C. A. Meier na mesma época (1967) viria a colocar.
Thomas Merton aprovou a iniciativa de alguns de seus companheiros monges que procuravam ajuda psiquiátrica, em situações de grande crise de depressão e angústia e, entendeu, muitas delas, como próprias do enorme bloqueio causado pelo super-controle interno e externo a que eram submetidos. Soube da necessidade de liberação da energia represada – “para realização de potencialidades obscuras no interior do ser”. Desenvolveu visão prospectiva que raríssimos no mundo religioso vieram a compreender.
A obsessão com a auto-afirmação e a hipertrofia da auto-conscientização na identidade dominante no homem moderno ocidental, levaram à orientalização do pensamento de Merton, no início dos anos 60. Mas, o objetivo de sua individuação (como podemos confirmar nos diálogos com Suzuki) foi atingir a plenitude da pessoa cristã: o “primitivo ideal cristão do Reino de Deus”, como Jung já o dissera.
Atingido o Reino, ou como Merton preferiu (citando Mateus 6, 33 – em “Homem Algum é uma Ilha”), atendido o convite de Deus para a festa no Reino “(…) todas as coisas, vos serão dadas em acréscimo”. Buscar o Reino, a essência do Primeiro Mandamento, seria, então, a condição para a pessoa centrar-se no Divino, vivenciar o Sagrado, muito além do psicológico e do simbólico, como diz Winckel.
No caminho de realização plena do sentido interno, Merton foi chamado a escalar outros degraus no processo de desenvolvimento de uma consciência mais ampla da humanidade na pessoa: a sabedoria das tradições orientais.
Antes, na segunda metade da década de 50, Merton estudou profundamente as obras de São João da Cruz, segundo, o Papa Pio XI, o “mais seguro” teólogo-místico da Igreja, o príncipe dos teólogos apofáticos que, ao lado de São Gregório de Nissa (fundador da escola apofática), foi o grande mestre do conhecimento “às escuras”.
Foi um período em que Merton enfrentou as últimas “aranhas do mundo” (…) que prendem aqueles mais pesados no “visgo desta vida” (citação de S. Gregório) e, numa linguagem Junguiana, nas profundezas libertou-se do Arquétipo da Grande Mãe (o colo da Instituição Igreja).
Merton, nessa época, advertiu para os riscos do falso misticismo e dos caminhos perigosos do gnosticismo. O estudo dos conhecimentos da escola apofática gerou o livro “Ascensão para a Verdade”, que Merton dedicou à Nossa Senhora do Monte Carmelo, afirmando, nas suas primeiras linhas, que a própria substância de tal livro justificava a necessidade de dedicá-lo à Virgem.
A presença inspiradora e protetora da Virgem, como as citações freqüentes de Maria, irmã de Marta (símbolo da ânima), junto aos conhecimentos da tradição apofática e dos Eclesiastes, livraram Thomas Merton dos misticismos exaltados, não se notando sinais de estágio “personalidade mana” em seu processo.
Na abertura de “Ascensão para a Verdade” Merton defendeu a urgência de restauração da “vida interior” no homem moderno, tão apartado da contemplação e vivendo, como falou o Papa Pio XII, a “heresia da ação”. E salientando a gravidade da crise espiritual do nosso século, enfatizou a importância de Jung em seu trabalho de recuperação do instinto religioso no homem, de sua função religiosa natural.
Em “Ascensão para a Verdade”, Thomas Merton fez, provavelmente, sua primeira citação de Jung (correspondendo à frase da p. 264 de “O Homem Moderno à Procura de uma Alma”):
“Tratei de muitas centenas de pacientes: a maior parte eram protestantes, os judeus eram em menor número e não havia entre eles mais que cinco ou seis católicos. Entre todos os pacientes que tive na segunda metade da vida (…) não houve um só cujo problema não fosse, em última análise, encontrar uma visão religiosa da vida. Pode-se dizer que cada um deles caiu doente por ter perdido aquilo que as religiões vivas de cada época deram a seus seguidores e nenhum foi realmente curado sem ter recuperado a sua visão religiosa”.[42]
Nessa época, com mais de 15 anos de vida monástica, avançado nas explorações de seu inconsciente, mergulhado nas profundezas de sua solidão, Merton lançou-se na busca de auto-liberação, que para Jung não era acreditada no meio cristão. O monge católico viveu a angústia dos opostos, suportou o conflito e acreditou na graça da auto-libertação, dificilmente vinda sem ajuda técnica (como diria Jung), principalmente nos estágios em que foi compelido a beber das fontes da sabedoria oriental (a pouca direção espiritual que recebeu nessa fase, veio de sua correspondência com Suzuki).
