Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de analista junguiano pelo Instituto Junguiano do Paraná
– IJPR, filiado a Associação Junguiana do Brasil – AJB.
Orientadora: Renata Cunha Wenth
O que é Vida?
Energia é vida, a alma que verte no olhar, que busca e segue.
“A cintilação irônica e marota em seus olhos, em evidência sempre que ele queria troçar ou ironizar sobre alguma coisa”
Richard Evans
“Escolho meus amigos não pela pele, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante”
Oscar Wilde
A morte é o prolongamento da vida na nova geração. “O ‘indivíduo’ não é tão completo, no tempo, quanto fomos ensinados a crer.”
Lynn Margulis
Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira.
Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte
— que é uma questão de vida ou morte — será arte?
Ferreira Gullar (Traduzir-se – trecho do poema)
Querida Renata,
Sabia o que buscava, com sua orientação: sensibilidade, delicadeza e profundidade em abordar todos temas. Conhecimento. Não sabia que sua paciência seria tão grande, e aproveitei a combinação toda sua de firmeza e doçura.
Além de tudo isso descobri sua capacidade de traduzir com calma aquilo que em mim me parecia só loucura. Aqui entra o Gullar. Você faz poesia em cada leitura, mesmo um idioma estranho se traduz em arte ao passar por você.
O trecho d’ A Flauta Mágica na próxima página vem cheio de energia! Primeiro libreto para uma ópera que não escrito em italiano. Mozart, muito criticado à época por isso, queria em alemão no original, para aproximar toda gente da arte. Popularizar a cultura. Com isso presto homenagem a sua generosidade em compartilhar. Poucos entendem o que é generosidade, ainda mais raros são aqueles que a praticam.
Sua confiança em mim foi contagiante, em mais um ato de pura generosidade. Eu já perdia a fé, mas ela se renovava em cada encontro. Foi de importância vital. Aprendi muito. Não seria surpresa, pois sua presença, sempre amorosa e instigante, é um bálsamo para o espírito e a alma desde os tempos da formação. A cada conversa renovam-se as ganas para estudar, até hoje é assim.
Enfim, nem sei se um dia vou conseguir agradecer o suficiente. Então fica a dívida eterna. Um permanente obrigado.
“Os raios do sol expulsam a noite!
Destroem o poder roubado pelas trevas, restauram a ordem!”
…
“Vivam os eleitos, os arautos da luz! Rendamos graças à Isis e Osiris!
Aos fortes e vitoriosos, a recompensa! Coroados serão, os justos e bons!”
Emanuel Schikaneder
Libreto para a ópera “A Flauta Mágica”
Cena final, o anúncio de Sarastro e a louvação do coro, ao êxito de Tamino e Pamina
“A arte é uma alquimia que transforma sofrimento em alegria, isto é, em beleza.”
Ferreira Gullar
em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, 14 de agosto de 2016
Energia é um conceito que revela a transformação, a possibilidade de transformação e mobilização, a própria criação e o poder do criador, incluindo sua vontade realizadora. Trechos da história da vida do autor são relatados, em diversas épocas de vida e áreas de atuação, na engenharia, psicologia e prática do Tai Chi Chuan: é a energia que o move. Sob o pano de fundo do tema da energia, esse conceito é explorado conforme usado por Jung, especialmente a definição de energia, exposta no volume VIII de suas obras completas. Partindo das origens conceituais da Física, é feita uma descrição sobre o que é energia nas ciências exatas, e sobre suas aplicações, procurando uma linguagem prática e ilustrativa. A partir do uso diversificado, e dos vários entendimentos que a palavra energia suscita, assim como de outros termos científicos, é abordada a ideia e a condição psicológica que a palavra enseja dentro de cada um. O passeio entre as ideias de energia dentro e fora do que se considera ciência, põe à mostra impropriedades na utilização de conceitos, resultante do trânsito liberal do pensamento entre disciplinas. A diversidade entre as diferentes conceituações sobre energia é relacionada ao aspecto mitopoético da psique, sempre a propor sentidos de vida.
Palavras-Chave: Energia, Energia Psíquica, Modelos, Ciência, Impropriedades Intelectuais, Impropriedades no uso de Conceitos.
Energy is a concept that reveals the transformation, the possibility of transformation and mobilization, the creation itself and the power of the creator, including his will to achieve. Excerpts from the author’s life history are reported, in different times of life and areas of occupation, in the engineering, psychology and practice of Tai Chi Chuan: those are the energies that move him. Under the backdrop of the energy theme, this concept is explored as used by Jung, especially the definition of energy, exposed in Volume VIII of his Collected Works. Starting from the conceptual origins of Physics, a description is made of ‘what is energy’ in the exact sciences, and about the applications for this concept, looking for a practical and illustrative language. From the diversified use, and from the various understandings that the word energy arouses, as well as from other scientific terms, the idea and the psychological condition that the word gives within each one is approached. The journay around those different ideas of energy, inside and outside of what is considered science, exposes improprieties in the use of concepts resulting from the liberal transit of thought between disciplines. The diversity among the different conceptualizations on energy is then related to the mythopoetic aspect of the psyche, always proposing alternatives for life directions.
Keywords: Energy, Psychic Energy, Models, Science, Intellectual Improprieties, Improprieties and misuse of Concepts.
OC VIII/1 A Energia Psíquica
OC VIII/2 A Natureza da Psique
OC XVIII/1 A Vida Simbólica: escritos diversos
OC XIII Estudos Alquímicos
OC IV Freud e a Psicanálise
OC XV O Espírito na Arte e na Ciência
LV O Livro Vermelho: Liber Novus, edição sem ilustrações
OC IX/1 Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo
OC VII/1 Psicologia do Inconsciente
Psychology of the Unconscious: a study of the transformations and symbolisms of the libido, a contribution to the history of the evolution of thought
SSC Seminários sobre Sonhos de Crianças
OC V Símbolos da Transformação
OC VI Tipos Psicológicos
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
I. MOTIVAÇÃO: DE ONDE VEM A ENERGIA PARA ESTE TRABALHO
I.1 Espanto: a curiosidade que movimenta (um pouco de história pessoal)
I.1.1 Sobre o centro do círculo, a unidade, e como se produz algum saber
I.1.2 Epistemologia
I.2 Energia, Psicologia e Tai Chi: para sobreviver é preciso se reinventar
I.2.1 O Espírito
I.2.2 Entre espírito e matéria
I.2.3 Psicologia e Tai Chi
II CONCEITO DE ENERGIA EM C. G. JUNG E NA FÍSICA
II.1 Conceitos de Energia
II.2 Conceito de Energia na Física
II.2.1 Força versus Energia
II.2.2 Força é grandeza vetorial – energia é grandeza escalar
II.2.3 Calor e luz, eletromagnetismo, energia nuclear
II.3 A Energia na Psicologia Analítica
II.3.1. Exemplos a partir de casos clínicos
II.4 Tai Chi Chuan e energia
II.5 Modelos
III IMPROPRIEDADES NO USO DO CONCEITO DE ENERGIA
III.1 Impropriedades intelectuais e pós verdade
III.2 Diferentes apropriações da ideia de energia
III.3 Transporte de conceitos entre as disciplinas: limites da analogia
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fotografias no pré-texto
Esquerda: disponível em www.thesap.org.uk/saps-foundations-course
Acesso em 23 de fevereiro de 2018
Direita: acervo do autor
Citações abaixo das fotografias
Figura 1
Ñamandu, símbolo da tradição cosmogônica guarani
Citações conforme o Tupã Tenondé (JECUPÉ, 2001, p. 24-26)
Figura 2
Modelo atômico de Rutherford
Citações conforme Física Moderna (CARUSO, 2006, p. 33)
Figura 3
Tai Chi, símbolo tradicional da cultura oriental e do taoísmo
Citações conforme o Tao Te Ching, verbete 11 (TZE, 2006/2011)
Figura 4
Ave de Fogo
Disponível em www.adinamicadoinvisivel.blogspot.com
Acesso em 10 de maio de 2014
Figura 5
Laboratório de um alquimista – do pintor belga Bruegel, o Velho em (CARUSO, 2006, p. 33)
Figura idêntica ao livro, obtida na internet em http://pt.wahooart.com/@@/7YUDHC-Pieter-Bruegel-The-Elder- O-Alquimista
Acesso em 20 de fevereiro de 2018
Figura 6
Hexagrama 61 do I Ching (I Ching, 2007, p. 466)
Figura similar editada diretamente pelo autor.
As motivações para este trabalho são diversas.
Do ponto de vista pessoal, o assunto desperta o caráter investigativo, a curiosidade que, uma vez ativada, é motivação para a vida em si. A descrição de partes da história pessoal quer atender a este aspecto, além do que, ao falar do que me motivou ao longo da vida é falar de energia em seu sentido primeiro. Algumas passagens da vida, como deve acontecer com todos que levam uma vida reflexiva, conduzem a um possível entendimento apenas muito depois dos fatos vividos.
Existe uma outra demanda complementar para escrever sobre este tema, e que vem de fora, que seria a expectativa de colegas, e minha mesma, de poder dar conta de todos aspectos quando o assunto é “energia”. Isto decorre mais uma vez da minha história de vida, das formações e experiências profissionais anteriores, da minha experiência na lida com o lado objetivo da realidade. Deste modo, o trabalho pretende abordar aspectos conceituais de energia, discutir como Jung abordou o tema sob esse viés, e delimitar as possibilidades que se abrem a partir da articulação do tema com a psicologia.
A partir daí, abre-se uma discussão mais ampla com consequências na forma de produzir conhecimento, que contemple os cuidados necessários para cruzar assuntos de áreas às vezes díspares como a Física, Matemática, Psicologia, Filosofia e Religião.
Pretendo que essa discussão possa servir de fonte de reflexão particularmente em um momento onde a multidisciplinaridade e transdisciplinaridade são uma quase obrigação, trazendo consigo um enorme potencial de descoberta, e igualmente de armadilhas. Energia é um termo que está ligado a transformação e criação (como “mana”), à cura do corpo e ao espírito; é assim que esse termo é evocado pelas pessoas em geral. Da mesma forma que o termo espírito pode designar uma entidade dotada de vida, mas não necessariamente de corpo, a palavra energia pode designar uma propriedade desse espírito, ou mesmo um fato ou material mais ou menos etéreo. Em certas religiões ou práticas de cura, pode-se lavar o corpo com ervas, ou “varrer” as energias negativas com movimentos de mão. Igualmente “energia” pode ser usado como um qualitativo de capacidade ou intensidade moral. Todos estes usos do termo energia são válidos conforme se respeite o uso contextual.
Quando as ciências objetivas se apropriam da palavra “energia” a partir do século XVIII, e lhe atribuem terminologia específica no século XIX, não ocorre, naturalmente, a revogação dos outros usos desse termo, o qual continua a evoluir por si, desagregado das
friezas da definição científica. Na ciência, “energia” é tolhido da sua amplidão de significados e reveste-se de definição bem específica e restrita, traduzindo um conceito de transformação, realização de trabalho, tanto na sua execução quanto no potencial de executar. É uma definição basilar que se estende para todas áreas científicas, apesar de sua simplicidade.
Fazer um recorte frio e preciso do conceito de energia, no âmbito do modelamento científico, é uma obrigação do cientista, e de ninguém mais. O termo energia é carregado de númen, e a ciência em si também o é, ainda mais quando o próprio cientista se identifica com o arquétipo do sábio, algumas vezes até de um deus. Com isso o leigo, ou mesmo um aficionado distraído, ao usar a ideia de energia, pode fazer seu númen multiplicado, se justificado (pretensamente) por outros termos tirados da ciência, num mecanismo talvez muitas vezes inconsciente.
Pode-se assistir a essa confusão de terminologias, ao buscar por “curas energéticas” e encontrar “Cura Quântica”, “Frequências de Brilho”, e outras, cada qual com sua terminologia e apropriação de termos onde a imaginação de quem fala e ouve voa muito para longe do que o uso científico ousaria.
Seria insensato, todavia, pretender que tais técnicas, ou ideias, acerca da energia, estejam intrinsecamente errados, de forma alguma. Cabe a cada profissional dentro de sua área olhar por sua responsabilidade de conduta e ética, no alcance profissional e mesmo pessoal.
É nesse sentido que no Capítulo I, os relatos de vida e a motivação do autor ganham significado, pois ao responder “o que move”, se está a abordar o desenvolvimento natural da ideia de energia como algo que brota por si, em cada um, junto à própria formação do pensamento acerca das coisas.
O Capítulo II, faz uma revisão do conceito de energia, na Física e na Psicologia, conforme desenvolvido por Jung. São exploradas as dificuldades na lida com a ideia de energia, decorrentes mesmo do conteúdo simbólico e arquetípico que o termo carrega. Informações acerca da energia no Tai Chi Chuan, são acrescentadas, conforme obtidas na prática e estudo dessa arte chinesa. O uso de modelos é abordado, na ciência e no pensamento comum, e as dificuldades que podem surgir no seu uso interdisciplinar.
O Capítulo III trata de como o descuido no uso de termos específicos das ciências, pode levar a um abuso da ciência e do conhecimento em geral, como por exemplo a inadequação de analogias. Casos específicos de impropriedades no uso de conceitos são examinados.
Nas Considerações Finais, se retomam as questões tratadas antes, e se questiona como a transgressão do pensamento, que busca a alma na frieza da ciência da matéria, pode conduzir até uma ideia materialista da alma, traindo o caráter simbólico dessa mesma busca.
Minha motivação ao abordar o tema do conceito de energia e as impropriedades de sua utilização vem, por um lado, de minhas próprias dificuldades sobre o assunto ao me debruçar sobre este estudo pela primeira vez na Psicologia (ou desde as primeiras e até hoje). Sentir dificuldade a partir de uma origem não esperada (pois achava que entendia sobre o tema), é desafiador.
Por outro lado, a motivação vem das origens da minha formação na área técnica e de engenharia, e da vida que me conduziu por esses caminhos até aqui, e quis que eu me aprofundasse na prática do Tai Chi Chuan – arte marcial que nos coloca face à própria energética pessoal, e diante da energia do outro, qual na psicoterapia.
Ao longo das discussões mais recentes nos seminários do curso de Formação de Analista Junguiano, não apenas diretamente neste tema, mas em cada tema que enseja um enfoque do ponto de vista energético, senti que havia uma expectativa de colegas que depositavam em mim a esperança de um esclarecimento sobre o assunto por ser um engenheiro da área. Não pude me furtar a uma resposta, que vem na forma desse ensaio, embora não saibam eles o tamanho da dificuldade que eu mesmo enfrento aqui. Dificuldades estas instigadoras de reflexões.
Um pouco, cada um desses caminhos será percorrido neste capítulo do trabalho com o objetivo de clarear estas motivações.
Este engenheiro foi ainda antes, um técnico eletrônico de nível médio. Trabalho com eletrônica, a nível profissional, desde meados de 1975. Antes era um aficionado amador. Ainda criança, já aficionado amador, curioso, observador, prático. Também muito “metido”, que é o resultado destas qualidades quando não se consegue conter o que vem de dentro. Consertar coisas era uma compulsão, por isso me considero prático, não apenas pela oportunidade de desvendar, mas também pelo prazer da conquista de “ver funcionar”. Ver por dentro era obsessão, e ainda é.
Comecei com os grampos de roupa caídos aos pedaços pelo chão do quintal, próximos ao varal. O quintal era o local de diversão da infância, e os grampos antigos de madeira se espalhavam pelo chão em duas partes iguais justapostas por uma mola de arame; quando um dos pedaços de madeira se partia ficavam todas partes pelo chão. Então eu juntava dois pedaços bons novamente, forçava com os dedos o arame frouxo para dar novamente a pressão de mola, e voilá: grampo de novo. Para mim, nunca foram apenas pedaços de coisas (madeira, arame), jogados no chão careciam de funcionalidade, que é uma parte invisível das coisas. Isso me fascinava. Hoje sei que esse modo de ver está bem descrito no Taoísmo, onde as coisas em si são apenas parte da realidade, que só é completada com seu sentido funcional. Como consta no poema 11 do Tao te Ching: “A argila é trabalhada na forma de vasos: através da não-existência existe a utilidade do objeto” (LAO TSE, 2011, p. 75). É a não-argila, o oco, o vazio, que confere utilidade de vaso à argila.
A partir desta forma de viver e ver o mundo, tudo que parava de funcionar estava sujeito a ser aberto ao escrutínio da curiosidade. Sempre havia uma chave de fenda na caixa de ferramentas de meu pai, com a qual eu poderia procurar abrir tudo. Os plugues de certos aparelhos começavam a falhar … mas havia um parafuso ao alcance da vista, uma chave de fenda ao alcance da mão, e lá ia eu. Sabia de certa forma, que para consertar o aparelho, ele estaria fora da tomada e eu a salvo do choque. Um dia uma empregada me viu “consertando” uma tomada. Ela me assegurava que eu deveria emendar os fios juntos, e começamos a teimar (teimoso é outra qualidade): um fio em cada ponta da tomada, ou os dois juntos? Como não tinha acerto, eu avisei para ela que ia fazer juntando tudo e “ela ia ver no que vai dar”. Deu que produzi uma bela faísca. Sabia que havia fusíveis (disjuntores só mais tarde na história) na caixa de luz, mas dessa vez não chegou a abrir (eu sabia onde estavam os fusíveis de reserva). A faísca, a demonstração, ganhar a discussão, tudo me fascinava.
Na lista das coisas que estariam em risco nas minhas mãos, passaram: toca discos antigo (já era antigo ao fim dos anos 60), ferro de passar roupas, enceradeira, aspirador de pó, batedeira, liquidificador. E sobretudo meu trenzinho elétrico. Tudo me fascinava cada vez mais.
Durante o primeiro ou segundo ano do ginásio (quinto ou sexto ano do ensino fundamental), a disciplina de geometria me atraía de forma especial. Teoremas de Tales, triângulos de Pitágoras, ângulos e paralelas, adorava como tudo isso se encaixava, e desenvolvi uma habilidade especial (filho de desenhista técnico) e prazer com a matéria. Em uma noite, fui dormir e fiquei às voltas com o pensamento no círculo, suas tangentes e secantes, réguas e compassos. Me perseguiu a ideia de como seria possível saber o ponto central de um círculo caso não estivesse disponível o “furinho da ponta seca do compasso” que o desenhou. Num relance veio a solução, pela via de um exercício mental, e fui obrigado a levantar da cama e registrar tudo no papel. Na minha descoberta, por sinal correta, bastaria cruzar a mediatriz de duas secantes quaisquer em tal círculo. Anotei, conferi, fiquei radiante. E ainda radiante fui contar para a professora na manhã seguinte.
Tal professora ouviu o que eu dizia e nem pensou no que afirmava: “você viu isso em algum livro”. Isso é um balde de água fria, eu nem tinha livros dessa matéria. Eu apenas amava geometria, a matéria daquela professora, pela qual passei a nutrir um desprezo especial – pela pessoa, felizmente não pela geometria. A geometria me salvou muito nos estudos de matemática, na qual sempre tive dificuldades. A geometria me ajudou a compreender o espaço, as representações gráficas, o cálculo integral e diferencial, acho que até mesmo a estatística. Naquele ano e nos seguintes eu me divertia passando cola para os colegas, só nessa disciplina, sempre tive um certo medo de colar, mas aí, o passar a cola, era a expressão do meu desprezo para com esta professora. Se a prova era em várias versões, fazia a minha e a dos vizinhos e gabaritava tudo. Tem vezes que a vingança é doce.
Um resgate acerca dos grampos de roupa: as partes jogadas no chão não são um grampo; suas duas metades são idênticas, mas quando contrapostas são complementares e mantidas unidas pela força da mola que puxa para o centro. Assim, o centro faz a unidade. Só bem depois tive contato com o que seria um símbolo de unidade, como a mandala. Mesmo muito depois de iniciar uma busca pela minha unidade, numa época que não associava isso de forma alguma à descoberta do centro. O símbolo do centro assim como o conceito geral de símbolo veio bem depois daquela primordial experiência direta com símbolo. Mais recentemente, tive a felicidade de, num breve contato com a cultura Guarani, descobrir que o círculo com um ponto no meio é usado para representar a unidade, o número um, o vazio inicial da cosmogonia expresso nessa cultura (JECUPÉ, 2001, p. 21-33) e reproduzido na figura 1.
Um círculo, na geometria plana, é o lugar-comum a todos os pontos equidistantes a um centro, definido por outro ponto. Um ponto tem definição apenas na geometria, que é parte da teoria matemática, e não tem existência no mundo real. Igualmente uma circunferência, como definida acima, não é encontrada na natureza, tampouco pode ser feita pelo homem. Ambos são criações da imaginação, e nela permanecem. Não obstante são amplamente usados para a descrição das obras da natureza e as humanas. Comumente usa-se pontos e círculos na descrição de tudo que é criado pela natureza ou pelo homem, sem se dar conta que, ao fazê-lo, se está usando um modelo da pura imaginação. Igualmente imaginado e arquetípico é o vazio no centro de círculos, ou entre dois pontos; como um ócio da matéria, abre lugar e vez a tudo que é pouco iluminado, à cisão, ao indefinível, e ao mistério irresistível.
Figura 1 – Ñamandu, da cultura guarani.
Representa O Grande Mistério, O Imanifestado, o Um,
o Vazio Inicial a partir do qual tudo se enraizou e floresceu, Círculo desdobrado da sabedoria inaudível, não pronunciável.
(JECUPÉ, 2001)
A irresistível força que atrai para a descoberta do centro do círculo, não ocorre apenas para um insone aluno do ensino fundamental. Repete-se em cada mandala, e acaba produzindo seus efeitos nos mitos de criação, e na criação de mitos pelos cientistas. Criar um modelo na ciência tem algo de similar a criar um conto: é preciso imaginar o que a percepção não capta diretamente, e engendrar uma forma para representá-lo. A psique criativa não se fecha ao arquétipo em nenhum desses casos. Quando refletir bem ao arquétipo, tal engenhoso modelo imaginado obterá eco nas mentes das pessoas em geral, homens de ciência ou não, e pode vir a se tornar um mito. A partir da semelhança do sistema planetário para com modelo de Rutherford, ilustrado na figura 2, surgiu a afirmação de que “o macrocosmo repete o microcosmo”. Tal afirmação não se justifica na ciência, mas encontra fundamento arquetípico na alma, daí sua força e poder, que persistem para além das novas descobertas e modelos. Ganha vida própria na psique objetiva, sem relação com a ciência, como um mito. Em todo esse processo, desde o ato criador da invenção de um novo modelo científico, as duas formas de pensamento propostas por Jung, compõem nuances onde, pensar de forma dirigida, não tolhe o voo da mente livre (JUNG, 2011i, OC V, §4ss).
O vazio indefinível que a tudo precede, conforme o mito cosmogônico guarani, se repete com evidente nível de detalhe no pensamento taoista da cultura chinesa (figura 3), não apenas nessa ideia de vazio primordial, mas igualmente na noção do indescritível.
Figura 2 – O modelo de Rutherford para o átomo, proposto em 1911.
O modelo evoca o sistema planetário; em ambos, uma massa central é orbitada de maneira (quase) circular por elementos menores. Modelos anteriores previam um tipo de armação, como uma abóbada onde estariam suspensos os elementos que orbitam (como o modelo atômico de Thomson).
Um imenso vazio igualmente é previsto, nesses modelos, vazio que foi sempre questionado. (CARUSO, 2006)
Figura 3 – Símbolo tradicional do Tai Chi.
No centro o princípio imanifesto, o perfeito vazio, a perfeita não-ação – o Tao. A partir dele nascem os opostos yin e yang, a ação, e todas as coisas da criação.
O indefinível; o Tao que pode ser expressado, não é o Tao absoluto. (Tao Te Ching, verbete 11, em TZE, 2006)
As controvérsias científicas de vazio e éter, o vácuo atômico, estariam assentadas sobre as mesmas bases arquetípicas que essas cosmogonias? O coração é um músculo que faz força e bombeia sangue, porém é graças aos aurículos e ventrículos, os vazios internos a esse órgão, que o coração exerce sua função. “O que se identifica pela coisa material, tem sua função pelo imaterial” (TZE, 2006, p. 47).
Tive a grande oportunidade de fazer um segundo grau técnico, em eletrônica é claro. Formado depois de 3 anos e meio, trabalhei numa fábrica de aparelhos de som, depois voltei para a mesma escola técnica para dar aulas de laboratório durante um ano.
Quem irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração?
(RUSSO, 1986)
Há uma outra passagem sobre a questão do saber, do construir o saber, que vem dessa época, quando dava aulas de laboratório na escola técnica. Segue relatada aqui, na história do toca-discos – esse objeto em forma de um círculo com furo no meio.
Já que eu escrevia apostilas, comecei a escrever alguns artigos didáticos sobre eletrônica elementar para uma revista de eletrônica e áudio editada em São Paulo. Entregava textos e diagramas que eram publicados, em uma seção voltada para ensinar rudimentos de eletrônica. Nessa revista, um dia foi publicado algo notável. O editor publicou um artigo copiado de uma revista inglesa, que na verdade era um “primeiro de abril”. Para ingleses, a publicação de uma paródia, uma pegadinha no dia certo, é um hábito cultivado com o nome “april fools’ day”, assim como “poisson d’avril” para franceses. Mas aqui foi uma “derrapada” mesmo, das grandes, cometida pelos editores.
Estávamos mais ou menos em setembro de 1976, o artigo original tinha realmente saído dia primeiro de abril daquele ano na Europa. O texto falava de um revolucionário toca discos (ainda de vinil, é claro) no qual o prato não girava. Sobre o prato fixo, haveria um carrinho minúsculo que rodaria em círculos percorrendo a trilha do vinil, carregando consigo a agulha. A ideia é em princípio factível, e o artigo era cheio de detalhes “quase verossímeis”. Mas três pontos desvelavam o primeiro de abril.
Primeiro, afirmava o artigo que “foram investidas muitas horas de cálculos em computador” para concluir que o carrinho deveria girar em sentido anti-horário. Isso para compensar o fato de os pratos de toca discos rodarem no sentido horário! Note-se que usar “horas de computador” na época era um luxo. Como o sentido necessário ao giro do carrinho é óbvio, o autor fazia com isso uma ironia, algo para começar a fazer rir desde esse ponto, para quem estivesse com um mínimo de atenção no significado da leitura. Os ingleses em especial gostam desse tipo de humor, onde o riso vem como uma sequência de golpes no boxe: jab, direto, cruzado!
Segundo (o direto), uma foto do aparato exibia de forma grosseira, um circuito integrado com rodinhas tiradas de algum brinquedo de plástico, algo que qualquer pessoa mesmo pouco familiar com a eletrônica, olhando a foto com atenção, logo concluiria tratar- se de uma brincadeira.
Em terceiro lugar (o fatal cruzado, para o leitor ir às gargalhadas), no fechamento do artigo, havia a descrição de uma roupa de proteção para uso pelos ouvintes do aparelho: é que no método de transmissão do sinal sonoro a partir do carrinho até um amplificador, haveria emissão de radiações perigosas à saúde das pessoas, e por isso uma roupa especial, pesada, seria necessária, sendo essa a “única desvantagem da novidade”. Eu fui à lona.
Nunca vi uma nota de esclarecimento ou desculpas pelo abuso cometido contra os leitores (já que, nem sequer, era dia primeiro de abril). Nem tampouco, eu mesmo interpelei alguém da revista a esse respeito. Fiquei acabrunhado pelo confronto, eu ainda quase adolescente. Mas esse fato me intrigou tanto, que lembro até hoje, ainda nos detalhes. Muito depois fui entender que meu interesse já naquela época não era apenas a técnica em si (isso me fascinava), mas também a maneira de descobrir, a forma de obter o conhecimento, o acesso e a transmissão deste conhecimento (eu adorava o processo de ensinar, e ainda gosto). E me fascinou também a facilidade com que as pessoas, digamos, “embarcam” num boato, em algo inverossímil. Onde ficou o critério de cada um? É fácil perder a razão. Assim pude comprovar a força da palavra escrita, já havia me deparado antes com essa afirmação, de que a palavra escrita carrega o poder de verdade para o leitor.
Durante esse início de período como técnico, achava que já sabia tudo o que precisava para viver no mundo da eletricidade, projetos, consertos e construções. A empáfia (hoje dizem “está se achando” ou “está inflado” no mundo psi) logo cedeu, e acabei fazendo engenharia elétrica na Unicamp.
Ao entrar nessa universidade, logo percebi que havia muito trabalho para um técnico nos laboratórios. Durante seis meses trabalhei num laboratório de física denominado “Espalhamento Raman”, seu responsável era um professor indiano, e ali desenvolvi um aparelho que ajudava a calibrar o alinhamento do laser no interferômetro usado nas técnicas de espalhamento1. O ambiente era da física quântica, mas não levava esse nome. Quantum e quântico eram termos mais técnicos talvez, sem a conotação universalmente difusa de hoje, antes da moda quântica se implantar. Depois mudei para o laboratório de sistemas de controle, na engenharia, desenvolvendo o laboratório em si (os pesquisadores da instituição eram eminentemente teóricos e careciam de técnicos com experiência) e ao mesmo tempo fazendo pesquisas práticas na área de acionamento para motores veiculares.
Na época de me formar, eu estava um tanto desiludido com o ambiente acadêmico, pelo tipo de competição que eu via ali; decidi (junto com um amigo) mudar de área, e fui fazer estágio numa empresa de desenvolvimento de programas de computador para sistemas de controle. “Sistemas de controle” e “controle de sistemas” são termos que se intercambiam. São sistemas de computadores (programas, comunicação, e equipamentos eletrônicos) desenvolvidos para controlar, fazer funcionar, outros sistemas que são o objeto a ser controlado em si: tráfego aéreo, transmissão, geração e distribuição de energia elétrica, foram as áreas onde me dediquei durante 28 anos.
Aprendi que a maneira de engendrar e construir sistemas de controle, com equipes de dezenas de pessoas envolvidas, e no fim chegar-se a um todo coerente e funcionalmente útil, era escrever. E antes, ouvir! Aprendizado certamente utilizado na qualidade de psicoterapeuta.
Escrever em português ou mesmo em outra língua, descrever tudo minuciosamente, “desambiguadamente”, aquilo que se pretende que um tal sistema deve fazer. Para tanto, e antes disso, dedicar horas de escuta com os envolvidos nos mais variados setores, implicados no funcionamento e operação da aplicação (aquilo que se deseja enfim controlar: tráfego aéreo e instalações de geração, transmissão e distribuição de energia). Depois de tudo muito bem descrito, por escrito, revisar com cada uma das partes novamente, validando quais funções um tal sistema vai desempenhar dentro do processo onde será inserido. Por último, e a partir daí, pode-se programar computadores. Seguindo o método com persistência, pode nascer um sistema de computadores que seja útil, não uma hidra de lerna. Ao longo de todo trabalho, enquanto as mãos estão no sistema de computação, os ouvidos devem permanecer atentos ao conjunto dos usuários, e os olhos na direção da tecnologia.
Nunca me afastei verdadeiramente da eletrônica, pois o trabalho sempre o exigiu, nas interfaces desses sistemas com o processo em si: telecomunicações, automatismos, redes de dados, e os computadores propriamente. Além, e ao lado, do processo que vai ser controlado, há sempre uma imbricação de partes, cada qual com sua engenharia específica. Sistemas de operação nessas áreas do tráfego aéreo e energia elétrica podem ser bastante complexos. Culminam sempre em um centro de operação (a sala principal com seus operadores), são sistemas críticos para os processos como um todo, devem ser muito confiáveis, funcionam sem interrupção ao longo dos dias e dos anos, e têm interfaces de interesse de todas as demais áreas nas suas empresas, tanto operacionais como de manutenção, planejamento, etc.
Chego até estes detalhes na descrição, para trazer à tona um fato interessante. Ao desenvolver tais sistemas, para ser efetivo no trabalho de um modo global, é necessário criar ligações ativas com todos os envolvidos, quase sempre mais da metade das áreas da empresa. Em cada uma dessas ligações, o que mais deve funcionar no engenheiro que se propõe a desenvolver esses sistemas, é o ouvido, e um olhar atento! Na época, eu remetia à figura de um “papagaio de pirata”, principalmente no ombro do operador do sistema (uma função sempre no olho do furacão, e em geral desvalorizada), e aí aprender atentamente a natureza da lida, os interesses e dificuldades desse operador, e junto com os ouvidos afinados com todas as demais áreas envolvidas, buscar uma solução que seja realmente de auxílio. O termo “análise” é empregado para designar a atividade de esmiuçar o processo a ser controlado, e criar alguma solução de ajuda. Qual é, em parte, na psicoterapia.
Durante muito tempo, pensei que estes trabalhos na engenharia, de análise e desenvolvimento de sistemas de controle, diferenciavam-se sobremaneira do “fazer ciência”. Hoje considero que se pode pensar essa atividade como científica. Existe um objetivo geral e vários objetivos específicos bem definidos (a expectativa da obtenção de resultados diverge neste quesito, quando comparado ao desenvolvimento de pesquisas de base, por exemplo, mas é uma questão de “retorno de investimento”, mais do que no método), existe a prospecção de uma realidade que envolve várias áreas das relações humanas e da técnica em si, existe o desenvolvimento de modelos e documentação, há as etapas de desenvolvimento e implantação, quase sempre com o auxílio de outras ciências e engenharias específicas (isto inclui as diferenças dos objetivos, que são perseguidos diferentemente daqueles dos projetos científicos de base: lá se quer provar algo, aqui se procura construir algo).
A questão da universalização do conhecimento gerado, também é similar. Apesar das questões de sigilo (nas ciências ditas “puras” também há), os trabalhos dessa natureza são por um lado universalizados dentro das áreas afins da empresa, como necessidade intrínseca a adequação do seu funcionamento. E por outro lado, fora da empresa onde ocorre a aplicação propriamente, outras empresas afins a esta, e provedores de serviços e tecnologias, reúnem-se em seminários, publicam resultados e análises de casos, dando um caráter de universalidade.
Para aproximar o que é de interesse desse trabalho, a produção do conhecimento, note-se que o uso de modelos é sempre empregado. Assim como a ciência pura busca os modelos de descrição da realidade, o trabalho de análise de sistemas de engenharia faz o mesmo, para uma realidade restrita aos processos e aplicações de interesse. Esta forma especial de produção de conhecimento será abordada adiante. Antecipo que esta ideia vai de acordo com JUNG, quando afirma que a consciência cria uma “[…] vitrine […] de coisas conhecidas e onde passa somente o filme que nós mesmos criamos.” (JUNG, 2011h, SSC, p. 493-494). Tal vitrine ou tela, é o objeto de nossas projeções. Ao “fazer ciência” o processo não diverge fundamentalmente, guardando sempre o caráter inconsciente destas projeções. Essa ideia pode soar estranha: produzir (cons)ciência inclui irrevogavelmente processos inconscientes. Lembremos que o ato da descoberta guarda sempre uma grande dose de criatividade, e esta vai beber sempre nas mesmas fontes universais do ser, que é arquetípica e em si, inconsciente.
Cada um se coloca em contato com o real, desde o inventor criterioso ao mais distraído transeunte, e neste processo os modelos (de realidade) promovem um encontro do real com o imaginário, da matéria com o mito, e todos estamos sujeitos a perder as fronteiras que os separam. Como diz JUNG (idem) nessas páginas acima citadas, o problema é desconsiderar o processo e crer (com fé mesmo) que esse ideal de realidade corresponde a alguma verdade.
Com 7 anos, eu perguntava à minha mãe: “Quem criou o mundo?”. Ela dizia: “Menino, não pense nisso, senão você vai ficar louco”. […] aos 13 anos […] me dediquei a estudar. Primeiro, por meio de religiões e escolas de autoconhecimento. Depois, pela ciência. Estudei física, matemática, […] me formei psicólogo, seguidor de Carl Jung. (Sri Prem Baba, mestre espiritual da seita hindu Sachcha. Entrevista pulicada na revista Veja em 31/1/ 2018)
Voltando ao ponto onde havia ingressado no mundo da técnica, da realidade invisível da eletricidade e do magnetismo. Enquanto isso ocorria, outros acontecimentos se desenrolavam, em áreas mais internas, minhas instâncias mais íntimas. Uma certa tendência para ouvir, como citei acima, estava presente desde sempre que me lembre. Auto escuta, convivência com as disparidades entre o que percebia de meu mundo interno – anseios, medos, incertezas – eram quase sempre enormemente diferentes, e sempre mais reais (ou mais imperativas), do que aquilo que me vinha do mundo externo. Minha sensação era quase sempre de uma falta de adaptação completa e irremediável com o meio. Afora isso, com mãe católica ativamente praticante, um primo padre e uma tia freira, eu adorava os ambientes da igreja: a nave principal das igrejas, as imagens dos santos, a cripta, a sacristia e o lado de trás do altar que conheci quando coroinha, os corredores espaçosos e silenciosos de seminários e conventos. O cuidado que as freiras tinham ao fechar uma porta e mover-se sem ruído algum, tudo isso me fascinava. Aos 11 anos quis ser padre. Fui orientado a aguardar até completar uns 15. Nesse meio tempo abandonei a ideia.
Depois tive contato com movimentos de jovens da igreja católica. Com o espiritismo. Com a espiritualidade gnóstica. Com movimentos espiritualistas de inspiração mais ou menos oriental. Com a solidão imensa da descrença. A Umbanda foi apenas por poucos breves contatos. Em cada um desses lugares, desde a primeira infância católica, pude experimentar o contato com o fantástico, a verdadeira ligação com uma realidade que se tornava palpável nos momentos de acontecimentos vividos e que traziam vida para o tempo comum. Claro que isso me ocorre agora, não a cada instante, mas me baseio nas lembranças dos fatos vividos. Um tipo diferenciado de “conhecer” se apresentava, enredado ao acontecer da vida comum. Não me ocorriam questões ligadas à plausibilidade de cada situação. Nesses assuntos, tudo era possível mediante um mundo interno de realidade que sempre se impôs.
Depois de desistir de uma vida monástica ou clerical, um gigantesco desconforto com o mundo interno e externo me fez atraído para uma experiência espiritual, que durou alguns anos no final da adolescência. Alguns professores no segundo grau, envolvidos com estudos de assuntos espirituais, de forma mais ou menos independente, resolveram montar um grupo de jovens, do qual participei por esses anos. Nessa época, o desconforto se transformava em fúria como diria Marcelo Rubens PAIVA (2016, p. 8) em seu livro Meninos em Fúria: “Se você tem menos de vinte anos, tem fúria no corpo todo. Se tem mais, tem que fazer alguma coisa para se livrar dela. Uma dica: lutar. Que se conjuga da mesma maneira que criar”. Fui à luta, pelo lado interno.
Sem orientação direta de um mestre, o grupo orbitava mais próximo da gnose, estudava Madame Blavatsky2 e Gurdjieff3, aproximando filosofia e espiritualidade, juntando orientalismos principalmente indianos com a Teosofia, religião Espírita, e outras fontes, ficava aberta a porta de um mundo inteiro, na verdade bem maior que o visível. Toda literatura era carregada em volumes encapados com papel de pão, de forma a tornar a atividade discreta, num tempo que o estudo do ocultismo tinha essa conotação ao pé da letra. Isso me atraía muito, quero dizer: a atividade em segredo, de algum modo combinava bem com o que eu lidava secretamente, instâncias do ser que são a razão de se dizer “indivíduo”. Eu indivíduo, encontrara minha tribo, um círculo, ao menos por um tempo.
Não era a leitura em si que me atraía; sobre a filosofia não me debrucei muito. Ouvia, compreendia até certo ponto, mas pouco me aprofundava ou sequer lia. Me sentia intelectualmente incapaz, o que não era justificável, pois àquelas alturas da vida, tinha enfrentado muita literatura. O que me atraía mesmo era a possibilidade de lidar comigo mesmo, a fúria, o ser interno (adolescente!), e dentro de uma realidade nova que se descortinava, mas principalmente no aspecto prático, dentro do acolhimento de um grupo que, ilusão minha, compartilharia as mesmas angústias. Fazíamos relaxamento dentro de uma prática de ioga e meditação, ambas conduzidas por imagens mentais. Os estudos se limitavam a umas poucas páginas que ensinavam como ter uma postura diferenciada perante os fatos da vida. Confiar na conspiração que o Universo tece a nosso favor. Ter calma, cultivar a fé na providência. Isso para mim não foi teoria, pois transformava-se em prática de vida logo de imediato, e nos dias e semanas a seguir. Não a teoria, mas a prática persistente, fez seu efeito transformador. E essa prática diária me era acessível, quero dizer, foi uma caminhada viável de luta e criação.
Em pouco mais de um ano, eu era uma pessoa diferente. Me sentia no controle das situações, não mais à mercê do mundo, senhor do mundo. Pode-se hoje encontrar respaldo, por exemplo, em Richard Davidson4; esse psicólogo americano fala sobre pesquisa relacionando meditação, emoção e funções “cerebrais”, e vai nessa direção: as influências no praticante são significativas e mensuráveis. Sem querer, naquela época me tornei ainda mais arrogante, somando-se à empáfia de alguém que, como disse acima, pensava saber todo necessário na vida. Mais tarde, poucos anos depois, fui gradualmente sentindo que esse modo de ser me afastava do mundo e das pessoas, e um incômodo contrário se implantou. Sentir-me distante de tudo e de todos mostrou ser um preço que eu não queria pagar pelo autocontrole. Preferi abrir mão desse controle, que se mostrou de certa forma uma auto sabotagem, e metodicamente passei a descartar tanto “autocontrole”, voltando a exercer a “loucura normal” que parece acometer a todos, e então achava que seria a melhor forma de continuar me sentindo próximo a todos. O próprio Gurdjieff, guru espiritual do início do século XX talvez dissesse que se trata de processos de loucura controlada. Carlos Castañeda, o escritor, usa o mesmo termo na voz do bruxo Don Juán Matus. Loucura e fúria, controle e energia, seriam processos dialógicos à filosofia e técnica, ou física e psicologia?
Esta incursão no mundo da espiritualidade, percebida como a luta de um desenvolvimento interior contra o mundo externo, talvez possa lembrar a “visita à grande biblioteca”, acessada pela “porta da direita”, que JUNG (2013, p. 291-295) descreve no capítulo “A Divina Loucura” do livro no qual relata a experiência pessoal de encontro com seu mundo interno, O Livro Vermelho. Nesta parte de seus escritos JUNG faz um diálogo interno em torno da contraposição entre ciência e religião: “[…]Lutávamos contra o Cristo, nós o depúnhamos e nos sentíamos vencedores. Mas ele permanecia em nós e nos dominava. […]” (JUNG, 2013, p. 294). Conclui com “[…] passar para o outro lado, para a vida mais humilde […] e lá embaixo começar onde eu estava realmente” (idem, p. 295).
Curioso e digno de nota, na noite anterior à minha primeira leitura dessa passagem de Jung, fui dormir com os pensamentos sobre o papel nutridor da Anima, a contraparte feminina do homem. Minhas divagações passeavam entre casos da clínica e um sonho de anos atrás, num mercado de alimentos, no qual eu permanecia sentado entre as prateleiras sem saber o que queria, pela simples falta de ter para quem preparar o alimento. Voltando ao trecho citado acima de Jung, o texto prossegue com a entrada pela porta da esquerda, onde se encontra “uma grande cozinha […] ao fogão uma senhora grande e corpulenta[…] perguntei: Poderia sentar-me um pouco aqui dentro? Está frio lá fora” (JUNG, 2013, p. 295). Contingência da batalha, o descanso e o alimento são manutenção da vida em si. No meu sonho, lembrado no dia anterior, a visita a um supermercado estava relacionada ao cultivo da minha relação com a anima, devidamente personificada por alguém de verdade.
A espiritualidade e a eletricidade são realidades impalpáveis, à primeira vista. Mais adiante ao falar de energia, tanto na Física quanto no Tai Chi Chuan, será abordada essa questão do que seja impalpável, e do conceito mesmo de vazio como realidade, ou por outro lado, da realidade e concretude do impalpável. Falado assim pode causar estranheza, mas não se pretende aqui nenhuma metafísica: apenas uma forma de ver as coisas, e fazer consciência.
Noto que os físicos em geral são extremamente aversos à ideia de um “nada”, ou de forças que atuam como “ação à distância”. Newton deixa isso expresso no seu Princípios Matemáticos da Filosofia da Natureza. Depois de ter descrito com perfeição (à época) o comportamento dos movimentos, aqui na terra como nos céus (bem isso: acho que uma das sacadas mais geniais e corajosas do espírito humano foi afirmar que os corpos se movem segundo as mesmas leis, tanto os objetos aqui da terra como os corpos celestes no firmamento, e ainda provar isso matematicamente). Newton fez questão de esclarecer que a natureza dos movimentos e as forças envolvidas estavam descritas, mas não explicadas; que não sabia dizer sobre sua natureza, o que ficaria a cargo de outros no futuro, mas que certamente não seria uma força à distância.
Também vejo outros pensadores, psicólogos entre eles, que apesar de acusarem de materialistas aos físicos em geral, e aos clássicos em particular, procuram eles mesmos a materialidade do espírito ou da mente, ou buscam o espírito e a mente vasculhando a matéria, o que dá no mesmo. Mas a física, quântica ou clássica, estuda sim a matéria e suas transformações, não outra coisa. Me parece muito claro que existam ligações obrigatórias entre mente e matéria, mas não aguardo que a matéria seja mental, ou vice e versa. Isso seria partir de uma hipótese que talvez não seja necessária, voltando às palavras do próprio Newton. Penso que na sua época e entornos, havia a necessidade de se contrapor à ideia de Deus ou da metafísica, por força de fazer prevalecer o que viria a ser o método científico em si. Era necessário se afastar da igreja dogmática para a qual a natureza devia se dobrar ao ideal, o que não podia mais ser compatível com o andamento das coisas, nas ciências com seu método emergente. Essa contraposição não é mais necessária, embora se assista a muita gente ainda, de ambos lados, fazendo grita e alarde em torno da questão. Vide criacionismo versus evolucionismo, e os constantes desafios de “provar se Deus existe”.
Essa experiência direta de realidades impalpáveis, vivida por mim desde sempre, me traz uma certa intimidade, talvez uma compreensão própria e difícil de expressar, daquilo que é a realidade em si. Campos magnéticos e elétricos, a aura do corpo, um pensamento, sentimentos invasores, a atração da gravidade que nos mantém ligados na terra (esta, quando criança, me causava uma certa apreensão, em minhas fantasias – ai se faltasse!). Rádio transmitindo música e jogos de futebol. O calor. Não me intriga aquilo justamente que, para muitos, é inaceitável: “ação à distância”. Pois é o que é, basta observar como as coisas acontecem.
Tenho certeza que não sei construir uma conceituação adequada ou cientificamente aceitável para todas essas forças, mas basta ver que seus efeitos ocorrem à distância, ou sem uma necessidade material mediata. Estou tentando aqui descrever como a realidade me chega: as coisas funcionam assim, independente do que as coisas são. Thomas Moore sugere que “Entender a si mesmo não é tão importante quanto viver da alma” (MOORE, 2004, p. 90), e parafraseia Oscar Wilde com “Só os superficiais conhecem a si próprios” (idem). Quando o entendimento busca a luz a todo custo, pode pagar o preço de se afastar da realidade em si, da natureza, se afastar de uma vida mais inteira e enraizada.
Para mim a observação basta. As explicações postuladas são aceitáveis de maneira direta pelo seu lado funcional. Retorno a JUNG (2013, p.494) quando insiste em manter-se fiel e vigilante no ocorrer observável dos fatos em si, sem interpor um modelo que produza acomodação de qualquer tipo entre a realidade e nossa concepção possível dela. Sempre achei muito esquisito que durante épocas, pensadores sérios postulavam a existência de um éter. Para que postular o éter, que só vem atrapalhar, quando o mais evidente é que os corpos se movem empurrados por forças que agem à distância? JUNG (idem) traz justamente esse exemplo, acompanhado de uma experiência pessoal com um professor a quem questiona, para ilustrar essa tendência humana de interpor um dogma entre o mundo em si e nossa concepção dele (ver o relato de Jung acerca desse episódio, mais adiante, p. 105-106).
Quem sabe um parêntesis possa ser útil agora. A visão de mundo a partir de um ponto de vista intuitivo, aceita inúmeras lacunas, sem perder uma noção de todo. Tenho uma tendência a aceitar explicações incompletas (o que me dá uma sensação de fraqueza intelectual frente ao rigor acadêmico). Faço uma analogia com a própria visão do míope, na minha experiência (cheguei a ter 6 graus de miopia): é preciso saber reconhecer uma pessoa, a meia distância, usando recursos que vão além dos detalhes do rosto, ou então o míope não reconhece ninguém. Uma visão de conjunto e de contexto me socorre. Também são uma perdição, pois tenho dificuldades de reconhecer alguém se o vejo fora do contexto habitual de encontrá-lo.
Ao longo da vida, as crises não cessam, apenas variam. Se a vida é um processo, é natural estar sempre em movimento, mudança, transformação e crise. Algumas vezes percebemos isso melhor, ou apenas sofremos mais, ou menos. Mas a vida em si pede também atenção ao seu curso objetivo, e durante uma boa parte dela estamos envolvidos nos esforços de adaptação aos aspectos ditos práticos. É preciso ganhar o pão, atender a família, criar filhos. Parece que as coisas andam nas suas devidas direções, devido às solicitações intrínsecas desse esforço de adaptação apesar das crises. Até que o movimento se inverte, e a vida encaminhada ou não, pede mais espaço novamente à crise.
Refere-se aqui ao que JUNG descreveu como os movimentos da energia, de progressão e regressão, nas sucessivas e intermináveis etapas de adaptação ao mundo prático externo, em contraposição às exigências da vida psíquica interna.
Um dos fenômenos energéticos mais importantes da vida anímica é sem dúvida a progressão e regressão da libido. Entenda-se para começar, que progressão é o dia a dia do caminhar evolutivo do processo psicológico de adaptação. Como se sabe, a adaptação nunca termina, embora a tendência seja acreditarmos que termine porque confundimos a nova atitude atingida com a verdadeira adaptação (JUNG, 2010, OC VIII/1, §60).
Ao se deparar com a insuficiência da atitude de adaptação até então vigente, sempre unilateral e portanto parcial, cessa o movimento de progressão, e sobrevém um estado “carregado de afetos e tendente a explosões. Tais sintomas significam um represamento da libido. Este estado de represamento caracteriza-se sempre pela desagregação dos pares de opostos” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §61). Essa desagregação dos pares de opostos poderia ser bem a descrição de um sistema físico onde a energia se perde, por exemplo no desabamento de um edifício. Força (e a energia resultante) requerem dois lados em atuação complementar e compensadora, que resulta na sensação de equilíbrio; força também implica em uma direção, sem a força atuante a sensação de uma direção e sentido igualmente se esvaem.
Porém o edifício da psique, como um todo, não cai, pois esta é bem mais que apenas processos da consciência. A consciência esvaziada da energia antes voltada para a adaptação, percebe a situação como perda de valor. As forças agora indisponíveis na consciência tornam-se energia disponível para os conteúdos antes relegados durante o esforço de adaptação, resultando na “valoração dos panos de fundo da consciência […], do inconsciente, […] e é de se esperar que o inconsciente adquira uma maior influência sobre a consciência” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §62). Esse estado, que é a regressão da energia psíquica, é percebido como uma desconfortável cisão e empurra para a mudança. Cisão e mudança são qualidades de crise.
Durante uma experiência de crise, me fiz a pergunta “o que estaria eu fazendo, hoje em dia, para mim mesmo?” Nessa época, engenheiro, estava bastante envolvido com o canto em dois corais, e como essa atividade cessou repentinamente, gerou tempo livre e a questão de o que fazer com ele. Entrei nesse tipo de questionamento várias vezes na vida, sempre respondendo a anseios de cunho íntimo, mas agora me parecia que todo esforço para os corais, no trabalho e até na família, não revertia para mim, não obstante a satisfação plena com tais esforços. A resposta passou por colocar em funcionamento dois antigos projetos. Foi assim que no final de 2002 comecei a praticar Tai Chi. E no início de 2003 iniciei a graduação de psicologia. Nesse momento essas duas atividades eram estranhas entre si, assim como eram a vida de engenheiro, familiar, cantor de corais, estudos espirituais, etc. Não fazia ideia alguma sobre como esses campos da vida se interligavam de forma tão íntima entre si e comigo mesmo.
Em verdade, desde o início do ano de 2002, havia algo em movimento para ser percebido apenas mais tarde. Estava acabando de construir a casa onde moro hoje, queria colocar um hexagrama do I Ching na cozinha, algo referente a fogo, mas com objetivo decorativo. Uma amiga me indicou o hexagrama 61, o qual acabou indo parar no chão de entrada da casa, como um mosaico que, quem entra, nem percebe direito, mas é obrigado a passar por ele. O nome deste hexagrama é Zhong Fu, traduzido por “sinceridade profunda” pelo mestre taoista Alfred Huang (I Ching, 2007, p. 466). Representa a água tranquila de um lago e a brisa na superfície, e seus trigramas formam conjuntos de duas linhas cheias em cima e embaixo, e duas linhas vazadas no meio. Ao longo do ano, os fatos que conduziram à minha mudança de postura interior, na verdade as ações em curso de reordenação das prioridades de cunho mais íntimo, podem muito bem ser traduzidos como se fossem um alinhamento de uma verdade interna que emergia, e se fazia urgente segui-la. “É favorável ser perseverante e reto; é favorável atravessar o grande rio” diz aqui o I Ching (idem). Não percebia o significado disso, não poderia medir as consequências, nem me atrevo a justificar as decisões e atos, tampouco a dizer “foi o que fiz”, mas sim “foi como ocorreu”.
Posso dizer com segurança: construí minha casa literal e psíquica dentro dos princípios os mais verdadeiros, alicerçada no Tai Chi e na Psicologia. Não obstante a consciência transitava bem ao largo do que ocorria na realidade mais profunda.
Alguns anos depois, novamente a psicologia e o Tai Chi se encontraram, ainda um tanto afastados de uma real consciência de sua ligação significativa. Era final de 2009, e eu havia recém-entrado em contato com o estilo Chen de Tai Chi. Agora havia a possibilidade de uma aproximação com esta arte, pelo contato direto com a linhagem de origem. Refiro- me a receber orientação em linha direta com um grande mestre, através de um aluno dele, e beneficiando da originalidade do método e a aderência aos seus princípios conforme praticados no seio da própria família Chen. Eu não tinha interesse em abrir uma escola, era um interesse de investimento de ordem pessoal, e tinha dúvidas sobre até que ponto poderia progredir, iniciando em uma idade adulta numa atividade física. Decidi embarcar na ideia.
Isso representou um esforço diário e dedicação minuciosa durante os anos seguintes. Todos anos seguintes, incluindo esse presente.
Outro fato concomitante foi o investimento na psicologia. Decidi fazer o curso de formação de analista, na verdade me submeti à seleção no final de 2009. Ao mesmo tempo (no início do ano seguinte), me retirei da vida de engenheiro, pois precisava de tempo para isso tudo, e sem dedicação adequada à clínica não via sentido na formação de analista. Até então eu clinicava de noite, as vezes aos sábados, passei a ser psicólogo em tempo integral.
Me aposentei da engenharia no início de 2010. Foi um grande esforço tomar essa decisão, que me enchia de incertezas. Havia alguns conflitos que aumentavam no trabalho de engenheiro, essa parte da vida profissional na qual eu era tão maduro, já não me atraía mais para assumir empreitadas condizentes com minha maturidade. Durante um ano inteiro ou mais, percebia minha aposentadoria como um ato de covardia, como uma saída para não enfrentar responsabilidades. Sair para ganhar menos também foi um desafio percebido como ato de covardia.
Recuar para depois avançar é muito fácil como teoria ou romance. Na verdade, as mudanças no mundo objetivo podem requerer um recuo da libido para os confins da inconsciência. Lá estão ocorrendo transformações que serão necessárias paras as mudanças exigidas no mundo objetivo, e outras necessárias para o todo do ser no seu caminho que, para a consciência, permanecerá mistério. O inconsciente tem esse nome não à toa! A falta mais completa de qualquer energia para o lado objetivo, é percebido pelo ego como fraqueza e covardia. A filosofia sobre a própria vida pode ocorrer posteriormente, nunca antes dos fatos, e muito menos dos fatos internos. Mesmo agora, eu não sei explicar tudo que passou, quem sabe essa (in) coerência seja parte da solidão inerente de cada um.
É interessante notar pelas observações dos pacientes, que esse sentimento de, digamos, falta de coragem, é compartilhado com muitas outras pessoas em situações de enfrentamento de crises das mais diversas, ao longo da vida. No meu caso, percebo isso na forma como meu sogro, no meu segundo casamento, que me classificava de corajoso por casar com a filha dele assumindo dois filhos dela (ele a conhecia melhor que eu). Eu percebia internamente como covardia minha! Nesses casos onde a energia disponível para tomada de decisões está atuando nas entranhas inacessíveis, está direcionada num movimento retrógrado e nos falta para a lida com o mundo objetivo da consciência; e daí perceber nossas ações como covardias parece bem condizente com o quadro geral.
Quem sabe um dia seja possível ver a covardia com outros olhos, achar outra palavra. A casa do índio guarani tem sempre duas vias de saída: deve haver sempre a possibilidade de fuga e isso não é relacionado por eles a qualquer covardia (esse aspecto foi aprendido em relatos na aldeia). Não são um povo guerreiro, mas são uma nação sobrevivente! Mesmo em nossos consultórios de Psicologia, esta questão se coloca não tão raramente: para que a coragem de enfrentar a tudo, sempre? Ao serviço de qual ego, ou resposta a que?
Na crise, a percepção do quadro geral pode não se assemelhar a um fato numinoso, mas sim tomar a aparência mais sombria da regressão, e nos deixa com a sensação de paralisia ou fuga. Isso é o que ocorre na maioria das vezes. Todavia, não é necessariamente isso, e muito pelo contrário. Jung estabelece paralelos, entre o método analítico, sua visão energética dos processos psíquicos, com a filosofia chinesa, em especial os princípios de yin e yang que são a expressão mesma de Tai Chi. Apenas aos poucos, e paulatinamente, é que fui tomar conhecimento desses paralelos, enquanto me aprofundava na Psicologia Analítica através da formação (teoria e prática), por um lado, enquanto avançava no “cultivo do qi”, a prática perseverante e cuidadosa do método no estilo Chen. Ambos processos, na psicologia e no Tai Chi, caminharam entre várias fases e propiciaram diferentes percepções de avanço e recuo. E ocorreram simultaneamente ao longo desse período de tempo.
Agora, olhando para trás no final dos anos de 2002 e 2009, vê-se mais claramente a organização dos processos que vão se engendrando, visão essa que não seria possível no mesmo instante em que tudo acontecia. Não por falta de possíveis explicações, ou por falta de conhecimentos, ou pela falta das motivações que empurravam aos fins, mas simplesmente por falta de ter acontecido! A abrangência do todo pode ser percebida apenas ao se ter uma visão abrangente, e esta precisa também do fator tempo para que a ocorrência dos fatos, e sua percepção mesma, complete o quadro significativo. Aqui é preciso reconhecer a significação, talvez a mais abrangente, do que vem a ser sincronicidade.
Vou me referir ao psicólogo e mestre em epistemologia César XAVIER (2003) em A Permuta dos Sábios, quando ele amalgama história e epistemologia como atoras dentro de uma díade, e propõe a visão de uma interpretação da realidade onde estes dois aspectos se articulam gerando como produto uma visão ampliada de fatos e conhecimento. Ao olhar a história pessoal tal como a descrevo neste trabalho, fica claro que os fatos em si, colocados em qualquer sequência, ou as decisões e caminhos tomados, embora guardem uma certa coerência (ao menos alguns deles), só vão obter seu significado mais amplo, quando vistos como um todo do começo ao fim. Isso pode parecer banal, pois o que estou dizendo é que precisamos ter a visão de conjunto para obter a visão global! Quando olhamos uma vida em retrospectiva enxergamos os alinhavos e costuras do que podemos chamar de destino, aquilo que se faz do fio, o trabalho individual que reside entre o fiar, medir e cortar das Moiras.
Costumo falar (não sou original nisso) que a vida da pessoa é como um quadro que vai sendo pintado. A história contada acima, é como o quadro de uma vida que se vai pintando por partes, na obscuridade quase sempre, tapando um pedaço enquanto se trabalha no outro, e depois de um tanto trabalhar, se o descobre por inteiro, e ainda se abrem as janelas da sala de pintura. A visão do todo será outra, como não poderia deixar de ser. FRANZ (1986) volteia nesse mesmo tema, ao chamar nossa atenção sobre o pensamento habitual, de correlações causais entre eventos, quando na verdade estes podem ser percebidos também como uma ocorrência num “campo de tempo”. O pensamento causal faz a hipótese implícita de um tempo linear, olhando para a causa numa linha de tempo atrás e chamando isso de causa. Segundo a autora, outra maneira de ver seria buscar de maneira diferente acerca do que tem a tendência de ocorrer conjuntamente nesse campo. Na história pessoal relatada, fatos ocorrem independentemente no tempo, assim como o surgimento da própria significância entre tais fatos.
Nos últimos tempos tenho sido chamado a lançar um olhar ou mesmo opinar sobre as áreas das ciências exatas, sob a suposição geral de uma pretensa sabedoria ou conhecimento que eu deveria possuir a mais que meus colegas das ciências humanas e filosóficas. Lembro ainda hoje, numa roda de discussões no curso de formação de psicomotricidade relacional, em meio ao burburinho que se instalava alguém me pergunta “hei, você da engenharia, deve estranhar tanta desordem instalada para uma simples tomada de decisão”. Pelo menos havia autocrítica para ver a dificuldade da situação, mas as decisões no âmbito da engenharia são tão humanas quanto em qualquer outro lugar. Eles não sabiam do que eu estava fugindo. Na psicologia fui chamado a “lançar luzes” sobre assuntos de energia, física, etc. Na verdade, quem mais me cobrou nesses aspectos fui eu mesmo.