Apesar de “na nossa religião nada encorajar a idéia do poder auto-liberador da mente” (Jung), Merton não só viveu a experiência dentro de si e da Ordem, como ao final proclamou ser esta a “tarefa, por excelência, do monge”: auto-libertação obtida, não de forma esotérica “mas por ter experimentado o terreno de seu próprio ser de tal modo que conhece o segredo da libertação e pode de algum modo comunicar isso aos outros”. Palavras encontradas em sua última palestra, no dia de sua morte, em Bancoc – 10 de dezembro de 1968.
Ao final do processo de individuação, Thomas Merton viu, como Jung, que “o tempo das estruturas já passou”, “cada um tem de andar sozinho” no trabalho de transformação interior, já que o essencial “está em algo mais profundo do que uma regra”.
O essencial, para Merton, estava na recuperação da inocência, na transformação da consciência pelo conhecimento da verdade em cada pessoa, pelo caminho da solidão e do cultivo da vida interior.
Num processo de individuação absolutamente singular, depois das desintegrações e reintegrações, Merton sintetizou suas vivências espirituais com a concordância básica entre cristianismo e budismo quanto à fonte de todos os nossos problemas: a ignorância fundamental (avidya = pecado original) advinda da ilusão de existência separada, que aliena da interdependência de todos os seres.
Síntese ocidente-oriente, que Jung teria tratado com grandes reservas, nos processos de individuação, analisados no modelo médico.
Esther Harding, em seu texto “Contribuições de Jung para o Simbolismo Religioso”, verificou a presença de três estágios principais na vida religiosa: Renascimento, Transformação e Meta.
Thomas Merton foi batizado aos 23 anos e seu renascimento se plenificou pouco tempo depois no Mosteiro, então como Frei Louis.
O estágio de transformação, para Harding. No que se refere à parte não-pessoal da psique, das energias do inconsciente, em Thomas Merton significou a total renúncia do ego e entrega ao mistério da Presença Divina. A magnitude da transformação em seu processo de individuação, por misteriosos desígnios, levou a pessoa cristã em Merton saborear energias diferentes, estados de consciência de outro hemisfério, que atingiram o ápice na jornada do viajor para o oriente distante.
Pouco tempo antes de sua morte, em seus últimos textos, Merton revelou profunda compreensão de sua própria jornada. Usou linguagens diferentes para expressar suas etapas. Por vezes, a meta foi o “plenamente acordado” (awareness do budismo) com a vigilância das virgens, outras a “Renúncia Total” da “Morte e Ressurreição em Cristo”, mas a meta, que se transformou em capítulo do livro “Contemplação num Mundo de Ação”, foi a “Integração Final” (Em Direção a uma “Terapia Monástica”), meta em que a pessoa atinge sua condição universal. “Não se acha mais dependente das limitações da cultura” em que foi gerada. Abriu-se para o “estado de visão interior de complementaridade” de tudo na vida, fazendo, finalmente, da pessoa compreensiva, um instrumento dócil ao Espírito. A pessoa, então, alcançou a identidade mais profunda, universal, “quando se identifica com todas as pessoas”, “é tudo para todos”.
Os monges que atingissem a Integração Final seriam os artífices da paz, plenos de não-intencionalidade, de pobreza e de vazio, como assim diriam: “São João da Cruz, os primeiros franciscanos, os sufis, os mestres taoistas e zenbudistas”.
Thomas Merton morreu na consecução da meta. Um choque elétrico, num quarto do Oriental Hotel, em Bancoc, deu fim à sua viagem.
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______ 1986. Psicologia e Religião Oriental. 3ª edição. Petrópolis: Vozes.
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WINCKEL, Erna van de 1985. Do Inconsciente a Deus. Sào Paulo: Paulinas.
1915 – Nascimento de Thomas Merton, em Prades, França, no dia 31 de janeiro.
1916 – Com um ano de idade, sua família se muda para os EUA (casa dos avós maternos).