Devo concordar que tenho uma vivência e conhecimentos nessa área, e também familiaridade com números e textos das ciências exatas. Mas por outro lado, o que vejo mais necessário, é se manter dentro de uma lisura intelectual, isso vale para qualquer área do conhecimento, e vem acima de tudo. Ser especialista em sistemas de computadores não me deve causar dificuldade para ler um texto de filosofia do conhecimento, embora eu não esteja familiarizado com muitos dos termos específicos usados, preciso ter a humildade de comer pelas beiradas qualquer assunto que precise me inteirar. Lembro bem da dificuldade que foi durante a graduação de psicologia, depois de trabalhar durante o dia com sistemas de computadores aplicados no controle de energia em tempo real, assistir as aulas de sociologia a noite e a leitura de O mal-estar da pós modernidade de Bauman, me causavam um cansaço que durou cinco anos. Mudar de um contexto a outro não foi simples, pelo menos no início. Tampouco sabem vocês, o tamanho da dificuldade na lida com números puros, que eu engenheiro nunca gostei.
Não é a especialidade em si que cria dificuldades. As especificidades requerem bases de conhecimento, treinamento específico, concordo com isso. Mas na base de tudo está a formação, para ser redundante mesmo, básica. Raciocínio lógico, construção de argumento, conhecimentos gerais, interpretação de texto, matemática elementar (ou de nível médio), um pouco de filosofia, quem sabe até filosofia do conhecimento. Tudo isso deve ser obrigatório desde muito cedo para todos, ou deveria. Quando alguém fala em termos de quantidades, dez e dez mil guardam uma diferença que deveria ser da sensibilidade e percepção gerais. Senso comum. Mas não é assim. Isso é algo que me chamava a atenção desde a adolescência, quando tinha prazer de ler os jornais de cabo a rabo. Era muito comum ver nos textos os erros de “ordem de grandeza”: 10mi pode ser escrito para dez mil ou dez milhões colocando erros por escrito em textos que deveriam ter sido revisados antes da impressão. E parece que quem lê não faz questão de saber das verdadeiras quantidades, existe parece que uma preguiça, uma falta de interesse nos detalhes que mais cedo ou mais tarde serão necessários para o correto discernimento.
A matemática em si, ou sequer a lida com as quantidades, não são as únicas matérias em que isso ocorre. Noto que em geral, a falta de atenção nos detalhes significativos é um estado geral das pessoas funcionarem. Quem sabe meu treinamento em produções que exigem uma aderência maior entre o que se diz e o que se faz, me tornaram mais cuidadoso com isso? Ou o meu tipo de personalidade também? Mas noto haver uma certa flexibilidade exagerada na lida com o fundamento da produção intelectual mesmo: escrita, leitura, interpretação, articulação do pensamento. Não sou bom em tudo isso, apenas criterioso e persistente na busca da coerência do todo.
Voltando um pouco ao tema da energia e motivação, durante algum tempo dediquei muito esforço, e posso mesmo dizer que quebrei minhas lanças na tentativa de esclarecer assuntos gerados a partir de mensagens trocadas eletronicamente dentro de grupos. É sabido que a facilidade de comunicação aportada pelos meios eletrônicos (a internet), gera um tipo de comunicação que é, no mínimo, duvidosa. Desde “correntes de ajuda” até listas de assinaturas urgentes, salvadoras do mundo, sempre duvidei muito de cada uma, e me incomodava receber tais listas de pessoas conhecidas. Eu desconfiava da mensagem, me incomodava devido ao meio social específico onde circulava, ou então me incomodava coma fonte que me havia repassado. Será que fulano não percebe que isso é uma tremenda fria? Costumava me perguntar.
Bem, esse meu incômodo de ordem interna (eu poderia simplesmente ignorar tudo), gerou em vários casos uma pesquisa meticulosa em torno da veracidade, origem de tais mensagens. E depois montar uma defesa e réplica para minha fonte imediata, querendo com isso dizer: olhe, cuidado ao repassar tais assuntos, pois ao repassar você está endossando, dá atestado com uso de sua imagem de respeito, mas veja bem de onde isso vem. E então mostrava o resultado da minha pesquisa. Foram algumas situações interessantes, para eu mesmo verificar como estes assuntos voam, de onde vêm, por quem são gerados, etc. Dei vazão às minhas indignações com a mobilização, envolvendo pessoas de minha relação direta e afetiva, mas não acho que consegui mover alguém no sentido de uma mudança de postura frente a boataria. Tampouco fortaleci amizades, acho mesmo que perdi algumas.
Ninguém gosta de criteriosos persistentes; os meticulosos são antipáticos. Esse termo antipático, traz consigo a falta de empatia, e realmente, muitas vezes que alguém tece um comentário ou faz uma pergunta, não o faz por querer uma resposta ou mesmo entendimento literal, quer apenas empatia! Nesses casos, não fui capaz de entregar o que a pessoa precisava. Também senti a falta de empatia nessas situações, empatia que vejo faltar a muitos que procuram meticulosamente a profundidade, numa sociedade imediatista e superficial.
Esses últimos parágrafos trazem à tona um outro motivador na produção do presente artigo. Que é a produção do conhecimento em geral. Aqui o interesse é na psicologia, mas o tema nos insere no campo da física, do encontro entre a psique e a matéria em si, aos conceitos de energia. Poderia dizer que estamos na área da epistemologia, mas sou mais cuidadoso e prefiro me propor a uma articulação ao nível de um trabalho apenas intelectualmente aproveitável. Aquele artigo que mencionei sobre primeiro de abril publicado na revista de eletrônica (p. 17-18), acaba retornando agora. As coisas que não esquecemos da nossa história (e eu não me considero dotado de boa memória), estão aí por serem de significância, e esse é bem o caso.
Felizmente para mim, não sou o único a me indignar com as apropriações indevidas de um tipo de conhecimento, para aplicação em outras áreas não necessariamente afetas. O físico americano SOKAL e o belga BRICMONT, chamam isso de Imposturas Intelectuais, abuso da Ciência, com uma bem-humorada crítica a tais leviandades. Entrarei um pouco nessa área para chamar a atenção acerca no uso de uma terminologia da física dentro de contextos onde não são sequer necessários.
Costumo pensar dessa forma: parece existir uma atração natural da psique, ou ao menos da psique moderna, uma verdadeira mania voraz pela explicação. É um hábito do ego totalitário, que não vê no inconsciente que opera em parceria com a consciência, a possibilidade de uma compreensão mais adequada. Renata Wenth vê essa mania como uma dissociação do ser, onde “o olhar diabólico pode nos apartar do deo-concedente” (WENTH, 2002, p. 13). Acreditar na capacidade do inconsciente é um ato de fé. A fé poderia auxiliar em certos momentos onde os recursos da consciência falham; prender-se nas explicações é como interromper uma obra que se encaminha.
Por exemplo, muitas pessoas (que se dizem céticos) costumam justificar a existência dos mitos como uma necessidade dos antigos explicarem fatos da natureza. Temos aqui uma explicação (na verdade uma mera suposição) do cético, que confere ao homem antigo uma (suposta) necessidade de explicação. É óbvio que quem faz a explicação é o cético moderno: explicação direta na sua linha de raciocínio (ou suposição) e uma segunda ao projetar no homem antigo uma necessidade (explicatória) que é obviamente sua mesma. No geral as pessoas adoram as explicações, na verdade se contentam com arremedos delas. Há uma certa satisfação intrínseca à explicação, contenta-se com causas que não são necessariamente as únicas, e assumem hipóteses por verdade. Vê-se tal atração se apresentar muitas vezes dentro de uma fórmula do tipo “explico algo desconhecido a partir de uma afirmação sobre algo que também não conheço”. Assim ocorre o “obscuro pelo obscuro”.
Isso não é novidade, e espero que fique um pouco claro após uma revisão desses mesmos temas, na sequência desse trabalho.
Muito antes do que uma fria definição da ciência moderna, a ideia de energia aparece como necessidade psicológica, organizadora do pensamento e do espírito. A fênix em fogo ilustrada na figura 4 integra força e leveza na imagem. Na cultura chinesa a fênix representa particularmente o feminino, energia Yin. Em várias situações vem acompanhada de um dragão, energia Yang masculina, como o fogo.
Figura 4 – Ave de Fogo.
Na obra de C. G. Jung, um volume de suma importância, talvez se possa dizer de importância basilar, é o intitulado hoje Símbolos da Transformação. Este mesmo escrito passou por transformações tanto de conteúdo como de títulos nas suas várias publicações. Originalmente Wandlungen und Symbole der Libido: Beiträge zur Entwicklungsgeschichte des Denkens (Transformações e Símbolos da Libido: Uma contribuição para História da evolução do pensamento) na publicação original em alemão, de 1912 pela editora Franz Deuticke de Viena (JUNG, 2011i, OC V, p. 7, prefácio dos editores).
Antes havia sido publicado na forma de artigos, em duas partes separadas, no Jahrbuch (Anuário) volume III em 1911 e a segunda parte no mesmo periódico editado por Eugen Bleuler e Sigmund Freud, em 1912. Reedições do livro de 1912, sem alterações, aparecem em 1925 e 1938, para depois sofrer uma revisão, elaborada em 1950 e publicada em 1952, agora sob o título Symbole der Wandlung: Analyse des Vorspiels zu einer Schizophrenie (Símbolos da Transformação: Análise dos prelúdios de uma Esquizofrenia). Segundo os editores esta nova quarta edição revista foi bastante ampliada, com novos trechos e supressão de outros, e a inclusão de 300 ilustrações que foram reduzidas por questões de custo na versão das obras completas (idem, p. 7-8).
Nos EUA esta obra seguiu um caminho próprio, tendo sido traduzida por Beatrice M. Hinkle e publicada em 1916 sob o título Psychology of the Unconscious: A Study of the Transformations and Symbolisms of the Libido; A Contribution to the History of the Evolution of Thought (numa livre tradução: Psicologia do Inconsciente: Um estudo das Transformações e Simbolismos da Libido; Uma contribuição à História da Evolução do Pensamento). Como se vê, a obra ganha um novo título, sendo o título original em alemão preservado como subtítulo da mesma obra em inglês. Na introdução de uma reedição mais recente (Princeton University Press, 1992), encontramos informações sobre os caminhos desta publicação relatados por William McGuire. Segundo ele, esse título Psicologia do Inconsciente, teria sido escolhido pelo editor à época, “possivelmente […] devido à relativa clareza.”5 (JUNG, 1916/1994, p. xxix).
Mais no início de sua introdução para a edição acima, McGUIRE referindo-se à obra como a de maior influência escrita por Jung, reconhece que o título original no alemão Wandlungen und Symbole der Libido, mantido como subtítulo na edição americana, passou desapercebido e perdeu o significado. O público que, pelo título da obra espera uma apresentação da nova escola de pensamento acerca do inconsciente, em vez disso acaba encontrando uma tentativa pessoal de Jung em “encontrar coerência entre ideias sobre religião, psicanálise, filosofia, história da cultura, literatura, e sua [de Jung] própria situação pessoal”6 (JUNG, 1916/1994, p. xvii). Ajunta McGUIRE ainda, que “coerentemente, o próprio Jung admite que seu livro consistia de fragmentos juntados de maneira insatisfatória, numa descrição fácil de aceitar”7 (JUNG, 1916/1994 p. xvii).
Esse era o cenário enfrentado pela sua publicação do Wandlungen, referido mais tarde pelo autor como “O conceito de libido, por mim proposto, topou com muitos mal entendidos e mesmo com a mais absoluta rejeição”(JUNG, 2010, OC VIII/1, §1). No entanto, o Wandlungen era arrebatado e arrebatador, não apenas para o próprio autor (vide adiante) como também uma necessidade histórica. Apoiam essa ideia, as citações ao leque de comentários emitidos pela imprensa, após a sua primeira publicação nos EUA em 1916. Continuando com McGUIRE na introdução mencionada acima, tais comentários são de uma variedade ampla (aqui separados por aspas):
A coragem de manter a tese e a erudição ao encaminhar sua exposição são notórias qualidades desse extraordinário livro”; “[…] quinhentas e tantas páginas, sem par, de incoerência e obscenidade na forma de interpretação psicanalítica das experiências de uma Americana jovem e sentimental […] acreditando estar inspirada”; “[…] ao cientista que tenha aceito os princípios gerais em Freud, trará muitos novos esclarecimentos. O perigo é que seu valor possa ser obscurecido por uma quase insuportável tempestade de fatos, os quais o autor avaliou necessários para o suporte a suas teses”; “O livro de Jung […] tem formidável valor para o já grande, e ainda crescente, número de pessoas que aceitam a psicologia Freudiana como sendo um largo passo, talvez o mais largo já dado, da direção do entendimento dos mistérios da mente até agora insolúveis”; “O assunto é de tal forma patológico, que o livro deve permanecer na estante do patologista, e em nenhum outro lugar.8 (JUNG 1916/1994, p. xxix-xxx).
Consoante aos comentários citados acima, ainda nessa publicação de 1992, encontra- se as “Notas do Tradutor” escritas para a primeira publicação de “Psychology of the Unconscious” ainda em 1916, por Beatrice M. Hinkle. Ela, nascida em São Francisco (Califórnia/USA) havia sido a primeira aluna feminina na Cooper Medical School, graduando-se em medicina em 1899. Foi também a primeira mulher nos Estados Unidos a deter o título de “médica da cidade”, de São Francisco. Ao trabalhar com vítimas da peste bubônica, e frente a diversidade das reações entre os pacientes, dirigiu seu interesse para a prática da psicoterapia, tendo fundado a primeira clínica de psicoterapia no país, em Nova Iorque em 1905. Nessa época interessou-se por Ioga, hipnotismo e psicanálise, e a leitura de Freud levou-a à Europa em 1909 para estudar e fazer análise com Freud e seus discípulos. Acabou por trabalhar com Jung a partir de 1911, tendo retornado a Nova Iorque em 1915, onde seria recusada como membro da Sociedade Psicanalítica por ser considerada junguiana. (JUNG 1916/1994, p. xxvii-xxviii).
Este alongar-se na descrição de Beatrice Hinkle, tem por objetivo melhor compreender a intensidade de suas palavras nas Notas do Tradutor, onde são assumidos certos ares de protagonismo e emoção. Igualmente dão as notas de “arrebatado, arrebatador” usadas logo acima. Nas suas palavras, ela fala da motivação e oportunidade de introduzir a obra ao público anglo fone, “uma mensagem buscada pela humanidade, uma nova luz sobre o significado da vida, com a qual se poderá trabalhar para um maior entendimento de si e das relações com o universo”. Ela fala de um
[…] mergulho no mundo traiçoeiro da mitologia e folclore, na produção das mentes antigas e pessoas comuns, retornando com esse vasto material, por meio do mesmo trabalhoso e científico método da análise psicológica, […] ligando o presumido vazio que existiria entre [o pensar dos] povos antigos ou distantes, dos de nosso tempo” (JUNG, 1916/1992, p. xxxiii).
HINKLE classifica ainda de “extraordinário pela erudição, pelo tremendo esforço dispendido na obra, e pela nova luz sobre a vida humana” (JUNG, 1916/1994, p. xxxiii), e adverte sobre o erro de uma leitura descompromissada e superficial, mas ao contrário, “os interessados num estudo sério provarão de uma verdadeira mina, capaz das descobertas mais ricas” (idem). Vemos aqui o tom arrebatado, de uma pessoa igualmente arrebatada pela matéria em questão, e com esta obra em particular. Sua advertência previne quanto à leitura descuidada, mas como disse McGuire, o título em inglês convida a uma leitura de elucidação acerca dos, à época recentes, desenvolvimentos científicos da psicologia e em especial da psicanálise. O que, todavia, nem sempre esta obra será. O subtítulo que traz o nome original da obra e sua intenção, passam desapercebidos da maioria. Os desentendimentos verificados pelo próprio Jung, mostram que isso não advém de um título diferente adotado na versão de língua inglesa, como interpreta McGUIRE. “Desentendimento”, é o termo usado por Jung no primeiro parágrafo de A energia psíquica mencionado antes (JUNG, 2010, OC VIII/1, §1)
Ao abordar o tema da psique, fica claro que em Freud encontramos explicações. Tornou-se um mote popular em diferentes línguas, que atesta: “Freud explica”. Ou invocar a ironia com “nem Freud explica”. Sem pretensão de abuso da linguística, pode-se supor que, ao tornar-se um mote, a “explicação” em si atende um anseio que se repete entre as pessoas, além do que o reconhecimento da ciência que desvenda os mistérios da mente (como diz McGuire). Quem sabe, a explicação traz algo de arquetípico. É possível observar a maneira que algumas pessoas (talvez muitas) ficam inquietas ao se deparar com algo que não sabem explicar.
O viés da explicação em Freud, cuja obra incita o aparecimento da frase popular “Freud explica”, é adotado mesmo de forma recursiva em Freud Explica (APPIGNANESI, 1979). É um livro em formato de quadrinhos ao mesmo tempo sério e divertido, que inclui a proposta ao leitor “Leia, divirta-se e entenda porque todo mundo costuma dizer: Ah, meu caro, Freud explica…” (idem, p. 178). O autor cita Freud em conferência de 1933, “O que eu disse hoje sobre a feminilidade, nem sempre soa agradável, está incompleto.” e ajunta com as próprias palavras “[…] aguardem até que a ciência possa lhes dar informações mais precisas” (idem, p. 91). É sinal de humildade reconhecer a incompletude de seu pensamento, e ao mesmo tempo é confissão de fé na explicação e na ciência.
Em O homem Moisés e a religião monoteísta, de 1939, Freud parece recuar desta aparente obsessão explicativa, dá uma perspectiva mais aberta, quando discorre acerca das diferenças entre a “[…] orientação de nosso órgão de pensamento e a organização do mundo que deve ser apreendida por meio de nosso pensar. À nossa necessidade causal, de fato imperiosa, basta que cada acontecimento tenha uma causa demonstrável” (FREUD, 2014, p. 149-150). Fica aqui aberta a possibilidade de desconfiança no conhecer; tira a causalidade do objeto e a relativiza como pertencente a uma imperiosa necessidade mental, portanto psíquica, subjetiva. Freud abre ainda a possibilidade de uma multiplicidade de causas dos processos na natureza, “[…] na realidade fora de nós isso dificilmente é o caso; cada acontecimento parece antes ser superdeterminado, mostra ser o efeito de várias causas convergentes” (idem, p. 150). Tal prevalência de uma mente explicativa dependente das disposições psicológicas é concordante com JUNG. “Nossos princípios de explicação mais não são do que pontos de vista, isto é, manifestações das nossas disposições psicológicas e das condições apriorísticas do pensamento” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §5).
A Física como ciência, se desenvolve a partir dos dados objetivos, estes são obtidos a partir de medições da realidade objetiva dos fatos. Para isso, foram estabelecidos padrões para as diferentes grandezas físicas (comprimento e posição no espaço, o tempo, força, tensão elétrica, etc. – note-se que se poderia objetar acerca do tempo e do espaço como grandezas objetivas da realidade, mas não podemos aprofundar aqui por uma questão de complexidade do assunto). Enquanto esse sistema de medidas foi desenvolvido e aprimorado, com o tempo, uma gama de aparelhos que permitem aferir, medir com precisão e acuidade tais grandezas também foi sendo desenvolvido. Esse aparato conceitual e tecnológico permite dar corpo àquele conceito tão caro para a ciência, de experimentação e universalização do conhecimento.
Quando partimos para a observação do mundo subjetivo as coisas mudam de figura. Prospectar a mente de maneira direta parece ser uma tarefa ainda árdua. Pode-se obter mapas de regiões da cabeça, com respectivos gradientes de temperatura ou de atividade elétrica relacionados a diferentes estados do psiquismo. Acredito que todo esforço é válido e deve ainda oferecer retorno aos investimentos, mas as medições possíveis ainda não resultam em dados suficientemente objetivos para estabelecer um corpo de conhecimento sólido que sirva de fulcro da convergência do pensamento. O que dizer do estado das coisas há cerca de 100 anos atrás?
Nota-se um esforço de Jung para ir nesta direção, mas ele também deixa claro que não fará uma correspondência direta de grandezas entre a física e a psicologia.
[…] praticamente não me preocupei com o problema de incluir os processos energéticos psíquicos nas classificações do sistema físico. Não o faço porque no máximo o que temos são algumas vagas suposições, mas sem nenhum ponto de apoio. […] A relação psicofísica [da energia] é, na minha opinião, um problema à parte, a ser resolvido eventualmente. (JUNG, 2010, OC VIII/1, §9-10).
Tal indefinição psicofísica não é obstáculo para usar toda uma terminologia herdada da física e assim assegurar consistência para adotar o ponto de vista energético aos processos psíquicos. Para aplicar conceitos e a terminologia da física para os processos da psique sob um ponto de vista energético, é que JUNG toma o cuidado de estabelecer, mesmo provisoriamente, a psique como “um sistema energético relativamente fechado” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §11). Isto se faz necessário para que se possa atribuir o princípio da conservação de energia, pois se fosse um sistema aberto não se poderia falar, por exemplo, no movimento retrógrado da energia como Jung discorre mais adiante, ainda superficialmente (JUNG, 2010, OC VIII, §17) e se ficaria muito limitado para conceituar toda psique em seu funcionamento como um processo energético.
Portanto, se a psique desenvolve seus processos num sistema que do ponto de vista energético, é relativamente fechado então não há trocas energéticas significativas com um eventual meio externo. Com isso toda energia que se desenvolve nesse sistema, nele permanece, obedecendo por exemplo ao princípio da conservação de energia. Não há trocas significativas com o meio, mas notemos que não há também uma definição, nesse texto de Jung, para os limites do que seria esse aparato psíquico. Seria o interior da cabeça? Na minha opinião essa é uma definição que não é necessária a priori. Poderia ser necessária caso se partisse para estabelecer a relação psicofísica para a energia.
Há uma outra particularidade nessa definição de Jung, que é o cuidado em adotar o termo “relativamente” fechado, que se pode entender como sendo “quase” fechado, ou ainda, fechado para certos tipos de troca e nem não fechado para outros tipos. Esse conjunto de cuidados está em concordância com a decisão de não se adotar a relação psicofísica, a qual exigiria alguma delimitação da base material para a psique, e ao mesmo tempo que não abre mão do ponto de vista energético. Me parece que desde o início deste texto (JUNG OC VIII/ 1) a ideia de uma possível relação psicofísica é acalentada, como um namoro, e depois descartada ou adiada sem data para retomar.
O termo energia, como sabemos, é bem anterior à sua apropriação pela física. Originalmente está ligada à ideia de criação, um poder criador, e também “motivação”, ou motor, aquilo que move. Em decorrência, também “aquilo que anima”, e aqui a diferenciação entre o animado e o inanimado, e entre o vivo e o não vivo. O conceito chinês de “qi” (se fala “chi”) é usualmente traduzido por “energia”. Ao longo dos anos de contato com o Tai Chi Chuan9, aprendi a duvidar dessas traduções diretas dos termos originais chineses. Então um dia, em 2013, fiz uma pergunta direta para o meu Shigong10 Grande Mestre Wang, e a resposta foi direta e sem pensar: “O qi é a própria vida; se o qi cessa a vida acaba”.
Acredito que seria um erro querer aqui enquadrar esses termos (energia, qi, vida) em conceitos muito específicos, quando estamos falando de sua aplicação original, mas podemos adotar uma ideia mais ampla que abriga uma essência, um princípio que está por trás de todo movimento em sua origem, e da própria vida. Hoje em dia associamos livremente essa ideia ao “estado de espírito” da pessoa. Uma pessoa apática está sem vida e sem energia; recomendamos a ela que “se anime”, ou busque um remédio como um caldo de galinha, uma vitamina, uma motivação para sair da inércia, letargia, etc. Se a pessoa é desperta e bastante ativa, então está cheia de vida, esbanja energia.
Também associamos a aplicação de força à ideia de energia. No processo de eletrificação (geração, transmissão e distribuição de energia elétrica), popularmente chamava-se as empresas de “companhias de força e luz” (algumas tiveram esse batismo oficial), e quando não há tensão elétrica disponível, ainda hoje dizemos que “falta luz”. Um soco forte sobre a mesa pode significar uma tomada de posição enérgica. Ser enérgico pode ser um atributo de comando, de mandar fazer e aqui entra a capacidade de transformação e trabalho, tanto no comando como na ação.
O Livro do Gênesis na Bíblia descreve como Deus usa o verbo (voz de ordem) para comandar a criação; o primeiro ato de criação é o da própria luz, a separação de luz e trevas sobre uma terra antes sem forma e vazia (BÍBLIA, 2010, Gen 1,1:5). Antes disso era o caos, como também o era nos mitos de cosmogonia grega, onde o “Céu e a Terra surgiram do Caos” (BULFINCH, 1965, p. 11). Parece que a capacidade criadora da energia, no ato de criação, cria ordem frente a uma situação de caos (desordem). Esse princípio acaba sendo coerente com o de entropia na física, onde os estados energéticos na natureza caminham sempre de um estado de mais ordem e mais energia, para um de menos ordem e menos energia, significando na física o aumento da entropia.
Ainda no Livro do Gênesis, aprendemos que ao ser criada a luz, e separada esta das trevas, Deus as denomina dia e noite. Portanto a alternância está associada a energia, alternância que é movimento em si, e que no caso do dia e noite não cessam nunca. Podemos ler, também no livro do Gênesis, que depois de fazer toda criação através da Ordem Falada (o Verbo como agente criador – este termo Ordem Falada é minha interpretação), Deus moldou o homem à sua semelhança, a partir do barro, e “inspirou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se tornou um ser vivente” (BÍBLIA, 2010, Gen 2,7). Portanto o verbo (voz, ou voz de comando) e o sopro (vento, respiração) são igualmente ligados à noção de energia criadora, e em particular o sopro (respiração) à criação da própria vida, da transformação do inanimado para animado, o que se move e tem alma.
Como sugeri acima, certamente que ao se apropriar do termo energia, as ciências tiveram que defini-lo de maneira mais precisa. Isto é necessário para fazer frente as especificidades de sua aplicação, de maneira clara e sem ambiguidades. Portanto nas ciências, ao se falar energia, temos que ter em mente algo bem específico, e não perder de vista que esta palavra designa principalmente uma transformação, ou a possibilidade de transformação.
Energia é um conceito que expressa uma grandeza escalar de transformação.
Em primeiro lugar energia não é a coisa em si, mas uma relação de transformação. JUNG está bastante ciente e adere a este uso específico do termo, da forma que é empregado na física e demais ciências, e por isso ele estipula que “a energia é propriamente dito um conceito que não existe objetivamente no fenômeno em si” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §26). Facilmente, e até usualmente, se pode entrar em erro e tratar com materialidade, ou até espiritualidade, o termo energia. Os usos populares habituais da palavra “energia” não nos ajudam a permanecer conceitualmente corretos quanto a isso.
Por exemplo, é difícil dizer que energia não é algo, já que pagamos a conta de luz todo mês, e existe um medidor de energia na porta de casa para isso; também abastecemos o carro com gasolina e álcool e pagamos por isso contra a medição de litros; igualmente carregamos o carvão ou lenha para atear fogo e gerar calor. Consumimos um pacote de bolacha e podemos ver no rótulo qual foi a ingesta de calorias, e logo podemos programar quantas horas passar na academia para purgar tal pecado: o mostrador digital na esteira, ou bicicleta ergométrica, vai apontando as calorias “queimadas” durante o exercício. Tudo isso nos sugere que o carvão, lenha, álcool, gasolina e eletricidade, a bolacha e seu recheio tentador, são formas de energia. Mas não é exatamente isso.
Voltando ao Gênesis, saber que a criação é produto do Verbo divino, que a vida foi insuflada por um Sopro, também nos induz a materializar a energia de criação na voz, ou a energia de vida no alento em si, ou podemos dizer que “sentimos a energia” de uma presença, ou a energia ligada a uma pessoa, e daí estaremos “espiritualizando” tal energia. Seria insensato não supor que, a partir da apropriação do conceito pela Física, não se poderia continuar adotando essa terminologia e esse modo de pensar que são arraigados na cultura, em todos lugares. Mas quando a ciência precisou de um termo específico para formular um conceito que expressa transformação, acaba se apropriando da palavra “energia”, aliás muito bem escolhida por expressar tão bem o caráter de: pôr em movimento, dar vida, transformar.
As ciências da natureza, digo os homens de ciência, sentiram a necessidade de dar quantidades e especificidade aos fenômenos que observavam, e isto exigia um método que pudesse gerar consistência e possibilidade de universalizar o conhecimento que se desenvolvia e descobria, e deveria ser de uma forma numérica, fazendo frente ao pensamento emergente do período renascentista.
É uma surpresa extremamente agradável, a de encontrar esta menção da Alquimia, acompanhada de ilustração (Figura 5), que descreve o momento histórico onde se colocam estas discussões, no livro didático de física usado como referência para este trabalho, e que pode descrever bem a situação:
Durante seu percurso milenar, a Alquimia criou um vocabulário, uma notação, uma prática e um instrumental, que foram herdados e conservados, de certa forma, pela Química. Entretanto, […os alquimistas] nunca conseguiram fazer uma experiência precisa pelo simples fato de nunca terem tentado. Não é o termômetro que falta ao alquimista, mas sim a ideia de que o calor seja suscetível de medida exata. Assim contenta-se com os termos do senso comum: fogo vivo, fogo lento, etc, e não se serve, ou quase nunca, da balança. Todavia a balança já existia. (CARUSO, 2006, p. 33)
Figura 5 – Laboratório de um alquimista, do pintor belga Bruegel, o Velho (CARUSO, 2006, p.33)
Nessa citação, poderia ser referido a uma força do fogo, para saber se é vivo ou lento. Se poderia referir à capacidade do fogo de derreter uma barra de metal. Nesse caso, além de um fogo vivo, seria necessário providenciar lenha em quantidade suficiente para manter o fogo vivo até o minério derreter.
A partir da noção de que é possível realizar medições, e dentro de um princípio científico que já demonstrava sua eficácia nos cálculos de movimento, o cientista francês Nicolas Carnot desenvolveu um modelo de descrição das trocas energéticas envolvidas no funcionamento de qualquer máquina térmica, considerando as variações de volume (pelo movimento de pistões por exemplo), de pressão e de temperatura no interior das máquinas. Seu trabalho, de 1824, foi importante na época para se entender as trocas de energia, e a transformação do calor em trabalho mecânico. Seu modelo serviu como padrão para o entendimento e aperfeiçoamento das máquinas a vapor da época. O modelo assim desenvolvido, batizado de “Ciclo de Carnot”, é tão correto que é usado até hoje para cálculos de eficiência de motores modernos de automóveis, compressores de geladeiras, etc.
Apesar do sucesso e longevidade do modelo proposto com o Ciclo de Carnot, naquela época de 1824, ainda se considerava que a energia térmica estaria associada ao “calórico”, que seria um fluxo que carregava em si a energia do calor. O “calórico” era uma hipótese de trabalho que ajudava aos cientistas compreender e aceitar o que ocorria no fenômeno físico, assim como foi o papel do éter durante tanto tempo (vide considerações de JUNG ao éter, p. 105-106). O “calórico” como fluido (portanto “coisa”) não poderia ser criado ou destruído, trazendo consigo a noção de conservação. Coube ao físico James Joule, em 1849, propor o calor como decorrente de um estado inerente da matéria, no caso a agitação das moléculas e as decorrentes colisões elásticas entre elas. Com isso a hipótese de um calórico, como um fluido, não era mais necessária.
Esse novo modelo para o calor sofreu muitas resistências para ser aceito, pois o “calórico” era intuitivo e fácil de ser imaginado, e o ciclo de Carnot funcionava perfeitamente ao considerá-lo, no que concerne a um modelo capaz de fazer previsões e estabelecer comparações. Além disso as ideias de Joule vieram antes mesmo de se ter um modelo atômico consolidado, e carecia de se aceitar que os choques das moléculas poderiam desempenhar um papel na manifestação da temperatura.
Joule acabou provando experimentalmente suas ideias acerca do calor, com um experimento em que aquecia água, agitando-a por pás que se moviam a partir da queda de um peso, e obtendo medições precisas da variação de temperatura decorrente, estabelecendo um cálculo coerente da energia envolvida. Concomitante a isso, outro inglês, Lorde Kelvin, provava que a matemática de Carnot permanecia válida mesmo sem a hipótese do calórico, ou seja, o calórico como “fluido da energia de calor”, não era mais hipótese necessária. Começava a se consolidar na ciência o modelo moderno de energia como um conceito, ajudando a descartar a ideia de um fluxo de algo, ou outra coisa parecida.
Essa é a noção de energia, que foi apropriada na física e posteriormente por Jung na Psicologia Analítica. É justamente a energia como conceito, e não como coisa (um fluxo de algo), que permite sua aplicação como ferramenta de análise do acontecer psíquico.
Energia é a capacidade de um sistema físico para produzir trabalho. Onde há trabalho sendo realizado, há energia envolvida. Podemos entender trabalho como a realização de algum tipo de transformação, como derreter a barra de metal no cadinho do alquimista. Com os corpos materiais por exemplo, ao deslocar um corpo físico por uma distância, o trabalho é definido e calculado como o produto (multiplicação) da distância deslocada pela força executada durante a tarefa. Pode-se imaginar uma caixa sendo deslocada de um lado pro outro, e alguém fazendo força para isso.
Força não se confunde com energia, são definições diferentes. No caso de mover uma caixa, se alguém faz força para empurrar a caixa, mas a caixa não sai do lugar, então não houve energia envolvida, pois, a caixa não se deslocou. A pessoa pode simplesmente se encostar na caixa, inclinando e apoiando o ombro, e permanecer ali o dia inteiro sem realizar trabalho algum, e sem, portanto, transformar nenhum tipo de energia para o ponto de vista da caixa e seu deslocamento. Obviamente a pessoa, continuando viva, gasta uma energia inerente ao “estar vivo”, vai sentir fome, mas isso são processos internos de manutenção de vida, e certamente envolvem energia, mas que são a expressão de transformações no âmbito da pessoa, nada referente à caixa a ser deslocada.
A caixa do exemplo pode estar sobre trilhos, e sem atrito algum, ao aplicar uma força, a caixa ganha velocidade e não para mais. Nesse caso a força aplicada promove uma aceleração, até atingir uma certa velocidade, adquirindo uma certa energia cinética que é calculada pelo produto (multiplicação) da massa da caixa pela velocidade atingida.
Se a caixa for erguida para cima de uma prateleira, e lá permanece, esse trabalho realizado pode ser descrito em termos da energia potencial, que é o produto da massa da caixa pela altura em que foi erguida, ainda multiplicado pela aceleração da gravidade. Massas (caixas) nas alturas sugerem que podem cair, e fazer um estrago lá embaixo. A essa disposição dos objetos, e a possibilidade transformação (cair e quebrar, por exemplo) fica associada uma energia, à qual se denomina energia potencial. A possibilidade da caixa cair e realizar um estrago, que também é uma transformação, dispenderá a mesma energia envolvida ao erguê-la. Isso é garantido pelo princípio da conservação da energia.
Se formos cuidadosos em exercer forças equivalentes nessas diferentes manobras com a caixa, poderemos chegar a dispender a mesma quantidade de energia em cada uma das diferentes operações. Por exemplo, podemos fazer trilhos que partem de um plano e depois curvam-se para cima até o alto da prateleira. Com isso, em lugar de erguer a caixa para o alto da prateleira, empurramos a caixa sobre o trilho até que atinja uma certa velocidade (energia cinética), com esse impulso a caixa vai subindo e perdendo velocidade (ganhando energia potencial e perdendo energia cinética), até chegar na prateleira com velocidade nula, e nesse momento a caixa na prateleira terá energia cinética nula e energia potencial igual àquela que haveria se eu tivesse erguido simplesmente a caixa.
Nesse último exemplo de manobra com a caixa, que aproveita o impulso de velocidade para ganhar altura, diz-se comumente que houve uma transformação de energia, mas se formos conceitualmente rigorosos, o que há é uma transformação dentro do sistema mecânico, nas posições e velocidades na matéria, e usamos o conceito de energia nesse exemplo apenas para olhar tal sistema desse ponto de vista. Essa última afirmação é um pouco complicada para entender (talvez), mas ajuda a compreender que o conceito de energia vem para auxiliar no entendimento das transformações da matéria, mediante a aplicação de forças e as transformações (trabalho) decorrentes.
Uma mola comprimida pode ser considerada um armazenador de energia potencial. Ao comprimir a mola, fazendo força, a integral (integral é uma operação matemática que faz um tipo de somatória) da força multiplicada pelo deslocamento da mola representa uma energia armazenada. Comprimir a mola é realizar trabalho, mas a mola comprimida sem movimento não realiza trabalho. Pode-se considerar, todavia, que guarda uma energia potencial equivalente ao trabalho empenhado para comprimi-la. O melhor exemplo desse caso é um relógio de corda com um pêndulo (todo relógio de corda tem pêndulo, externo ou interno). Ao dar corda no relógio realiza-se um trabalho que fica armazenado como energia potencial na mola, dentro do relógio. Se o pêndulo se move oscilando o balancim, o trabalho é revertido de volta no tique taquear do mecanismo e no rodar das engrenagens até os ponteiros, seguindo até que a mola se distenda. A mola comprimida vai mover o mecanismo aos poucos, sua força é aplicada aos poucos no pêndulo que se mantém oscilando e faz o relógio “andar”. O relógio é outro bom exemplo de um sistema mecânico para se olhar os conceitos de energia: forças, movimento e energia podem ser verificados.
Voltemos na imagem de uma caixa, uma fonte de força (a pessoa pronta a empurrar), uma prateleira, e trilhos. Vamos dizer que se está dentro de um galpão. Supondo que os trilhos, prateleiras e caixas permanecem sempre dentro do galpão, então eu posso aplicar o princípio da conservação de energia: as energias calculadas nas operações anteriores, ou seja o trabalho realizado dentro do galpão se anula no sentido que não entram nem saem caixas. Se porventura uma porta dá saída aos trilhos, e uma caixa vai rolando pra fora do galpão depois de empurrada, então posso afirmar que a energia empenhada em pôr a caixa em movimento (resultante da força de um empurrão), deixou o galpão e ganhou o mundo lá fora. Nesse caso há uma perda energética na forma da energia cinética da caixa em movimento. O galpão perdeu energia, e uma quantidade equivalente foi ganha no mundo lá fora.
Nesses exemplos das caixas se está tratando de energia mecânica, pois as transformações são da natureza mecânica da matéria (caixas que se movem, caem, etc.). Esse galpão pode ter janelas e portas, as pessoas, carregadores, entram e saem, mas ao fazer um cálculo do estado energético total das caixas no galpão, deve-se considerar se há saída para as caixas ou não. Se não tiver, então podemos dizer que o galpão é um sistema fechado, e a lei de conservação de energia se aplica a ele, para a energia mecânica associada às caixas. Se houver possibilidade de caixas entrarem e saírem, então esse sistema não é fechado e as contas energéticas devem considerar essas trocas com o meio externo.
Existe uma confusão usual entre estas grandezas, força e energia, que muitas vezes na linguagem coloquial são intercambiadas, embora não deveriam. Associamos uma quantidade de energia ao movimento da caixa, energia cinética. A caixa estando em repouso, aplica-se uma força numa dada direção, e a caixa se põe em movimento nessa direção, e esta quantidade de movimento está diretamente ligada à energia cinética. Se a caixa segue na sua direção de movimento (imagine que está sobre trilhos, sem atrito), podemos aplicar uma força contrária a esse movimento, ou seja, uma força na direção contrária até que a caixa fique novamente inerte. A força contrária atuou no sentido de “zerar” a energia cinética associada à caixa. Ambas forças aplicadas significam realização de trabalho.
A força realiza trabalho nesse caso, pois a caixa se moveu. Se se fizesse uma força na caixa sobre o chão (ou mesmo sobre os trilhos, mas numa direção ortogonal aos trilhos), e a caixa não se movesse, então a força não resultaria em trabalho, e não haveria uma energia envolvida. Veja que a força, ao promover movimento (transformação), realiza trabalho. Se estiver sobre trilhos, a caixa acelera até uma certa velocidade; cessando a força, a aceleração cessa e a caixa, em sua velocidade, “armazena” a energia. A caixa em movimento livre, sem força aplicada, desloca-se, mas não realiza trabalho. O trabalho, e a mudança do estado de energia associado, ocorre durante a aplicação da força. Depois ocorre novamente quando aplicada a força no sentido contrário para imobilizar a caixa. Daí, a força aplicada age no sentido de zerar a energia cinética que a caixa adquiriu durante o empurrão.
Em seus escritos sobre Energia Psíquica, JUNG chama atenção para o fato da energia ser uma grandeza escalar, isto é, um conceito quantitativo (JUNG, 2010, OC VIII/1, §27). Na física se fala que a energia é uma grandeza escalar, isto é, não guarda uma noção de direção ou sentido. Por outro lado, a força é uma grandeza vetorial pois inerente a ela está a direção (e sentido) que ela é exercida. Nas equações matemáticas, as grandezas vetoriais como a força mecânica, são representadas, bem sugestivamente, com uma flechinha sobre o carácter de força. No nosso caso da caixa, ela se move numa dada direção, coerentemente com o resultado da força aplicada. Força e velocidade são grandezas vetoriais.
A energia atribuída à caixa em movimento é uma grandeza escalar, sem direção. Se a caixa se move a uma velocidade de 1 metro por segundo, sua energia é a massa multiplicada pelo quadrado dessa velocidade, independente da direção que se mova. Esta diferença entre grandeza escalar ou vetorial tem consequências, e JUNG se aprofunda nisso quando, por exemplo, afirma que “A diferenciação entre energia e força é conceitualmente necessária, pois a energia é, propriamente falando, um conceito que não existe objetivamente no fenômeno como tal, mas se acha presente no fundamento da experiência específica” (JUNG, 1985, OC VIII/1 §26).
Força é muitas vezes confundida com energia na linguagem coloquial. Ao buscar herança na terminologia específica da física, Jung adota junto o discernimento entre as duas. Força está no ato e no fenômeno em si, enquanto energia permanece sempre como conceito de relação e de quantidade. “Quando em ato [i. é, aplicada], a energia psíquica se manifesta nos fenômenos dinâmicos da alma, tais como as tendências, os desvios, o querer, os afetos, a atuação, a produção de trabalho, etc., que são justamente as forças psíquicas” (idem).
Existe ainda, mais um termo herdado da Física, a energia potencial, que estabelece uma condição de possibilidade de atuar ou realizar trabalho. “Quando em potencial, a energia aparece nas conquistas [aquisições] específicas, nas possibilidades, disposições, atitudes, etc., que são condições” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §26)11.
Ao usar o conceito de força psíquica, como a força de um afeto, entra naturalmente a noção de equilíbrio devido à natural oposição que aparece no sentido contrário de toda força. Não há tal coisa como uma força que atua contra nada. Sempre que se perceba uma força, pode-se buscar onde ela atua, que tipo de força se trata, e como reage o meio à sua aplicação. Por exemplo, ao empurrar uma caixa com a mão, a própria caixa exerce uma força contrária.
Essa força contrária se denomina resistência, é uma força de oposição. É essa força de resistência o que se percebe na mão, sempre em oposição ao movimento, quer a caixa se mova ou não.
Se ao fazer o movimento de empurrar, ocorrer da mão errar o alvo, ficando no vazio, não será feita força alguma. Tal força que aparece sempre em sentido contrário à força aplicada, é o que está na base dos opostos que se compensam. Nesse sentido, se um afeto é percebido como uma força, algo já está a se mover ou ser pressionado, em termos da psique, assim como algo está a reagir de forma compensatória.
Ao aderir à terminologia da Física, visto aqui em certo grau de detalhes, JUNG toma o cuidado ainda em definir a psique como um sistema energético relativamente fechado. Com isso considerado, Jung poderá afirmar que uma certa energia psíquica que desapareceu da consciência pode (ou deve) estar na parcela inconsciente da psique, por exemplo num movimento retrógrado da libido. É provável que, com a afirmação de que a psique seria um sistema relativamente fechado, Jung está a dizer que a psique estabelece trocas e estas trocas visam um equilíbrio jamais atingido, que se verificaria em tese em um sistema fechado.
Os modelos empregados nos exemplos acima, como com as caixas, devem ser mais fáceis de entender pois lidam com objetos visíveis. Todo corpo que se move pode ser analisado sob o olhar do ponto de vista energético. O mais famoso estudioso dos corpos em movimento é sem dúvida Newton, seguindo Galileu, embora muitos aspectos das transformações tenham sido abordados e equacionados por outros pensadores.
Além de caixas, poderia se ter usado outros exemplos com bolas, balões, automóveis, rodas d’água, etc. Uma grande vantagem desses exemplos é que o objeto em análise é de uma materialidade fácil de ver, mesmo que apenas de forma imaginal. Ou mesmo que fosse algo muito pequeno para a vista, seria fácil de entender: tem dimensão e tem massa, isto é, materialidade da qual estamos mais familiarizados durante o dia a dia. Outras formas de energia, igualmente material, não são tão palpáveis. A maior dificuldade em imaginar o que seja exatamente a eletricidade, o magnetismo, dá ensejos a todo tipo de fantasia acerca desses fenômenos.
Há formas de energia menos visíveis na maneira de atuar, que a energia mecânica mostrada no exemplo de caixas, ou relógio, acima.
O calor é uma manifestação de estado da matéria sobre o qual igualmente podemos olhar sob o aspecto de energia. Percebemos o calor pelo sentido do tato, tanto ao encostar em um objeto quente ou frio, ou ao aproximar nossa pele desse objeto. Todo material tem uma certa temperatura, e a temperatura é a expressão de um nível de energia térmica desse material. Todo corpo tem a tendência de realizar uma troca de calor com o ambiente, isso sabemos por experiência. Pegamos uma panela de ferro no armário, a temperatura da panela será igual (ou quase) à temperatura ambiente da cozinha. Ao tocá-la, vamos perceber uma certa sensação de frio, pois a pele tem uma temperatura superior à panela e no contato desses dois materiais há a tendência do calor ser induzido da mão quente para a panela fria; a perda de calor na mão nos dá sensação de frio.
Se pegamos uma tábua de cozinha no mesmo armário, a sensação de frio não é a mesma, simplesmente porque a madeira é isolante térmico bem razoável, se comparado ao ferro, com isso a troca de calor da mão para a tábua é lenta e daí a sensação de frio é menor.
Todo corpo emite calor na forma de radiação, e esse calor emitido é proporcional à temperatura do corpo. Chamamos a isso calor radiante. O calor, como energia, é uma propriedade de todo corpo. Assim como emite, recebe calor, o que permite à panela funcionar como panela. Se deixamos a panela sob sol, a tendência é que ela venha a esquentar. Tem uma curiosidade: teoricamente, uma panela sob o sol vai esquentar até atingir a temperatura do próprio sol. Felizmente isso não acontece, pois, a panela fica continuamente perdendo calor, e consequentemente temperatura, pois ela igualmente irradia calor, e perde calor pelo contato do vento por exemplo. Sobre o fogo, a panela vai esquentar desde o fundo até as bordas, e é a panela que vai esquentar, por contato, a água ou óleo lá dentro, e aos alimentos ali depositados. Sabemos bem a transformação que esse sistema pode propiciar – entre outras coisas, garantem os antropólogos, com ajuda do fogo o homem se transformou em homem. Ao analisar o exemplo da panela dessa forma, estamos olhando para um sistema energético: para seu equilíbrio, embora no dia a dia não paremos para ver dessa maneira. Todavia todos sabem o que acontece se esquecer a panela sobre o fogo forte, depois que seca toda água.
O calor na forma radiante é invisível, sentimos pelo tato ao expor a pele ao sol ou ao aproximar da panela, mas nada vemos. O calor que se irradia é uma forma de energia eletromagnética. A luz é um tipo de radiação numa determinada faixa de frequência que os sensores no fundo dos olhos conseguem perceber. Por causa dessa equivalência, as lâmpadas são vendidas com sua “temperatura de cor” especificada na caixa. Hoje é possível construir sensores eletrônicos sensíveis à luz visível ou a outros tipos de radiação, por exemplo os sensores de máquinas fotográficas e sensores de movimento usados nos alarmes, estes últimos sensíveis ao infravermelho. Tais sensores fazem as vezes da nossa pele e olhos, ao perceberem as nuanças e alterações das radiações de luz e calor que sobre eles incidem.
Quando um sensor como esses produz algum tipo de sinal elétrico decorrente da exposição à radiação luminosa ou calor, dizemos que é um transdutor – transforma luz e calor em eletricidade.
A eletricidade e o magnetismo, são formas de manifestação da matéria que por excelência não podemos ver. Todos sabem o que é um ímã, o que é uma pilha ou tomada, mas só olhando à distância não conseguimos ver nada, a não ser que eletricidade e magnetismo estejam em algum processo de transformação. O que podemos ver são os resultados da transformação, durante um trabalho realizado por eletricidade e/ou magnetismo. Mesmo assim nem sempre.
Se diz que o peixe não tem consciência da água, a menos que salte para fora dela. Da mesma forma estamos imersos em fenômenos atuantes de eletricidade e magnetismo sem nos dar conta. Ao olhar a agulha da bússola, tomamos consciência do magnetismo da terra (ou outro magnetismo atuante, como um ímã próximo). Dois ímãs próximos exercem uma força entre si, assim como qualquer fonte de magnetismo irá exercer uma força sobre materiais magnéticos ou magnetizáveis, como o ferro, aço e outros. Não podemos ver um suposto “campo magnético” em volta do ímã, mas vemos a ação provocada por ele como resultado da interação com outros materiais magnéticos ou com a eletricidade.
Igualmente a eletricidade não se vê diretamente. Chamamos eletricidade um fenômeno da matéria que resulta do movimento e acumulação de cargas elétricas, que são inerentes a todo material. A uma carga elétrica em movimento num material condutor se dá o nome de corrente elétrica; a uma carga elétrica acumulada num material isolante (ou num condutor isolado) dá-se o nome de eletricidade estática. Todos temos experiência de pequenos choques ou faíscas ao tirar uma blusa de acrílico no inverno, ou ao sair do carro esfregando no banco de material sintético. Toda eletricidade não é visível diretamente, vemos ou sentimos seus efeitos nos materiais (e em nós mesmos) como o resultado do movimento das cargas elétricas, por exemplo faíscas, ou quem sabe um choque.
Um efeito em particular do magnetismo e da eletricidade é a interação entre estes dois, que se reproduzem um ao outro e se interferem na forma de força mecânica. Toda corrente elétrica produz um magnetismo em volta de seu fluxo; todo fluxo de eletricidade que se mova numa área com magnetismo presente, faz aparecer uma força mecânica entre si
– entre o magnetismo e o fluxo de eletricidade. Um condutor de eletricidade que se mova próximo a um magneto vai apresentar um movimento de cargas elétricas e a consequente tensão nas suas extremidades. A interação de corrente elétrica, magnetismo, e força mecânica resultante, acontece nas duas direções de aplicação da força elétrica ou mecânica. Com isso, o mesmo aparato eletromecânico pode servir como motor, ou como gerador de energia, os fenômenos são reversíveis do ponto de vista da aplicação da força. Pode-se sempre, em princípio, aplicar uma força mecânica para obter eletricidade ou aplicar força elétrica para obter o movimento a partir da força mecânica.
Se o acoplamento desses fenômenos elétricos e magnéticos, e eventualmente a força resultante, resultar em algum tipo de trabalho, então podemos observar tal sistema sob o prisma das trocas de energia.
Por exemplo, a agulha da bússola se move. Motores elétricos se movem no mundo todo a todo instante, em contraposição a geradores de energia que funcionam sem parar. Podemos ver os resultados da eletricidade a todo instante sem nunca ver a eletricidade em si. Mesmo um raio na natureza: vemos as nuvens sem poder supor se cairá um raio, simplesmente por que não vemos o fenômeno gradual de acumulação de cargas na nuvem. Ao ocorrer essa fenomenal descarga elétrica que é o raio, ninguém fica imune a seus efeitos, mas o que se vê, não é a eletricidade, e sim a ionização do ar no caminho da eletricidade (o que conhecemos por raio), vemos os pontos de contato na terra: árvores, casas, animais e mesmo os para-raios podem ser destruídos. Tal transformação é um trabalho realizado pelo deus Thor, o raio em si. Não se pode ver a eletricidade como não se pode ver a esse deus, mas sim aos resultados de suas ações.
Pode-se analisar todo o fenômeno, desde o seu início, de um ponto de vista das energias que vão sendo transmitidas, ou seja, do trabalho realizado: desde a acumulação de cargas elétricas nas nuvens até a descarga atmosférica; desde um gerador eólico até o motor que se move e a luz acesa. Desde uma ponta a outra do fenômeno, são interações da matéria, e podem ser analisados sob a ótica conceitual de uma grande troca de energia; as interações em si são interações entre os materiais, em suas diferentes manifestações.
No volume 8 das obras coletadas de Jung, o autor usa comparações com a eletricidade e usinas hidrelétricas ao abordar o conceito de energia. Ao falar acerca da formação do símbolo, é observado por ele corretamente o caráter mágico exercido sobre o homem, ao observar os fenômenos naturais essencialmente invisíveis com um olhar de atenção, que Jung qualifica “lúdico e incessante” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §90). A magia exercida pelo símbolo, essa “máquina psicológica, que transforma energia” (idem, §88), é irresistivelmente projetada fora dando-se crédito a uma transformação fora do corpo, como nas curas energéticas, e nos truques de mágica dos hábeis artistas. Todavia o ponto de vista energético, pode ser uma ferramenta de análise, um modo de ver bem mais simples e menos misterioso.
A eletricidade em si, assim como o magnetismo, são fenômenos basicamente invisíveis. Pode-se perceber a existência de algo como eletricidade ou magnetismo, através de seus efeitos em coisas visíveis, ou de outro modo perceptíveis aos sentidos. Objetos que acumulam cargas elétricas podem ser atraídos entre si, pois ocorrem forças entre objetos dotados de diferentes medidas de carga elétrica – cargas de sinal oposto se atraem, cargas de mesmo sinal se repelem. O que se vê é o movimento resultante, ou se pode mesmo sentir a força resultante de tal atração, e daí a suposição da existência de eletricidade. Um efeito simples e bastante visível da eletricidade ocorre numa lâmpada incandescente, onde o brilho resultante no filamento advém do aquecimento. Tal aquecimento advém da passagem forçada de uma corrente elétrica, através desse filamento que é uma resistência elétrica: o fluir de uma corrente de eletricidade forçado pela tensão, através da resistência, resulta em aquecimento. O que fica perceptível são luz e calor resultantes; a eletricidade permanece invisível. Mesmo uma descarga atmosférica (um raio no meio de uma tempestade), não é percebido diretamente como fenômeno elétrico, mas nos seus efeitos: a luz é promovida pela ionização dos gases da atmosfera durante a passagem de uma imensa corrente elétrica; o trovão é o som resultante do abalo mecânico promovido por essa ionização, esta resultante do rompimento dielétrico entre as extremidades da ocorrência do raio – nuvens entre si, ou daí para a terra (atravessando árvores, cercas, para-raios, animais, etc).
Igualmente no que se refere ao magnetismo, não se pode ver diretamente, assim como não se vê ou sente, com outros órgãos, o que ocorre nas proximidades de um ímã, todavia se percebe sua atuação no resultado da força, ou na percepção da força diretamente. Por exemplo uma agulha de bússola em ação, sob a força do magnetismo inerente ao globo terrestre, vai apontar em determinada direção. O resultado da ação da força é visível pela observação da posição da agulha, embora não se possa ver diretamente o magnetismo da agulha e tampouco o de nosso planeta, no qual aliás, estão imersos todos seres sensíveis, continuamente.
Voltando ao caso da hidrelétrica, pode-se ter uma ideia do alcance do modo de ver energético, com ajuda do funcionamento de uma batedeira de bolos. A batedeira tem dentro dela um motor elétrico, que move as lâminas, que por sua vez misturam a massa. O trabalho realizado desejado é o de misturar massa. Supondo que a batedeira desse exemplo seja muito bem construída, e não oferece resistência mecânica ao ser colocada em movimento. Dessa forma, ao ligar a batedeira o motor gira livremente sem resistência, e nesse caso não há trabalho envolvido. Ao fazer as lâminas moverem a massa, daí a massa oferece resistência ao movimento; o trabalho envolvido consiste, justamente, nesse mover a massa, misturá-la, e há uma transformação da eletricidade envolvida em movimento mecânico da massa. Quem já fez um bolo sabe que essa massa, quanto mais “pesada”, vai exigir da batedeira um maior esforço, que pode ser percebido pelo diminuir da rotação da batedeira, e que logo também se percebe pelo aquecimento nesse motor.
De onde vem a força que move as pás e a massa do bolo? A força mecânica que mistura a massa vem do motor da batedeira. O motor elétrico transforma, transfere, a força elétrica em força motriz, mecânica. A força elétrica vem pela tomada na parede. O cabo de força da batedeira vai plugado na tomada, fica eletricamente ligado à fiação da casa, que por sua vez está ligada aos cabos que chegam da rua. Estes vêm pela rua a partir de um transformador, usualmente pendurado num poste. Esse transformador entrega tensões de 110V a 220V de magnitude, a partir de sua outra interface de tensões em faixa bem mais alta, por exemplo 13.800V de magnitude. De um lado, as tensões na faixa de 110V são próprias para uso doméstico, os eletrodomésticos são fabricados neste padrão. Do outro lado do transformador, as altas tensões são apropriadas para a transmissão de energia a distâncias longas.
A tensão elétrica em si representa um tipo de força disponível, mas não é o trabalho em si, ou seja, não há por si energia envolvida, pelo simples fato da força estar presente. Da mesma forma que no exemplo com caixas, fazer força na caixa não representa energia, não há trabalho feito, a menos que a caixa se desloque, ponha-se em movimento. No caso da eletricidade se dá o mesmo, de forma exatamente análoga. Há esta força elétrica disponível na tomada, o tempo todo. Ao plugar o fio da batedeira na tomada, esta força fica disponível para o motor, quer ele se mova ou não. Ao ligar o motor, este gira, mas sem resistência mecânica oferecida, o motor gira livremente e não realiza trabalho. Eletricamente isso se reflete em que não há corrente elétrica (fluxo de eletricidade) pelos fios, causados pelo trabalho da batedeira (na verdade há correntes residuais que mantém o conjunto girando, mas logo acima consideramos que a batedeira é bem construída, a ponto de não oferecer resistência, e suas engrenagens se movem livremente, então vamos desconsiderar essa corrente residual).
Nesse modelo da batedeira, só haverá realização de trabalho quando se insere as pás na massa; a massa oferece resistência ao movimento mecânico das pás, e a esta força mecânica contra o movimento das pás, a interação eletromagnética no motor responde com uma corrente elétrica proporcional de potência equivalente à tal resistência mecânica (tecnicamente denominada de força contra eletromotriz induzida). Esta corrente está disponível para aparecer, pois o fio da batedeira ligado na tomada mantém o valor da tensão, a força sempre presente no conjunto do motor. De um ponto de vista energético, todo trabalho realizado na massa, está sendo provido através da tomada elétrica, com o motor a serviço de uma transformação de energia elétrica em energia mecânica. Ao considerar o motor dentro de um modelo ideal, sem perdas, pode-se assegurar que o exato valor da energia dispendida na massa, foi entregue a partir da tomada.
A tensão sempre presente na tomada é uma força constante, mas não quer dizer energia ou trabalho: isso só ocorre quando se põe a trabalhar a massa. Considerou-se até aqui, o caminho dos fios até o transformador de tensão no poste fora de casa, mas o que há além dele?
Os fios em tensões mais elevadas, apropriadas para transmissão de eletricidade a longas distâncias, se estendem a partir daquele transformador no poste perto de casa na direção de outros transformadores de tensão apropriados a carregar eletricidade a distâncias ainda maiores (no Brasil essa é a situação). Na outra extremidade deste sistema de cabos de transmissão de eletricidade há uma usina hidrelétrica (vamos simplificar, pois na prática há uma rede de transmissão de energia, assim como uma rede de usinas produtoras de eletricidade). Encontra-se comentários de JUNG bem apropriados quando ele cita, que “[…] a queda d´água é com certeza mais bela do que uma usina hidrelétrica” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §90). Afora a questão do impacto ambiental, seus comentários são adequados na analogia desse sistema energético, apenas mais detalhado aqui.
O gerador na usina hidrelétrica funciona de forma exatamente análoga ao motor da batedeira, atuando por meio da interação entre eletricidade e magnetismo com a força mecânica surgindo pela interação entre essas grandezas. Há apenas uma inversão de papéis. Na usina, o movimento do conjunto eletromecânico é proporcionado pela pressão da água, como bem lembra JUNG (idem, §90 e subsequentes), sendo que a força mecânica proporcionada pelo movimento da água, empurrada sob a pressão dada pelo desnível entre lago e gerador, garante que este gerador se mova, e o conjunto girante transforme a força mecânica em força elétrica, transmitida ao longo de fios e transformadores até o cabo da batedeira e finalmente seu motor, que transforma outra vez em energia mecânica.
Usando esse exemplo bem simplificado, como modelo de um sistema energético, é possível exercitar os raciocínios a seguir, acerca da energia em si. A usina é denominada fonte de eletricidade; a batedeira é denominada carga elétrica; os fios e transformadores de tensão entre eles são um sistema de transmissão de eletricidade.
Usa-se um dispositivo eletromecânico na fonte – o gerador na usina. Usa-se um dispositivo eletromecânico na carga – a batedeira. Todavia o trabalho útil em casa é de ordem mecânica, posto que é misturar a massa. Assim também a origem da força da eletricidade é igualmente mecânica (aqui hidráulica), na forma da pressão de água. De um ponto de vista da energia envolvida nesse sistema, um modelo simplificado, pode-se afirmar com segurança que, todo trabalho realizado na massa do bolo ao ser misturado, teve sua origem no trabalho da água sob pressão empurrando e movendo o gerador da usina. Do ponto de vista da energia, é possível abstrair tudo que há entre a água do lago, e a massa do bolo sendo misturada. Assim, é como se cada virada na massa do bolo fosse feita diretamente pela força do peso de uma pequena porção da água, por exemplo uma caneca de água, exercida a partir do lago. Isso pode parecer um tanto estranho, mas é exatamente o que acontece, e esse é um modo energético de ver todo o processo. Uma mudança de cenário pode tentar esclarecer esse fato, o que será feito agora.