1917 – Nasce John Paul, único irmão de Thomas Merton.
!922 – Morre sua mãe, Ruth Merton, de câncer.
1928 – Merton e seu pai mudam-se para a Inglaterra.
1931 – Morre seu pai, Owen Merton, de tumor cerebral.
1933 – Merton é admitido com distinção no Colégio Clare, na Universidade de Cambridge.
1935 – Merton muda-se para os EUA e transfere-se para a Universidade de Colúmbia.
1936 – Morre o avô materno.
1937 – Morre a avó materna.
1938 – Thomas Merton é batizado e recebe a Primeira Comunhão.
1939 – Thomas Merton trabalha em sua tese de Ph.D., na Universidade de Colúmbia, sobre Gerard Manley Hopkins, jesuíta, poeta e escritor inglês do século XIX.
1941 – Entrada de Thomas Merton para o Mosteiro Trapista de Getsêmani.
1943 – Morre John Paul, seu único irmão, numa missão sobre o Mar do Norte.
1951 – Thomas Merton naturaliza-se norte-americano.
1955 – Viagem a Minnesota para sessões de psicanálise durante curto período.
1964 – Viagem a New York – encontro com Suzuki.
1968 – Viagem a Ásia.
1968 – Morre Thomas Merton, em Bancoc, no dia 10 de dezembro, após dois meses e meio de viagem pela Ásia.
[1]MERTON, T. Reflexões de um Expectador Culpado. p. 130
[2]MERTON, T. Ibid., p. 241.
[3]JUNG, C. G. Apud. MERTON, T. Ibid., p.292.
[4]MERTON, T. Ibid., p. 244.
[5] NG, C. G. Apud. MERTON, T. Contemplação num Mundo de Ação, p. 205.
[6] Esta palestra é parte integrante do “Tratado: Da Formação da Personalidade – Realidade da Alma”, publicado em 1934. In JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade.
[7] JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade.
[8] MERTON, T. Questões Abertas, p. 225. Grifo nosso.
[9] MERTON, T. Ibid., p. 206.
[10] MERTON, T. Ibid., p. 214.
[11] MERTON, T. Ibid., p. 204.
[12] MERTON, T. Ibid., p. 207.
[13] MERTON, T. Ibid., p.229.
[14] MERTON, T. Ibid., p. 230.
[15] MERTON, T. Zen e as Aves de Rapina, p. 37.
[16] MERTON, T. ZEN e as Aves de Rapina, p. 13.
[17] MERTON, T. Reflexões de um Expectador Culpado, p. 127.
[18] MERTON, T. A Via de Chuang Tzu, p.16.
[19] I Ching, p. 94.
[20] Chuan Tzu, apud MERTON, T. A Via de Chuang Tzu, p.27.
[21] Talidade é suchness – ser tal qual se é, inocência, pureza de coração.
[22] MERTON, T. Ibid., p. 33.
[23] MERTON, T. Ibid., p. 32.
[24] MERTON, T. Ibid., p. 32.
[25] MERTON. T. Ibid., p. 36.
[26] Chuang Tzu, apud MERTON, T. A Via de Chuang Tzu, p. 193.
[27] MERTON, T. Zen e as Aves de Rapina, p. 91.
[28] MERTON, T. Ibid., p. 99.
[29] WINCKEL, Erna van de. Do Inconsciente a Deus, p. 36.
[30] JUNG, C. G., apud WINCKEL, E. Ibid., p.36.
[31] MERTON, T. Zen e as Aves de Rapina, p. 41.
[32] MERTON, T, O Diário da Ásia, p. 222.
[33] MERTON, T. Zen e as Aves de Rapina, p. 106/107.
[34] MERTON, T. Contemplação num Mundo de Ação, p. 78.
[35] MERTON, T. Zen e as Aves de Rapina, p. 137.
[36] MERTON, T. Ibid., p. 136, grifo nosso.
[37] MERTON, T. Ibid., p. 141.
[38] MERTON, T. Ibid., p. 146.
[39] MERTON, T. A Montanha dos Sete Patamares, p. 150.
[40] MERTON, T. Ibid., p. 232.
[41] MERTON, T. Ibid., p. 87.
[42] JUNG, C. G. Apud MERTON, T. Ascensão para a Verdade, p. 12.