É possível, em suposição, imaginar o mesmo lago sem a existência da usina de eletricidade, e em igual suposição, a mesma massa de bolo a ser misturada pelas pás da batedeira, agora uma batedeira sem o motor elétrico. Há o mesmo trabalho a realizar, que é misturar massa de bolo, e a mesma fonte de força para realizar tal trabalho, qual seja a água no lago. Imagine-se nessa suposição, uma roda d’água movida a partir das águas do lago, engendrada por eixos e polias até as pás da batedeira. É uma imagem usual de moinhos de pedra, um mecanismo bem simples. Nesse caso fica mais fácil imaginar a “transmissão” da força desde o fluxo de água até o movimento das pás na massa de bolo. Igualmente, a resistência dessa massa, que retarda o movimento das pás, que age de volta nesse conjunto mecânico até a roda d’água, na forma de resistência ao movimento.
De um ponto de vista energético, pode-se afirmar que não há diferença entre estas duas maneiras de misturar massa de bolo, com uma batedeira que, no fim, usa a força da água do lago. Pode haver resistência em aceitar essa afirmação, por parte dos engenheiros da empresa de energia elétrica, mas essa é a realidade.
Há uma diferença entre estas duas suposições, quanto a distância física entre a fonte de força e o local de uso. Ao usar a força da água disponível num lago do rio Paraná, próximo à foz do rio Iguaçu, torna-se improvável do ponto de vista prático, aproveitar tal força para acionar as pás de uma batedeira de bolos em Curitiba, usando somente engrenagens mecânicas. Pode-se imaginar um longo eixo, ou uma correia de polia, percorrendo tal distância. Mas com certeza seria uma obra complexa demais para apenas fazer bolo. Nesse caso seria melhor misturar o bolo com a mão mesmo. Se fosse uma indústria de bolos, pode-se imaginar um sistema de roda d’água na saída de água do lago no parque Barigui, e a fábrica instalada bem ali. A enorme praticidade no uso da eletricidade para essas coisas corriqueiras, como fazer bolos, justifica a existência e importância dos investimentos em sistemas de energia elétrica, e resgata o orgulho ferido do engenheiro dessa área, posto em questão pela afirmação acima.
Com o intuito de aferir melhor os conceitos, pode-se dizer: uma força é necessária para misturar a massa de bolo; ao misturar a massa aplicando força, dispende-se uma certa quantidade de energia; essa energia é de ordem mecânica. A energia empregada corresponde ao trabalho realizado na tarefa: conceitualmente, energia e trabalho são equivalentes. A força usada para misturar a massa pode vir da água de uma represa. Essa força disponível na água, embora tenha a potencialidade de uso, só realiza trabalho se for aplicada de alguma forma adequada às intenções do trabalho a ser feito. Por exemplo, não adianta despejar a água de uma cachoeira diretamente sobre o bolo: a energia será aplicada, portanto trabalho realizado, mas não é esse o objetivo! Para ser aplicada na massa, a força é condicionada e dirigida para a pá da batedeira. O meio de condicionamento para isso, pode ser tanto mecânico, usando uma roda d’água acoplada diretamente, ou por meio de dispositivos elétricos e eletromecânicos como é feito hoje em dia.
No primeiro caso, o trabalho de misturar massa vem da energia dispendida na queda d’água, condicionada pela roda d’água e demais engrenagens até a batedeira. No caso de uma batedeira elétrica, o trabalho de misturar massa vem da força do motor elétrico da batedeira, que aproveita a força elétrica disponível na tomada, que pode fornecer um fluxo de eletricidade pois está ligada numa rede elétrica, que por sua vez conta com transformadores de tensão, tensão essa que tem origem num gerador de energia, que aproveita a força da água originada na diferença de altura da queda d’água.
Parte desses sistemas é igual. O gerador de eletricidade na usina hidrelétrica, tem uma parte mecânica que é basicamente uma roda d’água, que faz girar o gerador de eletricidade propriamente dito. Em ambos casos, várias transformações são possíveis de verificar.
A água na represa (ou lago), pode exercer uma força e representa energia em potencial, isto é, um potencial de realização de trabalho. Este potencial é aproveitado numa roda de água, fazendo força nessa roda, que pode vir a girar, e nesse caso a energia de origem hidráulica ser transformada em energia de rotação da roda. A roda d’água, acoplada por um eixo num gerador elétrico, produz uma tensão elétrica enquanto gira. Para isso existe um acoplamento eletromagnético que, durante a rotação do gerador, produz a tensão elétrica em seus terminais, de onde saem cabos elétricos. Estes cabos são lançados em distâncias (grandes ou pequenas), e para melhorar a eficiência do conjunto, em valores de tensão bem alta, apropriada para transmissão. Para uso doméstico, essa tensão é rebaixada em dispositivos chamados transformadores de tensão: novamente uma interação de ordem eletromagnética (sem partes mecânicas móveis), e essa força elétrica, a tensão elétrica, fica disponível na tomada. O motor da batedeira, realiza uma transformação eletromagnética mecânica (similar ao gerador); ao ser plugado, faz girar um conjunto mecânico com as pás em movimento. Tais pás mov a massa, exercendo força mecânica e realizando o trabalho de misturar o bolo. Retroativamente, essa força exigida pela massa durante a mistura, se traduz em esforço mecânico do motor, que por sua vez exige da parte elétrica na forma de corrente, que por sua vez exige dos transformadores de tensão, que por sua vez exige dos sistemas de transmissão de tensão, que por sua vez exigem do gerador, que exigirá mais água, para continuar girando.
Usualmente ninguém se dá conta disso, mas qualquer esforço no trabalho a ser realizado, por menor que seja, corresponde a um esforço equivalente na origem desse sistema, e cobra sua compensação, que nesse caso é água do lago.
Em ambos casos de misturar a massa usando batedeira, quer essa disponha de um motor elétrico, ou seja, acionada por correias, o ponto de vista energético diz que a situação é a mesma. Quer se esteja longe ou próximo da origem da força a ser empregada, nesse exemplo um lago, a situação energética é a mesma. Na prática se pode imaginar a inviabilidade de fazer tais coisas como bater um bolo em Curitiba usando diretamente a força de um lago, com engenhocas mecânicas, a cerca de 700 km de distância. Pode-se ainda pensar numa forma de levar a água do lago, sob pressão e usando canos, desde o lago até essa distância de 700 km. Isso é teoricamente inviável, pois Curitiba é mais alta, com o que um aqueduto não poderia levar água de Foz do Iguaçu de volta à capital paranaense contando com o declive natural. Haveria questões logísticas talvez intransponíveis, em qualquer desses casos, mas é possível desconsiderar a logística e examinar apenas a situação energética, já que se trata de um experimento mental.
Em um sistema de transmissão de forças, quer sejam forças de ordem elétrica ou mecânica, sempre existem, na prática, perdas inerentes a tais sistemas, perdas essas de diversas origens. O termo perda aqui refere-se ao esforço realizado na origem de um tal sistema de forças, que é perdido no meio do caminho e, portanto, não chega totalmente ao seu destino, na produção do trabalho final desejado. Tais perdas, ou seja, a diferença entre a energia dispendida na origem, e aquela realmente transformada em trabalho no final, dá uma dimensão da eficiência do sistema como um todo, do ponto de vista energético.
As perdas são inerentes aos meios empregados em cada etapa de transformação das forças ou da sua transmissão. A batedeira, como todos sabem (sabem?), faz barulho e esquenta. O som é uma propagação de ondas mecânicas originadas no movimento das peças dentro da batedeira, e carrega uma certa energia. Esquentar indica uma mudança de temperatura, energia que se transmitiu na forma de calor para os materiais da batedeira, e tem origem no atrito mecânico das peças, e sendo também resultado da corrente elétrica na fiação interna da batedeira, ou mesmo das partes de ferro do motor aquecidas pelo magnetismo durante o funcionamento.
Todo sistema de transmissão de energia produz perdas para o ambiente, na forma de calor produzido pelo fluxo de eletricidade nos condutores (atrito elétrico), ou pelas perdas magnéticas nos núcleos dos transformadores. Estes chegam a esquentar tanto que usam radiadores de calor para ser resfriar, e mesmo assim às vezes explodem.
Um sistema puramente mecânico, sem geradores e motores elétricos, sofre perdas igualmente. Estas têm origem no movimento da água em canos, nos ajustes de polias e engrenagens, em mancais pouco lubrificados, e etc. Uma engrenagem mecânica mal ajustada e mal lubrificada pode sofrer desgast moendo a si mesma e se corroendo. Mesmo as boas engrenagens bem lubrificadas, com o tempo sofrem desgaste – nesses casos as forças resultam em estragos. O desgaste da engrenagem, produzindo uma fina limalha de aço que fica misturada ao óleo lubrificante, indica que parte da energia foi empregada aí. Isso é trabalho, mas se o objetivo não é produzir limalha de aço, então denomina-se perda.
Esse exemplo simples, de bater massa de bolo com batedeira, carrega vários conceitos de força, de transformação, e de energia. Ao olhar tais sistemas como um todo, e sob um ponto de vista energético, é possível recapitular a história da seguinte maneira. Há uma massa de bolo a ser batida, isso significa um certo trabalho, que é o de transformar os ingredientes em massa, misturando. Há uma disponibilidade de força inerente à água e a diferença de nível da superfície do lago até a roda d’água ou turbina hidráulica. De alguma maneira, usamos a disponibilidade de força hidráulica p realizar o trabalho na massa. No meio do caminho, lança-se mão de dispositivos mecânicos, elétricos, magnéticos, em combinação e engenhosamente dispostos, de forma a transformar, condicionar e transmitir as forças; o trabalho realizado no bolo, em termos de energia, equivale à energia tomada no lago.
Visto assim, esta progressão de forças pode ser entendida em duas direções, desde o lago até a massa, e inversamente desde a massa de volta ao lago. No primeiro, pode-se entender que o lago dispõe uma certa quantidade de água em movimento, que empurra a turbina, que move o gerador, que empurra eletricidade pelos fios, que é transformada e adequada ao longo de um percurso, e que por fim empurra o motor, que move as pás e mistura a massa. Inversamente, numa segunda análise, mas similar, pode-se dizer que se move a massa que opõe resistência ao motor, que toma impulso (força) a partir da tomada que entrega o fluxo de eletricidade necessário ao torque oposto pela massa (a massa oferece resistência para ser misturada). Esse fluxo de eletricidade percorre todo sistema elétrico até o gerador na hidrelétrica, e aí compensa a descida da água pela oposição de força originada pela massa!
Na verdade, um fluxo de eletricidade que atravessa um fluxo magnético, envolve um fenômeno chamado de “força contra eletromotriz induzida”, e pode resultar em um torque mecânico entre esses dois fluxos. Esse termo técnico é a denominação do fenômeno que se observa, descrevendo essa relação de forças de diferentes qualidades, quais sejam força mecânica, elétrica e magnética. Isso ocorre de maneira similar dentro de motores e geradores. No caso da eletricidade, é tal força que “empurra” os elétrons (a eletricidade em si) pelos fios, da mesmíssima maneira que as diferenças de pressão fazem fluir a água pelos canos em qualquer sistema hidráulico. Por isso é possível dizer que massa de bolo e água no reservatório se movem uma à outra, quaisquer que sejam os mecanismos interpostos no meio do caminho entre essas duas forças. E em todos casos, pode-se falar em termos de energia, de uma ponta a outra de tal sistema: quantidade de energia demandada pela massa será transformada em energia mecânica, elétrica, magnética, ao longo do dito sistema, num acontecimento único e equivalente, concomitante em cada parte da cadeia de transmissão.
Nas páginas precedentes, foram usados vários modelos diferentes, que propiciaram diversos experimentos mentais, girando em torno da tarefa de bater bolo, sem usar um grama de farinha. Com isso foi possível explorar os conceitos de força, trabalho e energia. Foi usado um modelo, mais familiar, de uma batedeira elétrica. Outro modelo foi de uma batedeira totalmente mecânica, mais parecida na sua concepção, a um moinho de pedra. Para uma análise do ponto de vista energético, foi adotado modelo de mecanismos sem perdas, e com isso se pôde concluir que a quantidade de energia (trabalho) dispendida na massa é idêntica à energia produzida com a água do lago.
Num outro modelo, mais próximo da realidade cotidiana, os exercícios mentais consideraram algumas perdas (não todas) possíveis, que geralmente ocorrem. Nesse caso, apenas uma parte da energia produzida pela água na roda ou turbina, chega a ser capitalizado no trabalho de misturar a massa. Parte dessa energia (trabalho) se perde, mas não desaparece. A conta total de energia sempre termina com balanço final sem que nenhuma parte desapareça; o que se chama perda são as transformações secundárias ao objetivo de bater massa: os aquecimentos das partes mecânicas e elétricas, os desgastes dos materiais, as perdas magnéticas, etc. Considera-se o trabalho útil realizado comparado às perdas para se chegar a uma noção do aproveitamento líquido do esforço aplicado em função de um objetivo. Na realidade, tudo são forças e resistências, sendo considerado útil aquele esforço efetivamente aplicado a serviço dos objetivos. Mas o objetivo é um querer do homem, não da natureza. O ponto de vista energético nos ajuda a encontrar o caminho natural das forças, numa dada situação, e onde resultou o efeito do trabalho, desejado ou indesejado.
O conceito de modelo é importante na ciência, tanto na física como na psicologia, antropologia, etc. Lança-se mão de um modelo, como feito acima, cada vez que se inicia a descrição de uma situação. Muitas vezes quem faz um modelo não se dá conta disso, mas sempre fica mais claro o raciocínio, quando se pensa num modelo, e não na realidade direta do objeto em estudo, em discussão. Talvez a razão não consiga dar conta da realidade em toda sua complexidade, mas sempre se pode descrever a realidade dentro de um modelo possível de ser pensado e discutido. É dentro de um modelo de realidade que se torna possível desenvolver conceitos, como o de energia.
Há mais um fato interessante, a ser explorado no exemplo da batedeira. Algumas formas de manifestação das forças, assim como do trabalho, são perceptíveis diretamente pelos sentidos, e outras não. Nesse exemplo, a massa de bolo sendo misturada (trabalhada) é bem perceptível pelo seu aspecto visual, a textura pode ser percebida pelo tato conforme os ingredientes se combinam; os ruídos da batedeira dão indício de que ela está realizando um trabalho. Na outra ponta, se pode observar a água que move a roda; ou observar polias e engrenagens em movimento. Porém o magnetismo e a eletricidade são imperceptíveis aos sentidos, a menos que alguém leve um choque. Mesmo nesse caso de choque elétrico, não será a percepção da corrente elétrica que move a batedeira, e sim a que se perde pelo corpo da infeliz pessoa.
Alguns fenômenos perceptíveis, mesmo secundários, dão indícios da presença dos fenômenos elétricos ou magnéticos. Como o cheiro de fio queimado pelo excesso de corrente, ou ruídos de dispositivos elétricos e/ou magnéticos, porém eletricidade e magnetismo não têm cheiro ou cor, por si. Antigamente, quando tais fenômenos eram desconhecidos ou começavam a ser estudados, pôde-se por isso, pelo seu caráter impalpável e invisível, atribuir qualidades mágicas ou mesmo espirituais, aos fenômenos. Mas apesar de invisíveis e inodoros, eletricidade e magnetismo são fenômenos da matéria.
Para esmiuçar um pouco mais o caráter da percepção das forças, é propício voltar aos modelos de batedeiras. Se a força d’água for transmitida por um eixo enorme, desde a roda de água até o local da batedeira, é possível ver o eixo girar, e supor a força continuamente exercida ao longo do eixo (torque, nesse caso) no sentido de girar e manter a massa em ritmo de mistura. No modelo com batedeira elétrica, vemos os fios elétricos, sem poder supor se há tensão presente (força) ou corrente passando. Todavia, a força elétrica representada pela tensão presente no fio é tão material quanto a força exercida no eixo. E o fluxo de eletricidade, decorrente da força das pás da batedeira mexendo a massa, é o movimento dos elétrons que se deslocam fisicamente ao longo do condutor (elétrons são também um modelo da realidade, não a realidade em si; porém um modelo que até agora tem sido útil e adequado para descrever a maior parte dos fenômenos da matéria).
Existe ainda uma força de outra natureza nesse modelo proposto, que de tão presente e universal, acaba passando desapercebida. A força da água, inerente ao desnível entre a superfície do lago e a turbina ou roda d’água, é decorrente da atração que os corpos exercem entre si. A força gravitacional, também referida por aceleração da gravidade, e assim como as forças elétricas e magnéticas, não é visível por si. É uma força invisível que aparece entre dois corpos, e é proporcional às suas massas. O que a física denomina massa, é uma medida da quantidade de matéria, ou seja, as forças gravitacionais são tão materiais quanto a matéria em si, ao ponto de serem diretamente proporcionais à quantidade de matéria.
Apesar de invisível, pode-se perceber essa força que atua constantemente. Essa percepção é proporcionada pelo tato, que sente o contato com o chão, e também pelos sistemas intraceptivos do corpo, e pelo esforço do sistema nervoso motor e dos músculos em si, na ação compensatória e de resistência ao peso. As sensações de cinestesia ao mover o corpo, produzem a noção acerca dessa força de origem gravitacional, assim como o observar as trajetórias e movimentos dos corpos, os pendulares das massas dependuradas, e por daí vai. A universalidade e constância da presença dessa força, é que faz com que passe despercebida, assim como o homem antigo desconhecia a presença do ar, embora reconhecesse a ocorrência do vento.
Ao olhar esse exemplo simples de uma batedeira e um lago, com um ponto de vista da energia envolvida, é possível examinar o sistema a partir do lago, ou a partir da massa de bolo. É importante notar que, cada movimento de misturar massa, exige uma certa força nas pás da batedeira e envolve a realização de trabalho “nas duas extremidades desse sistema”. A cada volta das pás da batedeira, um tantinho de trabalho é realizado na massa, e concomitantemente (de uma forma simplificada poder-se-ia dizer “ao mesmo tempo”) um tantinho equivalente desse mesmo trabalho é realizado pela água do lago. Essa frase é verdadeira quer consideremos as perdas ou não.
Em um sistema real, considerando as perdas mencionadas anteriormente, isso permanece igualmente verdadeiro, pois as perdas de energia nada mais são que um “trabalho à revelia das intenções originais” de trabalhar a massa. Ao olhar esse sistema de forma energética, se pode fazer um “balanço da energia total” envolvida a cada instante no sistema. O total da energia num sistema fechado é sempre nulo, já que no sistema supostamente fechado, não pode haver um aparecimento ou desaparecimento da energia.
Pode ocorrer de haver perdas muito importantes, que impliquem na impossibilidade de realizar o trabalho que se deseja ao final. Supondo que, no caso do sistema elétrico, houvesse em qualquer lugar um pedaço do fio elétrico com uma resistência própria muito elevada. Isso na prática pode muito bem ocorrer na situação de uma tomada defeituosa ou mal instalada – aquela mesma que se vai plugar a batedeira. Nesse caso específico, as tensões elétricas estarão normais, até que se comece a bater a massa. Ao bater a massa, realizando o trabalho, o fluxo de eletricidade (corrente elétrica) pela tomada vai provocar um aquecimento devido ao mal contato, que representa uma “resistência elétrica” onde deveria haver passagem livre. Se tal resistência for significativa, enquanto a massa é batida a tomada aquece.
Em muitos casos onde se vê mudança de cor nas tomadas ao longo do tempo, é devido ao aquecimento por mal contato. Aquecer a tomada é um tipo de realização de trabalho: uma parte da energia total desse sistema (lago, turbina, gerador, cabos e transformadores, tomada, motor, pás da batedeira e massa de bolo), está sendo destinada a aquecer a tomada, embora isso possa não ser a ideia inicial. Conforme as dimensões da resistência elétrica na tomada, pode ocorrer também o seguinte: o motor “quer girar”, pois há tensão, mas com uma baixa corrente o motor não gira, e toda tensão vai parar na tomada. Outra situação é que, o motor gira, só que mais devagar que o esperado, e nesse caso há uma corrente elétrica significativa que pode causar um aquecimento igualmente significativo na tomada que oferece a “resistência indevida e indesejada”; nesse caso específico a massa é batida devagar, e a tomada aquece depressa. A energia obtida a partir do lago será usada para bater massa e queimar tomadas. Não é difícil começar um incêndio.
Outra forma de bloqueio da energia, seria imaginar uma combinação de ingredientes inadequada, com a massa inicialmente muito dura. Nesse caso pode ocorrer das pás não se moverem, ou moverem muito devagar, fazendo o motor da batedeira girar muito devagar, com um torque (força) maior que o previsto pelo fabricante do aparelho. Isso provoca o aparecimento de uma corrente elétrica igualmente maior, e esta vai aquecer as partes internas do motor numa proporção também maior – no conjunto, a energia do sistema será dispendida dentro do motor numa proporção inadequada; se tal situação perdurar por um tempo suficiente, pode-se danificar o aparelho ou mesmo iniciar um incêndio.
Com isso, é possível ver que se pode olhar o sistema em questão, tanto a partir do lago, como da massa do bolo, ou com a atenção em outras partes. Igualmente se pode ver que o sistema reage de maneira diferente, com diferentes “produtos” que podem ser ou não de interesse: de um ponto de vista da energia, o trabalho realizado, que representa transformação, pode nem sempre ocorrer nos pontos para onde a atenção esteja dirigida num dado momento.
Um outro fato muito importante também, é a questão de as forças serem exercidas sempre em termos de polaridades. Sempre que se observa uma força, pode-se perguntar “de onde para onde?”. Ambos lados dessa força denotam uma polaridade. Por exemplo numa corda alongada na brincadeira de cabo de guerra: cada lado da corda é um polo da força que se propaga ao longo da corda. Sem um dos lados a corda inteira fica largada, não há tensão.
Na situação dos sistemas elétricos é a mesma coisa.
Cada uma das partes nesse sistema, no exercício mental conduzido até aqui, pode ser pensada isoladamente. Questões e respostas podem ser dadas de forma pontual ou global. É lícito afirmar que a massa é misturada pois as pás da batedeira se movem. Tal afirmação é correta e completa em si, uma verdade intocável, que guarda todo poder do pensamento causal da mecânica. Temos causa e efeito, um completa e justifica o outro. Esse mesmo método pode ser aplicado a qualquer parte do sistema, e continuará correto. Mesmo ao ver o sistema como um todo, tal enfoque continua válido. O pensamento causal não carrega uma contra argumentação lógica per se. Todavia, a visão do todo pode ganhar um sentido mais significativo ao se considerar a energia como questão basilar. Por exemplo, se há trabalho sendo realizado, há transformação e há uma origem e fim dessa transformação, da energia envolvida.
Existem outras transformações da matéria, presentes no dia a dia, além das mencionadas até aqui. Uma de importância primeira na história humana é a combustão. A combustão é uma reação química de redução de oxigênio. Uma combinação de combustível e comburente, numa temperatura adequada, promovem a reação de combustão. Comburente é um gás contendo oxigênio, como o ar. A combustão sempre gera calor, normalmente acompanhada também de luz. Um ambiente dotado dessa mistura, de combustível mais comburente, ao ter a combustão iniciada mesmo que em pequena monta, pode iniciar uma reação em cadeia: as porções da mistura que estão em reação, provocam o início da reação nas demais porções próximas, devido ao calor liberado. Se tal ambiente for fechado, ou tiver restrições de abertura, é possível ocorrer um aumento de pressão. Quando esse aumento é repentino e forte, ocorre a explosão, como dentro de uma cozinha que se encheu de gás, ou dentro da câmara de um motor a combustão. De qualquer modo, esse aumento repentino de pressão pode provocar movimentos da matéria a sua volta. No caso de uma fogueira ao ar livre, o ar em torno se move livremente em volta da fogueira e a explosão não se observa. Todas essas transformações podem ser vistas a partir de um ponto de vista da energia. A capacidade energética de um copo de álcool é avaliada em termos da quantidade de trabalho que pode ser obtido a partir dessa quantidade de combustível, independente da forma de uso dessa energia.
Por exemplo, pode-se queimar o álcool, aproveitar o calor da queima para aquecer água numa panela, ou numa caldeira. Na panela se pode aproveitar para fazer comida. A caldeira, sendo fechada, gera vapor sob pressão, e tal vapor sob pressão pode ser dirigido a um pistão, que por sua vez move uma roda de trem. O trem nesse caso se move a partir da reação química do álcool, mais os aparatos dispostos convenientemente para transformar as forças resultantes em movimento útil.
Pode ocorrer também, de se injetar uma mistura de álcool e ar diretamente no interior do pistão que move a roda do trem. Se for possível provocar uma faísca dentro do pistão, a reação química da queima vai ocorrer e essa explosão controlada resultará no movimento desejado: a queima do combustível dentro da câmara de combustão, chamada explosão, provoca um aumento de pressão que empurra a parte móvel, chamada pistão, que por sua vez move a roda que move o trem. Esse último exemplo é o do motor de combustão interna (pois interno à câmara onde se move o pistão), hoje chamado simplesmente de motor a combustão.
O resultado de uma reação química de queima de combustível, sempre gera calor e luz, e as demais consequências como variação de pressão, etc., que são aproveitadas diretamente ou indiretamente. Pode-se supor nos exemplos iniciais com a usina hidrelétrica, que o gerador de eletricidade é movido pela força propiciada pela queima do álcool, numa caldeira ou diretamente num motor de combustão interna. Afora a origem da força que move o gerador, todas as demais considerações feitas até o trabalho de misturar massa de bolo, são exatamente iguais. Ao mover a massa, cada volta das pás da batedeira exigem um certo esforço extra do gerador, e para poder movê-lo, será necessária uma quantidade extra de combustível para queimar, ou uma porção a mais de água da represa para empurrar as pás de uma turbina.
Essa forma de olhar um copo de álcool, já imaginando a capacidade que essa quantidade de material combustível tem de gerar algum tipo de trabalho, é uma maneira de pensar em termos da energia. A aplicação dessa possibilidade, na prática, é de tamanha monta, que se passou a referir aos diferentes combustíveis pela sua capacidade energética. Sabemos por exemplo que, usado por um motor a combustão interna, um copo de álcool tem rendimento equivalente a 70% quando comparado a um copo de gasolina, e com isso se pode comparar os preços no posto de combustíveis, antes de escolher qual será mais vantajoso para o bolso.
O resultado de uma reação de combustão sempre gera calor, como falado acima. Caso esse calor seja aproveitado diretamente, para aquecer o ambiente ou uma panela, pode ocorrer que nem todo calor seja aproveitado, uma parte se perde. Por exemplo, liga-se a lareira para esquentar o morador, mas se esquenta a casa toda, o que proporciona conforto, e também se esquenta o ar lá fora, com o calor que vai saindo pela chaminé. Esse calor desperdiçado, não é aproveitado para aquecer a casa e nem seus moradores. Todavia, tal desperdício, uma perda pode-se dizer, não significa que o calor ou o combustível sumiram: apenas houve uma troca ou uma transformação que não serviu ao objetivo original. A energia total envolvida será sempre a mesma, o que varia é a quantidade dessa energia efetivamente destinada ao seu propósito primeiro, por exemplo aquecer uma casa, ou mover um trem. Depois de completamente queimado, um copo de álcool terá sido transformado em aquecimento, movimento, resíduos químicos da queima, em alguma combinação destes. Se for possível rastrear todos os aspectos, a soma total dos produtos finais, em termos de energia, será sempre a mesma.
Existe ainda um outro tipo de energia de transformação, que é a de natureza nuclear. Trata-se da energia inerente à massa propriamente dita. Massa é a medida da quantidade de matéria; a energia inerente à massa está associada às forças atômicas disponíveis entre os constituintes mais íntimos da matéria, suas partículas mais elementares, e difere das forças elétricas e gravitacionais. A quantidade de energia inerente à massa foi equacionada na famosa frase matemática E=mc2, sendo uma igualdade entre massa e energia, na enorme proporção indicada pelo valor quadrado da velocidade da luz. Mais uma vez, como está na equação, trata-se de uma propriedade direta da matéria, e de uma relação de forças.12
É por meio desta equação que se pode calcular a quantidade de energia (isto é, de trabalho, de transformação) disponível na reação nuclear de fissão e de fusão, conhecidas das bombas atômicas e bombas de hidrogênio respectivamente. Na reação de fissão, um átomo de U235 (um isótopo de urânio), ao ter o núcleo bombardeado por nêutrons, fica instável e no processo de estabilização ele se divide em dois e libera 3 nêutrons. Cada um desses nêutrons provoca a instabilidade em outros 3 átomos de U235, e assim por diante numa reação em cadeia, que libera energia na proporção indicada pela equação E=mc2. Essa energia é manifestada na forma cinética, na velocidade das partículas de matéria aceleradas, energia eletromagnética, e calor, numa explosão que pode ser destruidora13.
Existe a possibilidade de controlar a reação em cadeia, da fissão dos núcleos de urânio, pelo uso de barras de materiais absorvedores de nêutrons, como se faz no interior do núcleo de reatores atômicos. Neste caso, as reações em cadeia são controladas, e o calor gerado pelos reatores nucleares pode ser usado para aquecer caldeiras, gerando vapor em altas pressões que por sua vez acionam turbinas de geradores de eletricidade. Este é basicamente o funcionamento de uma usina eletro nuclear.
Uma outra forma de energia inerente à massa aparece em reações de fusão nuclear, como a que ocorre nas bombas de hidrogênio. Neste caso, dois átomos de H (hidrogênio) colidindo em altíssima velocidade, dão origem a um átomo de He (hélio), sendo a energia resultante calculada como acima, pela fórmula E=mc2. A energia necessária para provocar a fusão inicial é tão grande, que a detonação (o estopim, ou início da reação) de uma bomba de hidrogênio, é feita com a deflagração de uma bomba de fissão de urânio. Porém a energia liberada é muitas vezes maior que a empregada na sua detonação. Não há como conduzir as reações de fusão de forma progressiva ou controlada, como no caso da reação de fissão, de forma que não existem (ainda) reatores movidos por processos de fusão nuclear.
Na natureza, observa-se no sol os processos de fusão que ocorrem espontaneamente na sua superfície e núcleo, transformando constantemente hidrogênio em hélio, com a consequente geração da formidável quantidade de luz, calor e emanação de outras partículas, de forma continuada. A temperatura na superfície solar é da ordem de um a dez bilhões de graus Célsius, o que é suficiente para que essa reação de fusão não cesse.14
Em todos exemplos citados acima, sempre que se fala em energia, se está falando em matéria e suas diferentes transformações de estado. Na verdade, é então a partir do estudo da matéria que se desenvolve o conceito de energia, usando-o para entender melhor o mundo material em todas suas manifestações e transformações15.
A Psicologia Analítica, ao lançar mão de um ponto de vista energético, obtém a vantagem de uma visão mais abrangente dos acontecimentos psíquicos. Ao olhar o funcionamento da psique como um conjunto de forças que atuam num jogo de equilíbrio e desequilíbrio constantes, fica adequado adotar os mesmos princípios para energia, que se adotou na física, e herdar algumas de suas propriedades. Isso pode ficar mais claro ao examinar a questão dos complexos e retomar as ideias referidas acima nas analogias com a física. A partir de suas experiências com associações de palavras, JUNG estabelece o conceito de complexo como um agrupamento de elementos psíquicos em torno de conteúdos emocionais, composto de um elemento nuclear e de uma quantidade de associações consteladas secundariamente, e dotado de grande intensidade afetiva. O elemento nuclear em torno do qual se constela a associação, se distingue pela tônica afetiva, que do ponto de vista energético é uma quantidade de valor (JUNG, 2010, OC VIII/1, §18-19):
O elemento nuclear tem uma força consteladora correspondente ao valor energético. A partir dele ocorre uma constelação específica dos conteúdos psíquicos, o que cria o complexo […] de que meios dispomos para avaliar o valor energético da força consteladora que enriquece um complexo com associações? Podemos avaliar essa quantidade energética […] pela frequência e intensidade relativas dos denominados sinais de perturbação ou de complexo (JUNG, 2010, OC VIII/1, §19-22).
Tais sinais de perturbação16 aparecem de múltiplas maneiras, como nos lapsos da linguagem escrita ou falada, lapsos de memória (brancos), perda do fio de pensamento, fascinações. No caso do experimento de associação de palavras, a medição do tempo de reação da pessoa pode indicar uma perturbação, e de maneira objetiva, pois os tempos de resposta são mensuráveis e reprisáveis. JUNG chama a atenção para certos assuntos que são trazidos ao analista, mas que o cliente termina por evitar (idem, §22), e as situações de condutas sintomáticas das neuroses (idem, §62). Em todos esses casos, de um ponto de vista estrutural, as condições para tais manifestações estão presentes, e a manifestação ocorre no exato instante da aplicação da força (estímulo) que revela o complexo.
Nas analogias anteriores, por exemplo no caso da batedeira, ao ser plugada na tomada há uma força disponível, e todo um aparato disponível para fazer girar as pás. Ao ligar a batedeira, todo aparato funciona normalmente para aplicar a força nas pás e mover a massa. Havendo um mal contato na tomada (por exemplo), parte da força fica na tomada, em geral na forma de calor, e logo vai provocar um odor no ambiente, bem diferente do aroma esperado dos ingredientes de bolo. Isso dá um indício de que parte da energia foge do seu destino. Esse destino é ditado pela natureza do sistema como um todo, digamos, desse complexo eletromecânico. A intenção do cozinheiro é uma, mas seu olfato vai indicar que outros “trabalhos” estão sendo realizados (aquecimento da tomada) e se houver presteza na reação, pode-se evitar um incêndio. A energia elétrica não é boa nem ruim. Ela vai produzir trabalho e fazer as transformações conforme as “leis naturais”, quer seja no bolo ou no incêndio.
Igualmente se pode verificar que muito da nossa energia psíquica disponível, é dispensada em fenômenos diversos daqueles que nossa intenção original supõe, por exemplo, em bloqueios ou resistências à ação ou pensamento intencionados. Quando um complexo autônomo entra em ação e “toma posse” da pessoa, pode ser surpreendente observar os desvios que acontecem, nas ações, linhas de pensamento, afetos, etc. A energia disponível, como no exemplo do incêndio no parágrafo anterior, não é boa nem ruim. Será direcionada para onde os complexos conduzirem, segundo a própria natureza psíquica. E vai produzir seu trabalho e transformações, segundo essas leis naturais, dentro do equilíbrio de forças que atuam e se compensam.
Na associação de palavras, os pontos nucleares ou secundários de um complexo que serão ativados por determinadas palavras, devido ao teor afetivo carregado por essas, são como um concentrador da energia: a força é aplicada de forma não intencional ou aguardada, em um ponto não esperado caso não houvesse o complexo. Por isso se pode dizer que o complexo foi ativado. Ativação é a “aplicação da energia nos fenômenos dinâmicos específicos da alma, tais como instintos, desejos, vontade, afeto, atenção”, (JUNG, 2010, OC VIII, §26). Dentro de um processo natural, a energia se concentra onde estão as resistências. Se estas estabelecem um desvio em relação ao esperado, quer dizer, distante da intenção original ou esperada, pode-se supor a ativação de um complexo, e buscar sua origem na própria análise semântica das palavras em questão. Na pessoa, esse desvio pode denotar uma intenção de bloquear (ou ao contrário, mostrar) algum fato ou pensamento.
Ao abordar a psique a partir de um ponto de vista da energia envolvida, JUNG explora as vantagens que ele então vê em adotar tal perspectiva, como por exemplo o ponto de vista da finalidade, contra o da causalidade:
A concepção mecanicista é meramente causal, e compreende o fenômeno como sendo o efeito resultante de uma causa, no sentido de que as substâncias imutáveis alteram as relações de umas para com as outras segundo determinadas leis fixas. A consideração energética é essencialmente de caráter finalista, e entende os fenômenos, partindo do efeito para a causa, no sentido de que na raiz das mutações ocorridas nos fenômenos há uma energia que se mantém constante, produzindo, entropicamente, um estado de equilíbrio geral no seio dessas mutações. O desenrolar do processo energético possui a direção (um objetivo) definida, obedecendo invariavelmente (irreversivelmente) à diferença de potencial. Suas bases não são, por conseguinte, as substâncias como tais, mas suas relações, ao passo que o funcionamento do conceito mecanicista é a substância que se move no espaço. (JUNG, 2010, OC VIII/1, §2-3)
Neste breve trecho estão contidas várias afirmações diferentes. Logo de início o termo “meramente” empregado por JUNG, pode ser confundido como algo pejorativo, o que na verdade não é; é limitador, e por isso foi completado, pelos físicos, com os conceitos de energia e o modo de pensar que esse conceito conduz. Os dois modos de pensar são complementares, e igualmente válidos, como JUNG volta a afirmar várias vezes, por exemplo em:
Esses dois pontos de vista são imprescindíveis para a compreensão do fenômeno físico e por isso gozam do reconhecimento geral” (idem, §4), ou mesmo em “A finalidade e a causalidade são duas formas possíveis e antonômicas de entender os fatos. São ‘interpretantes’ progressivos e regressivos (idem, §5 – nota 6).
É preciso enfatizar que o modo de pensar causal nunca saiu de moda, nem mesmo na física moderna. Os princípios da Física quanto à mecânica do movimento da matéria no espaço são tão corretos quanto eficazes, conforme foram postulados por Newton, desde que se possa manter as hipóteses de universalidade do tempo e espaço. E essa universalidade é de tal forma concreta e real, que abarca as dimensões das distâncias planetárias de todo nosso sistema solar. Considerações relativísticas são usadas apenas para pequenas correções de órbita de certos corpos em nosso sistema solar, ou correções nos cálculos do GPS para obter precisão de poucos metros na localização na superfície da terra. Por outro lado, ao lançar os objetos que pousaram na lua, a partir da década de 1960, todos cálculos foram baseados nessa tradicional mecânica e modo causal de ver. Todos cálculos de trajetória, desde o lançamento até o retorno de objetos e pessoas, foram feitos sem uso da relatividade, já disponível e parcialmente comprovada de então, muito menos de princípios de mecânica quântica disponíveis na época.
Ao bater na tecla de um caráter finalista inerente ao ponto de vista energético, Jung parece procurar um embasamento filosófico. Eventualmente isso fosse útil e necessário, à época, para certas de suas ideias, como o caráter finalista inerente no princípio da individuação, ou talvez para o conceito de sincronicidade que obviamente trai a causalidade pura. Parece que para Jung, ao abrir espaço ao modo energético de ver, ao modo finalista que a análise energética pode facilitar, encontraria respaldo para suas ideias, dentro de um escopo científico. Com certeza, um modo de ver finalista logo levanta, em alguns espíritos cientificistas, a bandeira contra o misticismo, como se o modo de ver finalista levasse inexoravelmente a admitir a existência de um “projeto inteligente da natureza”.
Essa reação automática de defesa contra o misticismo, parece que ganha impulso dentro da Biologia, a partir de Darwin e a noção de uma evolução estritamente baseada nos acasos de variação genética e adaptação. Mas é justamente da bióloga Lynn Margulis que aparece uma posição contrária, vendo um caráter finalista na evolução, a partir das “minúsculas vontades de cada indivíduo” dentro da espécie. Interessante notar que essa escritora defende esse aspecto de caráter finalista como característica de definição da vida em si. Nesse aspecto, que poderia ser tema de toda uma outra monografia voltada quem sabe ao arquétipo como contraparte do instinto (biológico portanto), a autora ecoa algumas ideias de Jung, sem citá-lo, e como este, também executa todo esforço de permanecer dentro do que possa ser considerado científico. (MARGULIS, 2002, p238).
Ao aprofundar em temas e aspectos da alma, que na sua época eram considerados tabus sem importância ou assuntos alheios à ciência, JUNG enfrentou resistências, muitas vezes referidas por ele como mal-entendidos (tal como em JUNG, 2010, OC vol, VIII, §1) ou sendo referido como místico. Sempre foi sua preocupação, todavia, esclarecer a abordagem que era assumida, entre outros afirmando: “Estudo a religião como um aspecto psicológico e a abordo empiricamente, meu interesse é científico […] e evito as considerações metafísicas” (JUNG, 2012, vol. XI §2). Tal preocupação é percebida desde as palestras na fraternidade Zofíngia proferidas a partir de 1896, onde declara seu interesse no tema da produção científica, e na crítica ao método cientificista da época. Penna (2013) ressalta esses aspectos:
Nota-se, no desenvolvimento de sua obra [de Jung], uma constante atenção à consistência epistemológica e à coerência metodológica de sua proposta teórica. […] Jung sempre demonstrou desejo e preocupação em assegurar estatuto científico ao seu trabalho, ainda que criticasse o modelo científico de seu tempo (PENNA, 2013, pag. 17)
Como se vê, as relações que Jung faz entre as disciplinas da Física e da Psicologia, vão mais na direção e busca de uma abordagem científica, da robustez de um método que tenha aceitação e abarque suas ideias de propósito (teleologia; finalidade), mais do que uma relação direta da energia em si que possa coincidir com a Física. Muito pelo contrário, ao longo do desenvolvimento do tema no volume VIII/1, JUNG encaminha a questão a partir de uma separação entre forças físicas e psíquicas, e portanto da relação psicofísica da energia, pois:
[…] infelizmente não temos meios de provar cientificamente a existência de uma relação de equivalência entre a energia física e a psíquica, só nos resta desistir do modo de observação energética, ou então postular uma energia psíquica especial, o que é uma hipótese operacional perfeitamente viável. A psicologia tem o direito, tanto quanto a física, de formar seus próprios conceitos, contanto que o ponto de vista energético tenha validade em si […] Em nossa opinião, porém, um modo de observação energético dos fenômenos psíquicos é válido. E isso por que é impossível negar a existência justamente de relações quantitativas no domínio psíquico, as quais nos dão possibilidades de informação que a mera observação qualitativa não dá. (JUNG, 2010, OC VIII/1, §28)
Esta colocação vem completar a tomada de posição de romper com um ponto de vista psicofísico. Ao afirmar que “a relação psicofísica é um problema à parte, a ser resolvido eventualmente no futuro” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §9), abre-se caminho para uma outra diferenciação das áreas de saber, na contestação de uma linha de pensamento que atribui o acontecer psíquico como resultado direto do (causado pelo) funcionamento do cérebro em si. Com isso JUNG contesta que os diferentes aspect da psique sejam isentos de influência um no outro, o que do contrário daria força a interpretação da psique como um epifenômeno do cérebro. Mais uma vez JUNG não descarta essa maneira de olhar, mas sugere que “seria melhor que uma psicologia que considera o acontecer psíquico como um epifenômeno se denominasse fisiologia cerebral […] uma psicofisiologia” (idem, §10).
Além de abrir mão da relação psicofísica, Jung delimita uma diferenciação, desta para com a energia biológica, embora reconheça que tal delimitação “nos oferece certas dificuldades porque carecemos de qualquer possibilidade de separar pura e simplesmente o processo psíquico do biológico” (JUNG, 2010, OC VIII/1 §30). Todavia, é igualmente óbvio que não se pode separar os processos biológicos dos processos físicos! Todos esses processos estão de alguma forma entrelaçados, o tempo todo e de maneira inextricável, não importa o quão compartimentalizado seja o modo ocidental de ver as coisas, inclusive o de fazer ciência. É a ciência que distingue: psique, biologia, física. A natureza não distingue, e uma ciência da natureza não deveria perder isso de vista nunca.
Isso não impede de formalizar um modelo energético, postulando uma energia psíquica conforme os termos de Jung acima, e usar os conceitos próprios à energia como forma de entender as relações de forças e transformação, próprias de cada disciplina e de forma independente em cada disciplina.
Acerca dessa interdependência, da biologia e da vida em si, JUNG continua:
[…] é melhor compreender o processo psíquico simplesmente como um processo de vida [psíquica]. Desta forma estendemos o conceito restrito de uma energia psíquica para o conceito mais amplo de uma energia de vida, a qual engloba a chamada energia psíquica como um componente específico. Com isso obtemos a vantagem de poder estender as relações quantitativas, além do âmbito restrito do psíquico para as funções biológicas. (JUNG, 2010, OC VIII/1, §31).
É importante notar que as relações de entrelaçamento, de interdependência entre as áreas, não estão sendo colocadas em questão, ou descartadas. Ao definir conceitos separados, próprios para abordar o funcionamento de processos específicos, o que fica apropriado em cada área do conhecimento é o conceito de energia nesse processo específico, qual seja no âmbito físico, biológico e psíquico. Essa separação, assim como JUNG fez acima evitando as dificuldades de uma relação psicofísica, permitem liberdade de atuação entre as áreas. Não implicam em achar que as relações entre corpo (matéria, biologia), vida e psique não existam, mas permitem ignorar um “abismo ainda não preenchido entre o processo físico e o processo de vida [biológica, psíquica]” (idem acima).
Pode-se voltar um tanto no tempo, e notar que tais preocupações com o método, visam diferenciar pontos de vista e delimitar o campo de trabalho, mais do que combater as ideias dos outros, assim como defender-se das acusações de místico. O volume VIII/1 – Energia Psíquica, vem esclarecer o que seriam os “mal-entendidos”, suscitados desde a publicação de Transformações e Símbolos da Libido. Contemporâneo ao período da primeira publicação, em 1912, encontra-se o ciclo de palestras na Universidade de Fordham, publicadas no Jahrbuch nesse mesmo ano sob o título Tentativa de apresentação da Teoria Psicanalítica. Acompanhado de um prefácio onde JUNG cita William James, fica claro que Jung prefere permanecer fiel à experiência, como um empírico ele se define, em lugar da teoria. É uma opção por preservar os fatos em lugar das teorias; o contrário seria uma postura dogmática que Jung não consegue aceitar, como aliás desde os primórdios da vida acadêmica. Jung toma para si as palavras de William James, que afirma que as teorias, como explicação, não são uma solução, e sim meios de trabalho com os quais se pode modelar a realidade. “As teorias tornam-se, portanto, instrumentos, e não respostas a enigmas em que possamos repousar” (JUNG, 2011d, OC IV, prefácio à 1a edição, §202-203; em citação a JAMES, W. Pragmatism, 1907, p. 53).
O que vem a ser a energia psíquica, enfim, na abordagem da Psicologia Analítica? No texto intitulado Tentativa de apresentação da teoria psicanalítica acima mencionado, JUNG parte do conceito de libido de Freud e procura uma redefinição:
Até agora falamos da libido como instinto de propagação ou instinto de conservação da espécie e permanecemos dentro dos limites de concepção que opõe a libido à fome, da mesma maneira como se costuma opor o instinto de conservação da espécie ao de autoconservação. É obvio que na natureza não existe esta separação artificial. Nela só encontramos um instinto vital contínuo, uma vontade de existir que quer assegurar a reprodução de toda a espécie mediante a conservação do indivíduo. Esta concepção coincide com o conceito de vontade de Schopenhauer, porque o movimento que vemos de fora só o podemos captar interiormente como querer. … a libido, destinada originalmente à produção de óvulos e sêmen [atividades biológicas; função sexual], apresenta-se também, agora, solidamente organizada na função de construção do ninho e não admite outro emprego, então vemo-nos obrigados a incluir também qualquer desejo em geral, neste conceito. Já não temos o direito de distinguir em princípio entre o querer do instinto de construção do ninho e o querer comer (JUNG, 2011d, OC vol IV, §280 – grifos meus).
Contudo, energia psíquica não é o desejo em si (ou vontade, querer, conforme grifado, que são as forças) mas o quantum investido neste desejo. As forças se desencadeiam umas nas outras: força como desejo de acasalar, querer construir o ninho, vontade de comer; estas seriam descrições formais do funcionamento. A visão geral, como o propósito da manutenção da espécie, é apreciado “por uma energia concebida para ser homogênea” (JUNG, 2011d, OC IV, §281). Isto é, em lugar de um encadeamento de forças, cada uma delas específica, adota-se o ponto de vista energético, como um fio da meada que dá significado de conjunto. Porém esse significado não é existente apenas na concepção do “cientista” que o define, mas inerente ao processo como um todo. É um significado que permite supor o caráter finalista, “instinto vital contínuo, uma vontade de existir” (idem, §280) caro para a concepção de Jung, que procura alinhamento com a tendência da ciência, onde “este ponto de vista antiquado foi substituído pela lei da conservação da energia” (idem, §281) entre as diferentes etapas. O ponto de vista energético dá continuidade ao processo, permite a visão do todo de forma privilegiada, e de certa forma testada na ciência física, enquanto método. Com isso não se abre mão dos aspectos particulares, tampouco da causalidade, todavia é apenas de um ponto de vista mais geral que se pode adquirir uma ideia tal qual a de finalidade, propósito, teleologia.
O desejo, vontade e querer, são manifestação das forças psíquicas em suas diferentes qualidades: fome, instinto de procriação, iniciativa da construção do ninho. Tais forças se caracterizam, entre outras coisas, pelas suas intensidades, as quais são carreadas dentro do conceito de energia, pelo princípio de conservação da energia. É na tendência usual e errada de pensar em energia com a concretude de uma coisa em si, que aparecem as críticas à escola “psicanalítica de operar com um conceito místico” (idem, §282). Na sequência desta afirmação, como para ilustrá-la com uma analogia da Física, Jung afirma que, “A rigor, não são as forças físicas que se transmutam umas nas outras, mas é a energia que muda sua forma de manifestação” (idem). O uso do termo “forma” aqui parece contraditório à evitação que se busca com respeito a identificação da energia com algo concreto. Mas em seguida se elimina qualquer dúvida. “As forças são de natureza fenomenológica” (isto é, ligadas ao fato conforme percebido). “O que está na base de suas relações de equivalência é o conceito hipotético de energia […] Estamos longe tanto de acreditar em uma força vital específica quanto de qualquer outra metafísica”. (idem).
É possível afirmar que a tendência ao pensamento animista está tão arraigado em cada um, faz parte inerente do funcionamento mesmo até do raciocínio, que se adotam expressões com insinuações animistas, sem que isso passe percebido. Por exemplo: todos podem entender a afirmação “as plantas procuram a luz”. Ou esta alternativamente: “o crescimento das plantas se dá preferencialmente em direção à luz, como resposta ao estímulo luminoso, promovendo um movimento de fototropismo em seu desenvolvimento”. Ambas afirmações são equivalentes de um ponto de vista prático, e a segunda afirmação tem a característica extremamente atraente de usar termos técnicos, o que lhe confere um ar de autoridade. A primeira afirmação está errada apenas dentro de um rigorismo científico que não aceita que se atribua um “querer” às plantas, o que é correto e cientificamente saudável.
Nesse sentido, e dentro de uma eventual, e provável, tendência ao pensamento animista, é que alguns podem, de boa-fé mas erradamente, atribuir ao conceito de energia psíquica o status de algo vivo por si. Da mesma maneira, a “crítica justificada que acusa a escola psicanalítica de operar com um conceito místico de libido” (JUNG, 2011d, OC IV §291), não poderia fundamentar tal acusação no teor da obra em si, mas em uma leitura de má-fé e voltada ao propósito mesmo da crítica. Veja por exemplo na seguinte correção que Jung se faz, ao desenvolver a interpretação do (então) novo conceito de libido na sexualidade infantil.
A migração da libido ocorre durante a fase pré sexual que se caracteriza precisamente pelo fato de que a libido abandona gradualmente o caráter de instinto exclusivamente de nutrição e assume, …o caráter de instinto sexual. Peço ao leitor que não interprete mal o modo figurativo de me expressar.
[nota de rodapé] Evidentemente não é a libido como energia que se liberta aos poucos da função de nutrição, mas é a libido como função que está ligada às lentas mudanças do crescimento orgânico (JUNG, 2011d, OC IV, §291 e nota 20).
Tais armadilhas nos usos do termo que designe a energia, podem talvez ser creditados ao caráter simbólico inerente à ideia de energia. Fala-se energia num sentido estrito dentro do conceito científico, mas logo pensa-se energia dentro de uma perspectiva animista e, ou, mística. Se for possível aceitar essa realidade simbólica do conceito, digamos histórico, de energia, então não resta outra coisa senão render-se às dificuldades inerentes ao tema como uma realidade humana, tão humana quanto o símbolo em si. A intimidade entre o símbolo e o conceito de energia são deixados bem claros por Jung: “A máquina psicológica, que transforma energia, é o símbolo” (JUNG, 2010 OC VIII/1, §88). Não o símbolo como o da semiótica, “refiro-me a um símbolo verdadeiro e não a um sinal” (idem). A intimidade que foi referida logo acima é justificável pela sua antiguidade, presente durante a formação do que é humano: “O primeiro produto que o homem primitivo conquista através da formação análoga da energia instintiva é a magia […] A determinação do espírito pelo objeto de efeito mágico também pode levar o homem a fazer descobertas em relação ao objeto” (idem, §89- 90).
Ao desenvolver o conceito de energia, será possível entrelaçar mais adequadamente os fatos da psique que transitam entre as camadas mais internas e as mais perceptíveis externamente. Dar valor de realidade ao pensamento metafísico, é admitir a possibilidade de existência concreta ao processo e não necessariamente confere concretude ao símbolo, nem a energia, nem ao mito em si. “O símbolo, observado sob o ponto de vista do realismo, não é uma verdade concreta, mas psicologicamente ele é verdadeiro, pois foi e continua sendo a ponte para as maiores conquistas da humanidade” (JUNG, 2011i, OC V, §343).
Uma descrição da função do símbolo como papel de transformador de energia promove um encontro especial entre história passada, mitologia e desenvolvimento humano (cultura), entre o que é místico e o que é científico. Esmiuçar o papel do símbolo, e desenvolver o conceito de energia para a produção do pensamento, denota a intenção de Jung de mostrar que os diferentes tipos de pensamento podem ter a mesma origem, tanto na formação da ideia quanto na sua finalidade. Nesse sentido é que
Os arquétipos são elementos estruturais numinosos da psique e possuem certa autonomia e energia específica, graças à qual podem atrair os conteúdos do consciente a eles adequados. Os símbolos funcionam como transformadores, conduzindo a libido de uma forma “inferior” para uma forma superior. Esta função é tão importante que a intuição lhe confere os valores mais altos. O símbolo age de modo sugestivo, convincente, e ao mesmo tempo exprime o conteúdo da convicção. Ele age de modo convincente graças ao númen, que é a energia específica própria do arquétipo. A vivência do último não é só impressionante, mas de fato “comovente”. Ela produz fé naturalmente (JUNG, 2011i, OC V, §344).
Portanto é o símbolo, num papel de chave de acesso ao arquétipo, que coloca a consciência à mercê do arquétipo, com toda a intensidade afetiva e qualidade deste, numa vivência impressionante e comovente, provendo sentimento de intensa convicção, isto é, fé. A percepção de “uma grande energia” não poderia ser expressa de outra forma que fosse melhor que essa, o númen é parte da qualidade do arquétipo.
A citação anterior vem da versão que consta nas Obras Completas (ou Coletadas) revisada a partir do original de 40 anos antes. No volume em inglês, editado em 1916, Jung ainda sem ter desenvolvido formalmente o conceito do arquétipo conforme está na citação, já guarda o mesmo papel para o símbolo como, de condutor da libido para a produção da fé, e livrando o homem do peso avassalador dos “monstros do universo”: “O símbolo, considerado a partir do ponto de vista de uma verdade real, é, de fato, enganoso, mas é uma verdade psicológica, pois foi e é a ponte para todas as maiores conquistas da humanidade”17 (JUNG, 1992, §353), igualmente como está na obra revisada (JUNG, 2011i, OC V §343). O papel da energia não muda na edição revisada, embora uma diferença seja observada em respeito ao que ocorre quando a fé simplesmente não é mais possível.
No primeiro escrito, a fé é tratada como algo inferior e em oposição ao conhecimento. Afirma ele que “O perigo infantil e moral de permanecer no credo do símbolo, ocorre por dirigirmos a libido para uma realidade imaginária. A simples negação do símbolo não muda nada, pois a disposição mental permanece [infantil]” (JUNG, 1991, §356). Neste enfoque, mesmo necessária para o desenvolvimento de um espírito fraternal indispensável para a própria existência humana, a possibilidade de sacrificar-se que nos diferenciou dessa maneira do “rebanho”. Jung completa esse pensamento dizendo acreditar que “a crença deveria ser substituída pelo conhecimento; assim poderíamos manter a beleza do símbolo, e permanecer livres dos depressivos resultados da submissão à crença. Esta seria a cura psicanalítica para [a questão da] fé e descrença” (idem). Este trecho não deixa dúvidas quanto ao papel do símbolo como transformador das disposições primitivas na produção da cultura.
Ao revisar estes escritos, o julgamento de Jung a respeito do caráter infantil não se altera, mas a moeda de troca da crença pelo conhecimento, é substituída pela afirmação de que “A verdade psicológica não exclui uma verdade metafísica” (JUNG, 2011i, OC V, §344), com o que a discussão teológica fica devidamente evitada, dando ênfase ao caráter científico, completando a afirmação anterior: “[…] a psicologia como ciência deve abster-se de quaisquer afirmações metafísicas” (idem). Permanece, porém, o sentido e a orientação quanto à ausência, ou impossibilidade da fé. Jung adverte para o perigo do esvaziamento da fé devido ao afastamento das tradições, quando esta fé se desvincula da vivência, permanece simples hábito e se torna estéril. Conclui ele que tal esterilidade “substitui o esforço de uma nova compreensão [conhecimento versus fé] ou até o impede. Esta é a situação hoje” (idem, §345).
De todo modo, quer se evite ou não o caráter metafísico ou a fé infantil em si, seria tarefa para nós psicoterapeutas a recuperação das ideias centrais e vitais necessárias ao sentido da vida, ao “ecompreender os símbolos para poder compreender seu paciente nesta procura compensatória inconsciente por uma tomada de posição que exprima a totalidade da alma humana” (idem, §346).
Como se vê, energia e símbolo, númen e o maravilhoso sentido da vida, dentro de uma experiência de alma que não pode ser outra senão a vivida subjetivamente, tudo isso não cabe numa definição de energia psíquica esvaziada pelo uso exclusivo dos termos da ciência física. A energia na física carece completamente do símbolo.
Ao abraçar uma posição fundada bem fortemente na experiência pessoal, subjetiva, e sem abrir mão do caráter de ciência, da psicologia do inconsciente como produção cientificamente viável, no incontornável mergulho no mistério, sem dúvidas se justificam tanto as críticas generalizadas, quanto a tendência de encarar energia e símbolo como fatos reais e animismo, ou a Psicologia Analítica como um todo, de misticismo. No fundo dessas duas posições aparentemente antagônicas, reside o mesmo impulso interior que produz a imagem mística e animista, diferindo o resultado apenas de uma postura de fé, na ciência ou no mistério.
A seguir, dois exemplos da prática clínica como psicoterapeuta, podem ser de ajuda para articular os princípios explorados acima.
No primeiro, mulher adulta, mãe de menina pré adolescente, separada há 5 anos, sofre pois “não consigo perdoar meu ex-marido”. Depois de várias sessões onde o assunto é sempre o ex-marido, relata o seguinte sonho de maneira desinteressada, sem acreditar na serventia de tal relato, além do que “o sonho é muito simples”. Eis o relato: “Eu estava num tubo transparente; à minha frente, acima e logo na saída do tubo, uma figura de mulher, linda, contra a luz; atrás de mim uma sombra que me impedia de prosseguir, de ir até a mulher”. Logo após o relato, a mulher foi tomada por um choro compulsivo que durou vários minutos. Nas associações, a mulher linda seria sua mãe; a sombra o ex marido; o tubo não representava nada. Luz e sombra seguiram, em princípio, associações com influência da orientação religiosa da mulher, cristã e espírita.
Embora não fosse possível na época fazer quaisquer ampliações, o fato do choro compulsivo ficou muito marcado, acabou por marcar este sonho com forte carga afetiva (mesmo sem uma tonalidade definida; no sonho a sensação era de angústia), e mudou a relação da mulher com seus próprios sonhos, que puderam recuperar um valor inerente, mesmo sem qualquer significado consciente mais apurado.
Depois de muitos meses, foi possível fazer uma desvinculação da mãe idealizada (linda e imersa em muita luz), e a partir daí estreitar os laços com a filha adolescente, e de forma inesperada, construir laços afetivos mais positivos com o pai, antes relegado a um papel coadjuvante nas suas relações. O ex marido apenas saiu de cena no setting terapêutico, deixou de ser um problema. As relações com a mãe também foram recuperadas em um nível real, mais satisfatório, distantes da simples idealização.
Neste sonho da mulher, pode ser possível ver a imagem que JUNG descreve, de uma “usina elétrica, inoportunamente construída em local demasiado elevado, [que] é desmontada e decomposta em seus componentes iniciais, e assim o curso d’água original é restabelecido”, numa demolição das “formações simbólicas insuficientes” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §93). O choro compulsivo acode à falta de possíveis associações na época de seu relato, e começa a remover as resistências mesmo antes de qualquer entendimento ser possível. Aos poucos, e ao longo do processo analítico, o valor da mãe extremamente dominante, e os papéis dessa mãe, puderam ser refeitos, tirando a mãe de um local muito elevado, extremamente luminoso e inalcançável, reconhecendo aspectos sombrios da mãe também tirana. Foi possível uma mudança de valor e reconhecimento aos aspectos sombrios de si mesma e das suas relações.
De fato, um tubo é o que conduz as águas numa hidrelétrica, que é referida muitas vezes por sua grande capacidade de produzir luz. As disparidades muito grandes, a extremada idealização, causando diferenças enormes, também produzia tensão muito grande e impossível de lidar. Nessa analogia, mesmo as lágrimas estão bem lançadas, o suave rolar da água onde a tensão muito grande de antes não permitia movimento, agora recupera o curso natural. Na hidrelétrica, o desnível de água na parte mais alta do tubo, é responsável pelo estabelecimento de uma “pressão (tensão) hidráulica” que fará a água mover as turbinas; porém o trabalho realizado (transformar o cair da água em energia elétrica) só acontece pelo rolar da água. Nessa analogia com uma hidrelétrica, Jung não se aparta de uma correta correlação entre os conceitos de energia na física! E o símbolo como anunciador da tarefa em andamento, ou daquela necessária, aparece na forma de sonho. Tal é o “declive insuficiente” que Jung cita nesse mesmo parágrafo (JUNG, 2010, OC VIII/1, §93).
Na segunda situação clínica, o seguinte sonho foi relatado por uma jovem. Acabara de ser mãe, estava muito envolvida com seu trabalho, nos aspectos competitivos de produção e das relações pessoais no emprego. Sofria muito com certas relações no trabalho, onde se via perseguida e prejudicada. Bem determinada, apresentava dinamismo e assertividade nas ideias e intenções, que contrastavam com a delicadeza de suas feições e de sua voz. Nas semanas finais do período de análise que se estendeu por apenas um ano, relatou o seguinte sonho (um fragmento apenas está transcrito): “Ia por um caminho no campo; num dado instante havia um ringue de luta, onde duas mulheres lésbicas trocavam socos; pude ver um jorro de sangue que espirrou e caiu sobre uma pedra ao lado do ringue”.
Ao amplificar os elementos desse sonho, onde inicialmente houve um questionamento, pela jovem, mesmo acerca da própria sexualidade, acabamos por encontrar significado na “pedra ao lado”. Tal pedra com sangue por cima, inicialmente desapercebida pela sonhadora, pode ser um símbolo religioso e de sacrifício. O altar de imolação do cordeiro?
No trabalho clínico com nossos pacientes deparamos a toda hora tais formações simbólicas, que visam a transmutação da libido. No início de uma terapia encontramos símbolos em vias de formação, contraproducentes na medida em que oferecem um declive insuficiente, impedindo que a libido se converta em um trabalho efetivo, mas que se descarregam inconscientemente, pela via habitual, através de fantasias arcaico sexuais; em consequência disso, o paciente está internamente dissociado ou neurótico. (JUNG, 2010, OC VIII/1, §93)
A luta entre duas mulheres lésbicas mostra a situação “dissociada ou neurotizante” (idem), quem sabe o uso inadequado da energia disponível ou “excedente” (idem §88ss), mas o sangue sobre a pedra (de altar?) é igualmente indicador de sacrifício, pode querer mostrar o caminho a seguir, ou mesmo quem sabe já em curso. Segundo Jean CHEVALIER, o altar é “catalisador do sagrado, […] é sobre o altar que se realiza o sacrifício, o que torna sagrado, … [que] sugere a espiritualização progressiva do universo” (CHEVALIER,1988, p. 40). A pedra guarda “estreita relação com a alma; [especialmente] a pedra bruta [não talhada nem polida] desce do céu; transmutada ela se ergue em sua direção” (idem, p. 696). A cena, inicialmente vista apenas no sentido sexual e arcaico, ganha outros contornos e pode mesmo apresentar sinais claros de um caminho de individuação.
Algumas discussões onde foi possível relacionar este sonho, no seu simbolismo, com outros aspectos do sofrimento na vida prática, acabaram por mudar os rumos da terapia, aliviando as tensões originais e trocando o foco das discussões. Em mensagem posterior ao término desse curto período de análise, no ano novo, a jovem envia mensagem de agradecimento a mim por uma premiação recebida no trabalho! Sempre é bom receber um elogio, mas não posso deixar de olhar simbolicamente as palavras usadas por ela: “gratidão, premiação, caminhar junto, ano novo” como símbolos de transformação, ou ao menos de promessa de transformação, acerca do trabalho psíquico dela mesma. Não obstante o elogiar pertença ao modo de ser, bem organizado, da corporação que ela pertence, não se pode deixar de ver o caráter de transformação, e daí basta olhar por perto para encontrar os símbolos.
“A separação entre corpo e alma é uma operação artificial, uma discriminação que se baseia menos na natureza das coisas do que na peculiaridade da razão que conhece” (JUNG, 2011j, OC VI, §979)
“O homem é corpo e espírito, e deveria ser tarefa da filosofia, mostrar que mente e corpo coexistem harmoniosamente, que haja uma reconciliação (paz) entre os dois” (“Lin Yutang, 1951, citado em GAFFNEY & SIM, 2009)
Tai Chi Chuan é uma arte marcial chinesa da linha interna. As duas primeiras sílabas são o nome do símbolo do Tai Chi (figura 3, p. 16), representando a polaridade que se alterna numa permanente transformação de uma propriedade no seu oposto. Cada polaridade na sua expressão máxima, traz a semente desse oposto em que se vai transformar; o símbolo do Tai Chi remete ao movimento de constante transformação de opostos. Há histórias que contam que a origem do símbolo Tai Chi, muito antiga, teria nascido da observação do encontro das águas de dois rios, e por isso esse símbolo também remete à água, ao rio, como representações da vida em si. O termo Chuan pode ser traduzido como “luta com os punhos”. Portanto é uma prática marcial alinhada com os preceitos do Tai Chi como filosofia. Isto faz com que o Tai Chi Chuan não seja arte marcial como as outras.
As partes em oposição no símbolo do Tai Chi são denominadas Yang e Yin, ou respectivamente, cheio e vazio, substancial e insubstancial, ativo e passivo, expansão e recolhimento, criação e controle. Tais oposições estão sempre presentes, coexistindo num processo de contínua transformação e alternância de opostos. O objetivo principal do Tai Chi Chuan é marcial, mas o método usado para atingir o objetivo é o de “cultivar o qi (pronuncia-se chi)”. O qi é a energia inerente ao corpo vivo, e ao seu movimento. O Tai Chi Chuan é uma prática integrativa, na qual o corpo é entendido como uma unidade, na qual cada mínima parte participa, a todo instante e em qualquer situação, dessa totalidade. A mente participa igualmente desse todo indissolúvel, fazendo com que a prática seja identificada igualmente como “meditação em movimento”, uma meditação que busca a plena atenção consciente, atenta ao próprio corpo, a postura atual e os possíveis desdobramentos em qualquer situação, em estado de permanente consciência das demais pessoas e da natureza circundante. Esta atitude e objetivos são constantemente buscados, e ao alcançá-los se atinge a “integração de céu e terra”: a unidade do ser.
Existem muitas lendas acerca da criação do Tai Chi Chuan como arte marcial. Muitas dão caráter histórico à figura lendária de Shan San Feng, que teria vivido há mais de dois mil anos no interior da China, existindo muitas histórias fantásticas acerca deste personagem.
Relatos bem documentados mostram que o general Chen Wangting, mestre nas tradições marciais e da medicina, criou um método a partir do vasto conhecimento adquirido pela experiência e pelos aprendizados nas excursões militares pela China. Outras escolas surgiram a partir desta, igualmente desenvolvidas dentro de clãs familiares, o que gerou diversas diferentes histórias sobre a origem desta arte marcial, cada família omitindo convenientemente o papel das demais. Aqui será referido ao que é disposto dentro da família Chen, que denomina este estilo, que é o mais antigo dessa prática.
O Tai Chi Chuan foi primeiramente codificado por Chen Wangting (1580-1660), numa localidade chamada Chen Jiagou no interior da China. Chen Wangting aplicou os princípios da medicina tradicional chinesa, das artes de lutas que já eram tradicionais na família Chen (wu shu), e práticas de respiração e movimento (qi gong) tradicionais na cultura chinesa.
Apesar de seus princípios e muitas aplicações serem tradições milenares, coube a Chen Wangting reagrupar, e codificar em um método coerente e acessível, um conjunto grande de práticas e conhecimentos que, sem ele, seriam de acesso muito difícil. Isto permitiu desenvolver e aprimorar os métodos dentro do clã ao longo do tempo. Desde então a arte tem sido desenvolvida e transmitida no seio da família, e paulatinamente para outras pessoas que por sua vez desenvolveram estilos próprios dentro de seus clãs. Hoje existem cinco estilos tradicionais, oficialmente reconhecidos dentro da China, cada um deles sendo difundido na própria China e posteriormente no resto do mundo. A família Yang foi o primeiro clã a deter maestria a partir dos ensinamentos aprendidos na família Chen. Porém foi dentro do clã Yang que apareceu a primeira iniciativa para divulgar a arte, criando inclusive aspectos de prática e didática específicos, apropriados justamente para uma disseminação mais ampla do Tai Chi Chuan. Com isso, até hoje o estilo Yang é o mais conhecido e praticado dentro e fora da China.
Os sistemas de arte marcial de linha externa enfatizam socos e chutes, saltos, etc., onde a marcialidade da arte fica bem evidente à primeira vista. Por outro lado, no Tai Chi Chuan o relaxamento é privilegiado, e o movimento é natural. No Tai Chi Chuan a pessoa busca cultivar sua energia interna (qi), pela repetição de movimentos harmônicos e naturais, coordenadamente com a respiração e atitude mental. Se diz também que o praticante deve buscar uma atitude global de tal forma que desenvolva a firmeza e tenacidade internamente, permanecendo sutil e suave por fora, coerentemente com uma prática de linha interna. Mover o qi a partir da mente não deve ser confundido com algum tipo de metafísica da vontade, ou pura mentalização. Antes, é o treinamento do relaxamento dentro da atenção (prontidão), ao mesmo tempo mental e corporal, eliminando as resistências que se oponham entre a intenção e a ação, sempre de forma a integrar o corpo com a mente (intenção).
Devido a essa interiorização, a marcialidade do Tai Chi não é tão aparente (na verdade é mais preservada na escola Chen, tendo sido propositalmente ocultada na escola Yang e demais estilos). Se bem que, por um lado, sejam necessários muitos anos de prática antes de se dedicar às aplicações marciais propriamente ditas, por outro lado o praticante obtém os benefícios para a saúde logo desde o início da atividade. Manter o espírito tranquilo (mente tranquila) e o corpo em movimento são as bases da manutenção e recuperação naturais da saúde, cultivados no Tai Chi Chuan. Ao contrário, o modo de vida contemporâneo conduz a um estado de mente inquieta e ao sedentarismo, ou ainda, aos estados de tensão física e mental, propositadamente ou não.
Na China, o Tai Chi Chuan é praticado por cerca de uma quinta parte da população, com objetivos principalmente na manutenção da saúde. Tais benefícios incluem melhor controle do equilíbrio (evitando quedas que se tornam comuns e problemáticas a partir da terceira idade), melhoras nos sistemas circulatório e nervoso, melhora na concentração, ansiedade e níveis de estresse, condicionamento físico geral com regularização do batimento cardíaco e respiração. Graças a todas suas peculiaridades e o aspecto meditativo, embora o Tai Chi Chuan não seja ligado a uma religião, pode ser um caminho de desenvolvimento espiritual para quem se dedica à sua prática.
No Brasil, o Tai Chi Chuan foi incluído no Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, dentro das Políticas Públicas de Saúde, reconhecido juntamente a outras práticas de origem chinesa como Liang Gong e Acupuntura, e práticas consideradas integrativas, de outras origens, como o Ioga.
Talvez um entendimento melhor do que venha a ser o Tai Chi Chuan, passe por um aprofundamento do significado de integração. Qualquer coisa que se pense em partes, de forma analítica, a respeito do Tai Chi Chuan, pode resultar em ideias erradas. Desse modo, é preciso sempre lembrar, que se trata de uma prática, uma atividade ao mesmo tempo mental e corporal, que é marcial, é saudável, é uma filosofia, é uma atitude, e mesmo que seja espiritual. Este último sentido pode ser extraído do significado último de “integrar céu e terra”, ou seja, atingir a unidade de ser. Todavia o ensino e prática do Tai Chi Chuan permanece desvinculado de qualquer prática religiosa propriamente dita, como Taoismo, Budismo, ou outra.
O termo “qi”, usualmente traduzido para “energia”, talvez precise de algum desenvolvimento para que se possa obter uma compreensão mais completa. Na medicina tradicional chinesa, os cinco grupos de órgãos internos são coordenados entre si por ciclos de ativação e controle do qi. Os meridianos do corpo, são ligações que conduzem o qi, e que por intervenção de agulhas, pressão dos dedos ou outros meios, podem alterar ou restabelecer a circulação dessa energia, e o equilíbrio funcional entre os órgãos. Todo entendimento acerca de circulação do qi na medicina deve ser baseado na interdependência funcional dos órgãos.
No Tai Chi Chuan, o qi refere-se ao movimento do corpo, e à força disponível ou requerida para movê-lo, sempre dentro de uma visão integrada de corpo e mente, um todo funcional. Desenvolver o qi, nos termos mencionados mais acima, tem a ver com a busca e aprimoramento de uma postura correta e do relaxamento necessários, incluindo atenção plena e relaxamento da mente, para que esta força e velocidade de movimentos estejam disponíveis. Isto usualmente envolve uma reeducação postural global, o que é conseguido a partir de treino constante, que se realiza pela repetição de posições físicas do corpo, posturas especificamente criadas para o desenvolvimento do qi, e das transições de uma postura para a outra. Agilidade e velocidade são privilegiadas em relação à força muscular, através da postura correta, da atitude mental e do relaxamento. O qi em cada postura está relacionado com a intenção da postura, onde a quietude e o movimento em si estão sempre interligados, assim como o que é cheio e vazio, e bem como as intenções marciais.
Na postura Lan Za Yi, tem-se o braço direito estendido e os dedos para cima, a mão esquerda na cintura, o peso na perna direita e mais leve na esquerda, quadris e ombros relaxados, assim como todo o corpo relaxado e alinhado, com a coluna vertical. Se alguém faz pressão na mão direita do praticante nessa postura, vai sentir uma resistência ao movimento, e de tal firmeza, que parece não fazer sentido com a posição descrita acima. Se prestar atenção na pressão sendo executada, é como se estivesse empurrando o chão, e de fato é possível ter tal percepção, apesar de a força ser aplicada na mão. A partir disso, se percebe então que o corpo está alinhado e inteiro. Neste alinhamento, existem círculos de força (qi, energia) formados adequadamente entre os braços, entre as pernas e quadril, entre a coluna e abdômen, etc.
Ao desferir um soco no Tai Chi, como na postura do punho oculto, o movimento parte de uma distribuição de peso no pé direito passando gradativamente ao esquerdo, ao mesmo tempo que o quadril faz um giro em forma de “S” mantendo o relaxamento apesar da força realizada nas pernas, o tronco acompanha com um giro. O movimento da mão em punho parte do peito e se dirige obliquamente para a direita enquanto o tronco gira de leve à esquerda e o corpo se desloca à frente, alinhado com a direção do pé esquerdo. Todo corpo está relaxado, incluindo o punho que desfere o soco, o qual forma um oco (vazio) no meio da palma.
Nos dois casos acima, a postura global é de relaxamento durante todo tempo, mas
dentro desse relaxamento, guarda-se uma adequação da posição de cada parte do corpo, e coordenação durante todo movimento, permanentemente alinhado com a atitude mental. Desta forma o treino busca sempre o caminho da menor resistência, cumprindo a regra mencionada acima, de usar a intenção (mente) em lugar da força: “a intenção move o qi, e o qi move o corpo”. Isto é que faz do Tai Chi uma prática de desenvolvimento do qi, quer dizer, da energia.
Ao falar acerca do qi, o que ouvimos muitas vezes são afirmações que atribuem um caráter animista para a energia, algo como um princípio vitalista, principalmente se falados por pessoas leigas na arte, e propensas a este tipo de pensamento. Outras pessoas céticas preferem entender o conceito com descrédito ou desdém, e mesmo acusar de pensamento metafísico. Estas pessoas são justamente aquelas que, não conseguem resistir ao pensamento mágico, animista, mas ao mesmo tempo não aceitam admiti-lo racionalmente (e com razão), e ainda, não se rendem aos fatos apreendidos pela observação. Neste caso, tais pessoas se encontram naquela situação descrita anteriormente, acerca das discussões sobre energia psíquica (item II.3, aplicação da energia nos pontos de resistência, a noção de perdas de energia). A única saída, é não aceitar qualquer outra ideia acerca de energia que se afaste da de um conceito, que exprime uma transformação. Ou seja, temos no Tai Chi Chuan, uma experiência onde os conceitos de energia podem ser usados indistintamente, desde sua aplicação física ou psicológica.
Desenvolver o relaxamento, dentro das posturas adequadas e da prontidão mental que produz as respostas necessárias ao movimento, é aprimorar a capacidade de transmitir energia, de propiciar uma conexão adequada entre as partes, que na verdade atuam como um todo, num sistema onde o qi caminha livremente. Caso não seja assim, por exemplo na situação da postura descrita acima, o “Lan Za Yi”, imagine-se que o quadril não esteja devidamente relaxado, o que aliás é bem comum. Nesse caso, do pondo de vista da energia, se diz que há um bloqueio do qi no quadril. De fato, ao ser empurrado na mão, como no exemplo mencionado, em lugar do qi “ir para” os pés e dali para o chão, o que acontece é que a pessoa se desequilibra podendo até cair. Quem empurra, não vai ter a impressão de empurrar o chão, e de fato não estará. Tecnicamente, o que está acontecendo é que as forças que encontram um ponto de bloqueio, agem no ponto de bloqueio, nesse caso o quadril. A força empurrando a partir da mão vai, eventualmente, mover o quadril, o que pode derrubar a pessoa. Por outro lado, se todas as articulações permanecem relaxadas (incluindo o quadril), e dentro de uma postura coordenada, as forças são transmitidas como se fossem aplicadas diretamente ao chão, pois todo caminho está transparente, de um ponto de vista da energia.
Ao examinar novamente o caso de “misturar a massa de bolo” visto acima (vide páginas 54-57), podemos recuperar a questão das “perdas” mencionadas. Entendendo tais perdas como resistências, percebe-se que, de um ponto de vista da energia, tendo em vista os fins almejados e os meios colocados a serviço desses fins, tudo que se perde ou desvia, se deve a resistências ou bloqueios, os quais desviam a energia para fora das intenções originais. Um ponto de resistência ou bloqueio vai servir de fulcro para as forças envolvidas, as forças acabam por serem exercidas no bloqueio ou resistência, a energia é dispendida em tal bloqueio, e o trabalho é aí realizado; a energia não chega plenamente ao local de aplicação intencionado.
Ao empurrar alguém, queremos deslocar ou derrubar essa pessoa. Normalmente ao ser empurrada, a pessoa resiste ao empurrão, e faz frente a força contrapondo outra força igual. Quem tiver mais força vai derrubar o outro, ou deslocá-lo. Diferentemente, um mestre na arte do Tai Chi consegue permanecer sem opor resistência, e por isso a força do empurrão vai para o chão (por exemplo). Esta capacidade de “não opor resistência” não é uma atitude neutra ou inerte, é ativa e adaptável a todo instante conforme a força do “empurrão” é aplicada. Quem olha uma tal cena, simplesmente não consegue perceber que a reação do mestre não é de passividade, e a cena pode parecer bizarra devido a esta dificuldade de se observar de fora. Longe de ser bizarra, a situação é, simplesmente, nem um pouco usual de ser observada, foge à percepção comum e à intuição geral.
Quem assistiu as demonstrações do Grande Mestre Wang Hai Jun em Curitiba, em dezembro de 2016, pôde testemunhar tal fato: um colega de prática de Tai Chi Chuan tentava a todo custo empurrar o mestre sem sucesso. A força aplicada era o máximo que esse colega conseguia fazer, um jovem professor de educação física, chegava a se inclinar na direção do mestre. Além de não se mover do lugar, essa demonstração incluiu a contraparte: o mestre derrubava o oponente ao chão, no instante e na direção que bem entendia (ninguém se machucou nessa demonstração). O que ocorre é que, ao receber o contato físico e sem opor resistências, o mestre tem a possibilidade de perceber a postura do outro, num nível de detalhe que permite estabelecer os pontos de rigidez (e portanto de fraqueza) do oponente. Isso permite atuar de forma eficaz para que o rapaz vá ao chão, e como a plateia que assiste, sem muita chance de perceber exatamente o que ocorre.
No caso dessa demonstração, as diferenças entre oponentes, quanto ao treinamento, a capacidade de percepção e de reação, são simplesmente brutais. Grande Mestre Wang Hai Jun é um dos principais mestres em Tai Chi Chuan da atualidade, e não haveria chance de competição entre os dois. Mesmo para toda assistência, muitos dos quais praticantes de Tai Chi, não seria possível perceber o que ocorria, todavia os princípios e fundamentos são conhecidos, e podem ser facilmente descritos como acima. São fundamentos que o praticante repete diariamente ao longo de uma vida, e cujo objetivo é o de buscar uma unidade mental e corporal, consigo e com o meio, de forma que possa participar do mundo de uma maneira mais una e harmoniosa.
Um sistema de exercícios, de nível médio para avançado, chamado Tui Shou (empurrar com as mãos), é usado, na didática do estilo Chen, para desenvolver a técnica de transição entre as posturas, e o emprego da força a partir do relaxamento. Nessa técnica praticada a dois, através do toque, de permanecer constantemente em contato físico com o outro, estando ambos em movimento, desenvolve-se a percepção da postura e do relaxamento geral do outro; ao tocar o outro em movimento, percebe-se onde está seu ponto de equilíbrio e de tensão, e a partir daí usa-se o movimento do outro e as mudanças de pontos de equilíbrio para empurrá-lo18.
Mestre Wang oferece muitas vezes a oportunidade de relatar episódios de sua vida, e sempre que o faz é com uma expressão e envolvimento que denotam sua entrega ao trabalho que desempenha. Uma passagem de particular interesse, relatada com brilho nos olhos e emoção na voz, é a descrição de como aconteceu sua “primeira experiência com o qi”. Ainda jovem adolescente de 16 anos, e vivendo na casa de seu professor, o Grande Mestre Chen Zheng Lei, depois de voltar da escola e cuidar da filha pequena do professor, deveria terminar o dia (já noite) com uma rotina de exercícios de Tai Chi. Estava com preguiça naquele dia (palavras dele), e ao se retirar para o local isolado onde gostava de treinar, decidiu que apenas deixaria o tempo passar, descansando. Logo se aborreceu e iniciou a prática de costume, não havia outra coisa a fazer mesmo. No início da rotina de movimentos, teve então a súbita e inesperada percepção que tudo nele estava conectado: mãos, pés, joelhos, quadril, cabeça, tronco. Ainda, o próprio chão, e toda sua atenção, tudo uma coisa só. Conta o Mestre que “naquele instante, percebi o que é a união de céu e terra”. Esta sequência da rotina (de nome Lao Jia Yi Lu – a primeira rotina da velha forma) que normalmente demoraria 15 minutos, ele a completou em duas horas. A sensação de inteireza, alcançada de forma inesperada, queria preservá-la, permanecer nela; tinha receio de, ao final do exercício, não conseguir obter novamente o mesmo feito.
Este termo usado, “primeira experiência com o qi”, refere-se então um certo grau de treino, onde a integração do ser é alcançada, o ser fracionado passa a ser uno. Isso pode ocorrer mais aos poucos conforme se avança na prática. Mas se pensarmos que sempre temos pontos de resistência aqui e ali, pode ocorrer de treinarmos e experimentarmos essa ausência de resistência de maneira parcial. Como uma longa corrente de ferro que tem sempre um elo ruim, sabemos consertar tal elo, mas nessa tarefa outro elo fica ruim. Do ponto de vista da energia, uma corrente de ferro com um elo ruim não funciona como corrente, como um todo. No exato instante que todos elos estejam bons, aí teremos uma corrente de verdade, que só é verdadeira quando inteira, apenas em unidade pode fazer funções de uma corrente. No caso do qi, isso explica em parte, como a experiência de unidade pode ocorrer dessa forma inesperada e numinosa.
As etapas seguintes do treinamento passam por alcançar tal experiência repetidamente, de forma controlada, e mais consciente.
O processo para esse objetivo é o mesmo de antes: repetir os fundamentos, que são o de relaxar, abrir espaços nas articulações, aprimorar as posturas, etc. É um trabalho de aprimoramento da energia! A persistência no método costuma ser a maior dificuldade do praticante em alcançar novos patamares dentro da prática. Resistência é uma palavra que se aplica bem, igualmente a essa dificuldade de persistir. Às vezes é preciso fé para prosseguir, quando se perde de vista os resultados da maneira que se imaginava serem possíveis. Imagine-se a tarefa de consertar elos de uma corrente, e a cada tentativa ver outro elo, antes trabalhado, agora rompido! É um desafio para a impaciência ocidental, imediatista. Cada pessoa tem suas limitações nesse aspecto, mas o exemplo de outros que já trilharam o caminho pode ser de grande valia. Tudo isso faz parte de um processo que pode ser grande, e que algumas vezes se confunde com o próprio processo de vida. Como um processo, a vida em si também pode ser vista de um ponto de vista energético, tanto a vida de um aprendiz que se tornará mestre de Tai Chi, como toda e qualquer outra vida. Talvez seja possível estabelecer muitos paralelos entre o método de cultivo do qi, e o processo de individuação, que às vezes é possível perceber dentro do caminhar de uma análise junguiana.
Numa ocasião, o Grande Mestre Wang ouviu uma pergunta direta acerca do qi, feita por um aluno ocidental. Não foi dentro de uma entrevista, ou no meio da aula, mas era uma questão que se guardava há tempos, não pela falta de conceito, e mais pela oportunidade de ouvir a resposta do Grande Mestre. A pergunta foi a seguinte: “O que é qi?”. A resposta veio de imediato, como sem pensar: “Qi é a própria vida. Quando o qi cessa, a vida acaba”.
Jung dá uma resposta parecida acerca da energia psíquica, como citado anteriorment “[…] é melhor compreender o processo psíquico simplesmente como um processo de vida. Desta forma estendemos o conceito restrito de uma energia psíquica para o conceito mais amplo de uma energia de vida” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §31).
Quando fica difícil entender e estudar, desenvolver conhecimento acerca de um fato, cria-se modelos para tanto. Um modelo nada mais é que uma simplificação imaginada a partir de algo real, mas que seria complexo demais para descrever. Por exemplo, ao estudar o mundo dos átomos (átomo quer dizer “indivisível”), foi proposto um modelo composto de um núcleo e uma nuvem de elétrons girando ao seu redor, o que é conhecido como “modelo de Rutherford”, também conhecido como modelo planetário do átomo, por ter sido inspirado na geometria e dinâmica dos sistemas planetários, como o sistema solar. Esse modelo procurava servir de base para explicação de fenômenos, mas não tinha a pretensão de dizer que o átomo era de fato uma cópia do sistema planetário, tanto nas órbitas quanto no formato esférico dos componentes, ou na natureza das forças que agem. Mas foi sem dúvida uma ótima tentativa de modelo, devido ao sucesso em descrever fenômenos, aprofundar teorias, e acomodar as incompatibilidades conforme novas informações foram acrescentadas pelas consecutivas observações e descobertas. Ou seja, o modelo nasceu e cresceu, para acomodar novas descobertas, sem perder o que já se havia conquistado teoricamente!
Um modelo, falado dessa forma, pode remeter aos modelos da moda de roupas. Nesse caso podem ser vivos ou não, e podem ser aderentes à realidade ou não. Realidade vai com um grifo pois no caso da moda de roupas, esse assunto gera muitas controvérsias. O assunto é roupa, moda; modelos hão de vestir e exibir, buscando demonstrar com eficiência a criação da roupa. Se forem modelos femininos, mulheres podem arguir que “modelos de passarelas não são reais”. Com certeza são pessoas, mas, como modelos, talvez sirvam mais aos propósitos do estilista do que para uma descrição das medidas de uma “média” representativa das mulheres. Ao que, de fato, servem as modelos da passarela? Objetivamente, servem às necessidades da criação do estilista, às necessidades do mundo fashion, à indústria da roupa, e por daí vai. Também servem para uma crítica de ordem social, sexista, que não cabe aqui, mas pode-se desviar dessa discussão indo para dentro do ateliê da costureira.
Quem visitou um ateliê de costura, já se deparou com bonecos, na forma de bustos de mulher. Muitos não tem cabeça, braços, pernas, mas são igualmente modelos. Sobre eles se vai vestir uma peça de roupa durante o processo de fazer, com tecidos, o que os estilistas idealizaram. Tais modelos são corretos? Serão na medida que cumpram com as necessidades de quem os usa, dentro do propósito para os quais foram feitos. Ninguém vai objetar acerca de um busto sem pernas e cabeça, porventura encontrado num ateliê de costura. Ou pode sim objetar, e dizer que tal modelo representa a mulher castrada de seu poder de pensar, expressar o que pensa, e mesmo de exercer a liberdade de ir. Isto seria muito correto se o modelo fosse usado pela sociologia, ou pelo movimento feminista, mas num ateliê de costura estará de bom tamanho, guardando praticidade e economia. O modelo é bom quando é eficaz aos propósitos que se propõe a ele.
No dia a dia todos usamos modelos, de maneira mais ou menos consciente. Pode-se dizer que o preconceito é uma forma de pensar por meio de modelo, ou de não pensar, no caso de processos menos conscientes. Existem histórias acerca dos jardins dos palácios reais franceses, que dão conta de brincadeiras de assustar levadas a cabo por meio de bonecos. Alguém com espírito Tríckster acentuado, teria localizado bonecos humanos escondidos nas moitas junto aos caminhos dos jardins, e animado tais bonecos com sistemas pneumáticos acionados por armadilhas no caminho. O passante distraído acionava a armadilha e o boneco se erguia por entre as moitas. Uma engenhosidade para assustar as pessoas desavisadas, uma diversão. Também é dito que tais bonecos contribuíram para disseminar a ideia, então nascente, de um modelo de homem-máquina: a partir daí muitos acreditam que os homens são como máquinas.
Pode-se com facilidade imaginar que a inspiração que levou alguém a criar um boneco pneumático, uma peça de mecânica, foi movido pelos mesmos mecanismos inconscientes que levaram o passante distraído e assustado a ter essa ideia: homens são como máquinas. Há uma similaridade nesses mecanismos de pensamento, embora o primeiro inventor de um tal boneco pudesse rir dessa hipótese, e argumentar: “hei, eu fiz esse boneco
– sei que não é homem – é apenas um monte de material que ajuntei lá na garagem (ou na oficina do ferreiro) e montei”. Mas daí o modelo já tem “vida” nas mentes das pessoas, e serve a outros propósitos adequados ou não.
Outras confusões desse tipo podem ocorrer, de fato ocorrem de maneira corriqueira. Na psicologia, sabe-se que o conceito, e a própria constituição do indivíduo estão muito ligadas às funções da memória. É pela memória que o indivíduo pode saber a todo instante quem ele(a) é, ganha uma noção de continuidade, etc. Pessoas bem distantes dessa área, ao desenvolverem os primeiros computadores, resolveram denominar igualmente memória aos dispositivos que retém dados no sistema que denominamos hoje computador. Essa palavra, como no caso dos bonecos dos jardins de certos palácios franceses, permitiu a associação no sentido contrário, fazendo que muitos se refiram à memória humada como memórias de computador, e buscando analogias a partir desse modelo. Podem haver sérios inconvenientes em usar a memória de computador como modelo de memória humana, pois o modelo não é adequado à maior parte das situações.
No caso da memória de computador, há alguns anos, quando num curso de computação se fosse explicar aos alunos seu funcionamento, lançava-se mão da analogia entre a memória do computador e uma prateleira de escaninhos. Escaninhos eram usados em locais de passagem das pessoas, e serviam para deixar correspondências, avisos, livros devolvidos, etc. Nas escolas de antigamente a prateleira de escaninhos era referida como pombal. A correta analogia com a memória de computador vem do fato que, a pessoa que distribui uma correspondência (por exemplo), coloca a carta no escaninho do destinatário, tal pessoa sabe qual é o escaninho de cada professor devido a sua identificação, geralmente por números, e o professor ao passar pelo local vai diretamente ao seu escaninho e toma o que lá estiver.
É altamente improvável que alguém tenha tentado modelar o funcionamento da memória humana, fazendo qualquer analogia com um pombal de escola. Mas se vê fazer isso corriqueiramente com a memória de um computador, independentemente do inventor do computador se dar conta da confusão, quando batizou parte de seu dispositivo com o nome “memória”. Na verdade esse termo não é usado apenas na computação. No estudo das propriedades mecânicas dos materiais também se usa. Por exemplo, pode-se afirmar, corretamente, que um clipe de papel, ou mesmo um grampo (pregador) de roupas, possui memória. Esses mecanismos simples tendem a voltar a ocupar seus formatos originais depois de deformados. Exercem uma força no sentido de recuperar o formato original, esta força é aproveitada para prender papéis e roupas. Ninguém vai comparar a memória humana com um clipe ou grampo.
O que acontece naqueles casos de analogias vistos anteriormente, de bonecos para humanos, ou de memória humana e computadores? Clipes, grampos e pombais são muito simples, e quem sabe por isso carecem de mistério. Falta magia portanto. Bonecos pneumáticos, mesmo longe de parecer humanos, eram trazidos, por entre as moitas, pelo susto do deus grego Pã. Computadores são assombrosos, capazes de feitos acima da capacidade de uma pessoa – usava-se comparar antigamente a quantidade de calculistas que um só computador poderia substituir. Até que ponto se pode comparar humanos e computadores, ou bonecos, ou grampos? A resposta está na serventia do modelo que se propõe com uma tal comparação. Mas a reação humana ao fazer boa parte das analogias, não é a da eventual frieza da técnica científica. Pã está morto na consciência, mas vive dentro de todos; o assombro e o espanto continuam vivos, como necessidades vivas, com suas imensas energias igualmente vivas.
A descoberta científica, para o cientista, aparece sempre repleta de muita energia. Esta se mostra de forma evidente em vários aspectos. O físico brasileiro Marcelo Gleiser chama atenção para esses aspectos emergentes, para ele primordiais e inseparáveis da pessoa do cientista, em diversas passagens ao abordar aspectos criativos na ciência. O trecho abaixo destaca um desses aspectos como exemplo.
Nesse mundo apressado [do séc. XIX], até o deus dos deístas havia sido quase esquecido. A ciência se tornou uma profissão, e o estudo da Natureza, uma atividade completamente independente de aspectos religiosos ou teológicos. As pesquisas de Darwin sobre a evolução e a seleção natural haviam aumentado ainda mais a separação entre Igreja e ciência, “condenando” os humanos a serem descendentes diretos de macacos. A divisão entre ciência e religião havia se tornado oficial e permanente. Trabalhos científicos não deveriam fazer nenhuma menção à palavra Deus, focando suas atenções exclusivamente na ciência. Não existia mais a necessidade de atribuir um caráter divino à Natureza como justificativa para a devoção à ciência, conforme Newton havia feito dois séculos antes. Em contrapartida, encontramos uma crença na “unidade” dos fenômenos naturais, expressa através de uma profunda admiração pela beleza que emerge como consequência dessa unidade, funcionando como inspiração para a criatividade científica. Unidade, beleza e simplicidade tornaram-se ícones justificando a devoção à pesquisa em ciência pura (em contraste à ciência aplicada). Note que essas palavras têm um significado universal; independentemente de qualquer afiliação religiosa, seu uso sugere um contexto religioso de caráter mais geral. Mas cabe a cada cientista, na privacidade de seu escritório ou laboratório, decidir o quanto essas palavras investem sua própria pesquisa de um conteúdo religioso. (GLEISER, 1997, pag. 247).
Gleiser deixa claro o conteúdo de energia que desperta na forma das emoções, do prazer, mesmo numa estética própria do cientista. Um de seus objetivos ao longo da obra é o de humanizar, e de certo modo desmistificar, a figura do cientista. Ele quer ser como um tradutor entre o cientista, o físico em particular, e o público leigo, na esperança de poder “compartilhar da minha paixão pela ciência e por esse Universo que jamais deixará de nos surpreender e maravilhar”. (GLEISER, 1997, p. 14; grifos meus). Ao mesmo tempo que humaniza o cientista, o caminho inverso fica igualmente traçado, isso é, fica claro que o cientista dentro de cada “leigo” também vai agir da mesma forma. Surpresa é terreno de Pã, desvendar o mistério é maravilhoso e apaixonante como um amor divino. A busca pela beleza e o númen provocado pelo encontro com a unidade, são a energia do cientista, e a expectativa da descoberta é a própria antessala do divino.
Ciência e religião são, portanto, movidas pela mesma energia de fé. Pode-se aproveitar essa abundância dos termos reveladores da energia, que move rumo à descoberta, e estabelecer alguma relação com o que Jung diz a respeito dos caminhos da energia no psíquico, ou melhor dizendo, como tais forças interagem no acontecer psíquico. Ele chama a atenção para um tipo de contaminação da qualidade da energia que desapareceu no inconsciente, e que ao se manifestar em outras funções da consciência, retorna com certas qualidades residuais, como que indícios, que revelam a origem dessa energia. Os termos empregados por Jung, que cita HARTMANN como fonte, são intensidade e extensividade, como atributos complementares ao conceito de energia. Conforme essa conceituação, “a quantidade, ou fator de extensividade da energia é inerente a uma forma […] e não é transferível a outra sem que se transfiram partes da sua forma; o fator de intensidade, por seu lado, pode passar de uma forma a outra” (JUNG, 2010, OC VIII, §37).
Conclui Jung que esse fator de extensividade, carregando tonalidades do fenômeno original, “[…] não pode passar a uma nova formação sem que se transfiram partes ou características da formação anterior à qual se achava vinculada” (idem, §38). Tais características aparecem sob forma de fragmentos que fornecem os indícios de herança das qualidades da fonte original da energia, surgindo em aspectos dos sintomas, sonhos e fragmentos da fantasia. É desta forma que a falada “fé na ciência” é uma verdade autocontida, mas por motivos que muitos cientistas não gostariam de admitir. Também aponta a origem da força tremenda que impulsiona a simples descoberta, dentro de cada um, cientista ou leigo. A beleza da unidade das teorias, a elegância das equações simples, a busca da teoria de tudo (uma só teoria unificadora) pode ser tão numinosa quanto a experiência da completude na união de céu e terra, do Taoismo, e igualmente venerada na frase de Jesus “Eu e o Pai somos um” (BÍBLIA, João 10,30).
Existe igualmente um fator de atração na busca da identidade, a unidade simples, claramente como fator de reencontro após o exílio, o retorno da diáspora ao Tzion, do diábolo ao símbolo. Esta reunificação na simples unidade, caminho de toda energia no movimento universal para a entropia, não deve ser desprezada em situação nenhuma, pois a energia em si é definida a partir da polaridade, da divisão.
O simples pensar em um modelo de realidade é de fato uma idealização. Em todos casos, quem pensa está sujeito ao ideal de realidade cujos impulsos e finalidades estão descritos logo acima. Caso tal modelo tenha fundamentos solidamente arquetípicos, e uma boa dose de arte para representá-los corretamente, então o modelo “pega”, isto é, encontrará eco no íntimo de cada um, e pode se tornar um sucesso. Esse aspecto tomado simplesmente como está aqui colocado, faz de um modelo científico, e até toda uma teoria nele baseada, nada diferente que uma ótima lenda ou mito, que persiste, pois carrega um fato da alma.
Parece ser óbvio dizer que qualquer projeto científico, ou o próprio projeto da ciência em si, ao ser feito por homens e mulheres, não poderia escapar dessa forma honestamente humana de ser. Ou seria a ciência levada a cabo por deuses? Talvez seja isso o que paira tão fortemente na imagem de ciência, como algo divino. Gleiser é bastante feliz ao abordar este mote. “Embora ciência e religião abordem a questão da origem do Universo com enfoques e linguagens que têm pouco em comum, certas ideias forçosamente reaparecem, mesmo que vestidas em roupas diferentes” (GLEISER, 1997, pag. 12). Como físico ele se refere ao Universo (um só lado!); seria possível esse mesmo olhar acerca de outras questões fundamentais como “a origem da vida”?
Uma vez exaltadas as coincidências, é preciso apontar igualmente as diferenças. A ciência se propõe a aplicar o método científico, ao definir seus objetivos, delimitar a realidade a ser estudada, o que inclui definir o modelo de realidade, assegurar meios de universalizar o conhecimento inclusive pela possibilidade de repetir os ensaios, poder fazer previsões e dar explicações dentro de uma teoria que seja inclusive plausível de contestação. Em parêntesis: aqui o termo “realidade” pode ser algo tão abstrato quanto uma teoria matemática; em certos meios há quem questione se matemática é uma ciência, mas isso foge ao tema abordado neste trabalho. Uma verdade científica nunca deve pretender ser verdade absoluta (ab soluta – que não se dissolverá jamais), pois isso vai contra os princípios de universalização e contestação embutidos no método. “Não pode haver nenhuma certeza apodítica [incontestável] na ciência, nenhuma certeza conclusiva além do alcance da crítica” (Peter Medawar, citado em CARUSO, 2006, pag. 111).
Estes pontos são opostos aos da religião; esta sim estabelece uma verdade inconteste, por um processo intuitivo ou de revelação. Em tal processo, a religiosidade surge naturalmente com a energia que brota e forma o símbolo (JUNG, 2010, OC VIII/1, §88-92, e nota 62), algo que vem de outras instâncias, do íntimo do ser como Anselm Grün19 nos ajuda a recordar. Jung nos mostra também que no esforço do desenvolvimento espiritual ao longo dos últimos séculos, esforço que inclui a formação de um “espírito científico”, ocorre concomitante a repressão da formação simbólica individual, a erradicação do politeísmo e da multiplicidade dos deuses familiares (idem, §92). Não resta outra saída para o acúmulo da energia que sobra, sem deuses verdadeiros para se dirigir, deificar o cientista e fazer da ciência religião. Com isso se recupera ao menos o acesso ao mistério, perdido desde a morte do poderoso Pã. O mistério agora revestido de “ciência”, ou “consciência”, que exige permanecer suficientemente incompreensível para manter-se mistério.
Exercitar o pensamento com uso de modelos, sempre parciais, da realidade, não é inerentemente errado. O engano pode aparecer nos casos de se esquecer que na origem do pensamento, o modelo necessariamente se afasta da realidade. Tal engano impulsionado pelo símbolo, ou melhor seria dizer, pelo impulso do retorno ao símbolo, como foi tentado mostrar acima. Quando a ciência estava em seus primeiros passos, no estabelecimento do método em si, já havia o esforço consciente de estabelecer tal limitação para o alcance do modelo, e o cuidado com seu uso.
Quando Newton olha o céu e afirma que os corpos “caem”, assim nos céus como na terra, segundo a mesma lei de gravitação, ele está, entre outras coisas, estabelecendo um modelo. A cena de alguém olhando para cima, pensando acerca do movimento dos astros no firmamento, enquanto lhe cai uma maçã na cabeça (na “máquina de pensar”), talvez seja lenda. Este conjunto de árvore da vida e do conhecimento, a maçã como tentação, a inquietude do homem em prospectar a natureza, sinaliza para mais um afastamento do homem em relação a Deus, junto com o risco da identificação com Ele, no seu processo cultural. Ao Newton como indivíduo não pode ser imputado tal afastamento, pois ele se mantém fiel a uma fé religiosa que nunca deixa de confessar, na maçonaria ou na prática alquímica (CARUSO, 2006; GLEISER, 1997).
Ao ser perguntado a Newton o motivo de não haver citação a Deus em seus escritos, como na sua “Filosofia da Natureza”, a resposta bem simples foi “não o citei pois não foi necessário”. Em outras palavras, no modelo de natureza que Newton pretendia, a hipótese de um ou mais deuses não era necessária, e na verdade era mesmo sua intenção que não o fosse. Newton se gabava de dizer que como homem de ciência, não fazia hipóteses: “hipotheses non fingo” (CARUSO, 2006, p. 148). Assim como Jung o fez mais tarde, Newton se dizia empírico, fiel observador na Natureza, seguidor da tradição de Galileu. No modelo newtoniano da natureza, a pretensão é que a descrição seja tão completa, que os aspectos objetivos observáveis formem um todo coerente de onde se possa trazer as explicações e fazer as previsões necessárias. Isso delimita o que é necessário.
Newton conseguiu estabelecer tal modelo com tamanha eficácia, que o modelo perdurou por séculos, e na verdade ainda persiste. Hoje é fácil alguém descrever a física newtoniana como um modelo causalista e mecanicista, com forte nota pejorativa. Quase sempre tais pessoas usam argumentos com esses termos para evocar uma suposta “mudança de paradigma”, quem sabe para abrir caminho a novas considerações. Essas pessoas procedem assim sem se atentar que fundam suas certezas em terreno movediço. Seria útil de um ponto de vista de produção intelectual, atentar que tal afirmação é apenas parcialmente verdadeira, e que dadas as hipóteses de contorno, a física, conforme Newton, segue bastante válida (acerca das críticas a Newton e ao modelo mecanicista causal, ver adiante nesse trabalho o hilário contraponto apresentado pelo físico Alan Sokal, item III.1. p. 113ss). Considerando que é um modelo de realidade, é fácil ver como ele continua vigente.
Apesar de Newton aludir a ausência de hipóteses em sua teoria, há duas hipóteses nela implicadas: o tempo e o espaço (distância) não são grandezas absolutas e independentes. Acreditava-se então que a tal universalidade e homogeneidade de tempo e espaço levavam a considerações interessantes, como a provável infinitude do Universo, mas passaram a ser questionadas conforme o pensamento progredia, e também conforme a experiência da natureza foi sendo ampliada, pela crescente capacidade de observação da natureza. De um lado, estudos teóricos acerca de ondas como levados por Maxwell, as dúvidas de Planck, e outros, levaram Einstein a propor a relativização dos, antes absolutos, referenciais de tempo e espaço. De outro lado, a dificuldade de manter os modelos mecânicos de então, levou ao desenvolvimento de novas teorias e novos modelos. Cada um deles é pensado para descrever certos aspectos que outros não sejam, e sua popularidade no meio científico, será maior ou menor, mais rapidamente aceita ou não, de acordo com a coerência com demais modelos. Mas mesmo que não se possa refutar um modelo, não significa que ele seja a “verdade de tudo”.
Pouca gente hoje, ainda pensa que a terra não seja redonda. Porém ninguém espera que um arquiteto leve isso em conta ao projetar uma casa. O arquiteto vai trabalhar em um espaço tridimensional euclidiano, projetando via de regra, ambientes com chão plano, e o teto paralelo ao chão, guardando ortogonalidade com as paredes. Isso tem funcionado perfeitamente, desde antes de Galileu, passando por Newton e Einstein. Ao executar o projeto arquitetônico, os engenheiros farão seus cálculos considerando a mecânica de Newton, o que é amplamente suficiente para construir desde uma casa em qualquer lugar das Américas, até um mega edifício na Malásia. Como se a terra fosse plana. Como é que o modelo de terra plana poderia estar errado? Para um arquiteto, ele não está.
Da mesma forma, os projetos de viagem à superfície lunar, usaram modelos da mecânica de movimento de Newton. E acertaram! Apesar dos desenvolvimentos teóricos já disponíveis acerca de outros modelos da matéria, tanto na física relativística como na quântica. O caso é que para as proporções de tempo, distâncias e massas, envolvidos nesses projetos, os modelos da mecânica clássica são mais adequados. Da mesma forma, não seria esperado que, certos modelos que se tenta desenvolver (desesperadamente), na física, para melhor compreender a matéria nas entranhas de suas menores dimensões, seja adequado para outro uso específico que não exatamente esse.
Ignorar os limites do que seja adequado a cada situação, permite espaço e risco a todo tipo de erro. Nesse caso se enquadram boa parte das transposições entre modelos diferentes, idealizados para diferentes situações, quando feitas sem critério. Suponha-se um exemplo prático, que seja medir a velocidade de um carro de corridas ao cruzar a linha de chegada. Este exemplo é oferecido pelo filósofo da ciência Osvaldo Pessoa, em seu “blog” sobre física quântica.
No exemplo do carro de corrida, isso significa que quando o bico do carro toca na linha de chegada, e nós tivermos um registro fotográfico exato de sua posição, a velocidade dele terá uma incerteza. Suponha que a foto seja tão precisa que a incerteza em sua posição seja da ordem do comprimento de um átomo! Se alguém olhar para a foto (que equivale a uma medição da posição do carro) e perguntar “qual a velocidade deste carro neste instante exato?”, a resposta será: “sua velocidade é indeterminada!”.
– Mas como indeterminada? O piloto disse estar a exatos 235 km/h!
– Sim, mas ele errou! Pelo princípio de incerteza, neste caso, a velocidade tem um valor indefinido, entre 235,00000000000000000000000001 e 235,00000000000000000000000002.
Vemos, com este diálogo fictício, que o efeito do princípio de incerteza é bem pequeninho, e só se torna relevante na escala dos átomos (PESSOA, acesso em 07/3/2017, post 12: O princípio da incerteza)
Nota-se que PESSOA não fala em algum tipo de erro, está tudo fundamentalmente correto na parte das afirmações, do ponto de vista da física. A ressalva é levantada no âmbito da relevância, à aplicabilidade. Primeiramente, toda técnica relativa ao movimento dos carros de corrida, na prática, está fundada na física clássica (e outras ciências de materiais, etc, que não vem ao caso aqui). Afirmar que a velocidade do carro é indeterminada, cria problemas para as regras das corridas em geral: não se pode admitir que a velocidade de um carro de corridas seja indeterminada, pois essa grandeza, a velocidade, é considerada para o estabelecimento de regras da corrida em si, regras de segurança, desenvolvimento da aerodinâmica, premiação, etc.
Há um outro fator, que seria a dificuldade de medir velocidades de automóveis com tamanha precisão, que permitisse discriminar dois valore tão próximos como citado acima, no qual o erro previsto pelo princípio da incerteza está na 26a casa decimal. Isto é, da ordem de alguns bilionésimos de bilionésimo de bilionésimo de quilômetro por hora. Montar um sistema capaz de aferir velocidades de automóveis numa pista ao ar livre, de modo que pudesse desafiar o princípio da incerteza, seria decerto mais custoso que promover a corrida e fabricar todos carros da competição. Se é que seria possível. Os espaços a discernir seriam da ordem de uma fração da espessura da tinta do bico do carro. Menores ainda que a espessura da camada de cera que lhe dá o brilho.
Nesse exemplo dos carros, o uso de um modelo quântico para aferir as velocidades é inadequado, ou despropositado. Além disso, admitindo (conforme calculado) que a “incerteza” na velocidade dos carros, a suposta dúvida, estaria na 26a casa decimal, é mais correto afirmar que não se trata de uma “incerteza”. Pelo contrário, é de fato “certeza”, absoluta, acerca da velocidade. A origem do erro que aqui se incorre, é de transportar um princípio de incerteza, no modelo de Schrödinger baseado da probabilidade de ocorrência de uma única partícula subatômica, para a certeza de um corpo de grandes proporções composto por incontáveis partículas, sem fazer as devidas considerações probabilísticas, mas mantendo caprichosamente o termo “incerteza”. O erro é o de querer transpor o caráter estocástico de uma única partícula subatômica para um corpo grande, que tem comportamento de caráter determinístico (vide outras considerações adiante no item III.3. p. 133ss, e as palavras do próprio Schrödinger acerca dessas confusões). No exemplo todo, a palavra “incerteza” é no mínimo um erro conceitual, que conduz a uma falácia.
Tais erros, ou impropriedades, podem ocorrer ao se “atravessar” diferentes modelos, quando se transita entre diferentes mundos: do muito grande ao muito pequeno, ou ao muito veloz. Uma delas diz respeito à própria constituição da matéria. Na antiguidade, ao propor o conceito de átomo, é possível que, aos pensadores da época pré-socrática, tenha ocorrido o correto arrazoado de que um elemento possa ser dividido até um limite além do qual isso não seja possível. Seria o mesmo que dizer que, o imenso Pão de Açúcar, fosse composto de um aglomerado enorme dos menores grãos de areia encontrados na praia, um enorme monólito do mesmo material que é a areia. Não está errado, apenas se verificou incompleto como definição. A discussão acerca da elementaridade da matéria, a ideia de um átomo e sua propriedade, motivou inúmeras discussões, sempre dentro de modelos idealizados.
Ao longo do tempo, esse modelo de realidade, um eventual átomo, suficientemente bom na Grécia antiga, precisou ser modificado para acomodar novas descobertas, ou mesmo novas teorias, criando um novo modelo de realidade, e o estabelecimento do modelo de átomo de Rutherford. Neste átomo, logo se estabeleceu que o núcleo, parte mais sólida e pesada, é uma ínfima parte do tamanho do átomo, comparado com as órbitas dos elétrons. Esse modelo permitiu que algumas pessoas afirmassem, durante um tempo que “a maior parte da matéria é, na verdade, um vazio”, ou que a matéria é em grande parte “imaterial”. Muitas pessoas passaram a alentar a possibilidade de que, a partir de uma nova visão da matéria comprovada pela física, estaria sendo dado um passo para afirmar que a matéria não existe, ou se existe é na maior parte imaterial. Parece haver um preconceito contra a matéria, no qual se supõe uma incompatibilidade entre matéria e espírito, e que prefere ver uma tendência evolutiva positiva quando o “homem espiritual” se afasta da matéria. Não há problemas em pensar dessa maneira, a questão é atrelar uma filosofia de vida, ou de evolução espiritual, lastreando em interpretações viciadas, a partir de teorias científicas que, mais cedo ou mais tarde, serão corrigidas, completadas ou mesmo abandonadas.
O problema não está numa incompatibilidade inerente aos pensamentos. A questão expõe na verdade, uma incompatibilidade entre modelos e seus propósitos. Não apenas pela apropriação da terminologia tomada a partir da física, mas porque talvez o progresso de uma vida espiritual não deva mesmo ficar sujeita aos meandros de uma atividade que, por ser científica, seguirá um progresso próprio baseado em outro modelo de pensar. Longe de achar que a transdisciplinaridade seja indesejada, a questão é sobre a oportunidade de adoção de modelos, quanto aos seus objetivos e praticidade, e a coerência segura com as fontes científicas. Nessa questão específica de poder afirmar, qualquer que seja a motivação, que “a matéria é um vazio”, caso se lastreie toda uma filosofia a partir disso, como fazer quando, a partir de Dirac, o vazio (antigo espaço pré-socrático) deixa de ser considerado uma região com ausência de matéria? (CARUSO, 2006, p. 547ss).
Empenhado na busca de uma definição sobre o que é a vida em si, o cosmólogo americano Carl Sagan faz a seguinte observação: “O homem tende a fazer definições em termos do que é familiar. Mas a verdade fundamental pode não ser familiar”. Ou seja, segundo Sagan, há uma tendência a reduzir o desconhecido ao conhecido, como uma forma de analogia com objetos e suas propriedades, que sejam de nossa familiaridade. A questão da dualidade onda-partícula igualmente suscita uma questão nessa trilha, e como na definição do “vazio” acima, a tendência a interpretar o modelo do mundo muito pequeno, das partículas quânticas, busca familiarizar tal conceito. Seria o fóton uma onda ou uma partícula? Se as partículas podem ser interpretadas e descritas como ondas, então todo o ser (humano) é uma onda?
Mais longe que o exemplo que associa o grão de areia com o quase monólito Pão de Açúcar, estaria a comparação de uma eventual partícula, com suas eventuais propriedades duais de onda, contrapostas ao conjunto dos objetos que supostamente os representam, por analogia, no universo de tamanho humano. A questão está novamente no modelo. Ao fazer um modelo de partícula, se formará uma imagem de partícula na mente de quem imagina, que tende a ser similar ao que esta pessoa está familiarizada como partícula.
Muitos exemplos de analogia foram usados, tentando dar uma ideia mais familiar ao átomo. Há um desses exemplos, que é o de comparar as proporções atômicas com laranjas e estádios de futebol. Acredito que seja louvável tal tentativa. Porém na essência, os núcleos atômicos não são laranjas, e não se comportam como tal, assim como não é concebível uma laranja se parecer com um núcleo atômico, nem de longe. Isso deveria ficar mais bem estabelecido logo de saída, mas não é. Logo a irresistível tendência à familiarização vai fazendo sedimentar uma ideia enganosa. Igualmente do outro lado da dualidade, a noção de onda é de difícil assimilação pelas pessoas em geral. Uma onda mecânica já requer um esforço ao seu entendimento pela maioria das pessoas (ondas do mar, ondas de som, etc). Uma onda de natureza eletromagnética é um pouco mais complicada, devido ao caráter mais ou menos impalpável de seus componentes, magnetismo e eletricidade; tais ondas puderam apenas ser vislumbradas pelo gênio de Maxwell, com um ferramental matemático de acesso bastante árduo, usado em sua modelação. Uma onda que represente uma partícula subatômica, tem significado apenas por meio de sua definição matemática, e mesmo assim e a duras penas, carreia certa unanimidade dentro da própria comunidade científica.
Novamente tudo é uma questão de modelos. Nada impede que um modelo, por mais estranho que pareça, seja bom para os seus propósitos na física ou na matemática, para a exploração de ideias que alavanquem um entendimento mais abrangente e profundo da natureza. Onda e partícula, vistos dessa maneira, deveriam deixar de causar estranheza pelo seu caráter incompatível, ou dual e complementar, pois na verdade estes são modelos, não são a realidade em si. No caso da mecânica quântica, e dos grandes espaços e velocidades vislumbrados a partir da relatividade, se faz necessário ter em mente que tais partículas, e mesmo a realidade em si, estão longe de ser comparáveis a bolas de bilhar; tais ondas bem distantes de serem ondas do mar, o vazio intra molecular bem diferente da “ausência de matéria” do espaço pré-socrático, e, mesmo o tempo e o espaço, algo bem diferente do que a “experiência familiar” supõe, tendo estes últimos escapado, até mesmo, a uma das mentes mais brilhantes que a humanidade já produziu entre seus filhos – Isaac Newton.
Sempre será oportuno frisar que, o que se coloca, está longe de ser uma evitação generalizada à interdisciplinaridade. Nada impede que modelos sejam adotados de maneira interdisciplinar. O cuidado deve ser dirigido no sentido de, ao transferir um determinado modelo de um mundo para outro, ter em mente quais propriedades se carreará junto com isso. Seria preciso um conhecimento adequado de cada uma das disciplinas, no caso dos exemplos até aqui, a psicologia e a física, para saber delimitar de forma consciente o que se está transportando ao nível de modelo, ou mesmo ao nível da realidade representada pelo modelo. Sem tal cuidado, se fica susceptível a usar um mistério para entender outro mistério, e também susceptível aos propósitos inconscientes, defendendo necessidades obscuras.
Quando alguém diz “tenho um espírito científico”, ele está dizendo “quero sempre ser importunado, quero estar sempre desassossegado”. A ciência possui uma moral. Mas admito que certamente é bom viver em um mundo ainda habitado por oréades, hamadríades e ninfas e deuses. Sempre foi assim e não há nada de errado nisso, mas quando vem a ciência, a brincadeira acaba. (JUNG, 2011h, SSC, p. 494)
Recordo de um episódio, durante o penúltimo ano da formação de engenheiro em Campinas. Lutava há dias no laboratório de automação, para colocar em funcionamento um inversor de energia para acionamento de um motor elétrico de corrente contínua (o inversor, no caso do tipo chopper, é um dispositivo elétrico que permite dosar, modular, a potência do motor de corrente contínua a partir, por exemplo, de uma bateria). Estava numa aula do curso regular, e minha mente se dividia entre o conteúdo da matéria e meu problema no laboratório de automação. De repente um “plim” me tocou, e me vi tocado também repentinamente para o laboratório. Lá fiz uma alteração simples, e de imediato o aparato todo funcionou. Como se isso não bastasse, o circuito produzia um zumbido similar ao que se ouve no metrô de São Paulo quando o trem acelera partindo da estação. “Então é isso!” disse a mim mesmo em êxtase.
Hoje posso chamar este êxtase, de númen, assim como estaria um primitivo tomado de êxtase perante uma visão de divina eficácia, se projetada no objeto (JUNG, 2010, OC VIII/1, §127). Difícil fazer tal projeção num frio laboratório, mas igualmente difícil não relacionar a “uma ideia de Deus” (idem, §129) tal unificação de experiências, como esta de caráter da audição, e que tem a capacidade de atualizar num laboratório de engenharia, uma sensação de infantil passatempo vivida anos antes, e que agora revive em novo contexto e significado.
A situação em toda descoberta é de um arrebatamento, é cheia de númen. A partir de um estado de consciência extrema, com o foco da consciência todo voltado para a solução de uma situação objetiva, o inconsciente parece fazer esforço similar como um par de crianças a girar segurando pelas mãos. A sensação final, é a de que o mundo faz sentido, ou quem sabe parecesse um todo coerente. Recordo que desde a infância mais primeva, ouvia o zumbido do trólebus (ônibus elétrico paulistano), e o imitava com perfeição a pedido dos familiares.
Quando técnico, pude interpretar o conteúdo elétrico desses trólebus a partir do zumbido e do estalar, ouvido quando o motorista pressionava o acelerador (nesse caso o acionamento do motor é por um “comutador sob carga”). Agora tudo se juntava nessa experiência auditiva que se somava ao prazer da “pequena vitória” da persistência sobre o problema. Tal persistência nesse caso é apenas latente na consciência, não se pensa numa coisa dessas todo e cada dia. Mas quando a oportunidade surge, parece então que tudo se junta, nas diferentes etapas da existência e nos diferentes significados, como o céu e a terra do Tao. Jung sugere que “Tao pode ser tudo. Uso uma outra palavra para designá-lo, mas ela é muito pobre. Chamo-a sincronicidade” (JUNG, 2010, OC XVIII/1, §143). Essa pobreza seria inerente mesmo ao modo de pensar do ocidental frente ao oriental. O primeiro vê as coisas de maneira analítica que desenvolve conhecimentos específicos e estanques; o segundo tem facilidade em aceitar as coisas como são, dentro de uma visão global de tempo e espaço (idem, §141-143).
A sensação de númen, êxtase pela descoberta, não é evidentemente ato exclusivo da consciência, que usualmente não é dada aos afetos. “Os afetos não são ‘feitos’ através da vontade, mas acontecem” (JUNG, 2011f, OC IX/1 §497). O êxtase cheio de afeto mostra uma participação do ser como um todo, enquanto “nossa consciência tem […] uma tendência compreensível de menosprezar o inconsciente” (idem, §500). Daí a surpresa, isto é, a descoberta como algo surpreendente, e o sentimento de união da consciência com uma realidade inconsciente que de repente se impõe e une passado com presente, conhecido e desconhecido, a descoberta enfim, que se enche de significado. Tal união aparece mesmo como o resgate de algo que já estava lá, mas havia sido perdido. “O desconhecido que o afeto descobre, sempre esteve aí e mais cedo ou mais tarde se apresentaria à consciência” (idem, §498). Embora todo caráter afetivo atribuído aqui para a descoberta, não seria de esperar que nesse “frio laboratório” o cientista racional pudesse esperar uma associação de fatos internos tal como esse. Pelo contrário, é fácil seguir os memoriais de projetos e ver a racionalidade de objetivos, premissas e conclusões, que ignoram a inteireza (como manifestação do Tao por exemplo), e não incluem a necessidade de mencionar Deus! Mas o ser humano tem uma historicidade e sua completude, sua finalidade, se impõe:
Este fato confere ao inconsciente o aspecto ‘histórico’ característico, ao mesmo tempo que constitui a conditio sine qua non de uma determinada configuração do futuro. Por esse motivo muitas vezes é difícil decidir se a manifestação autônoma do inconsciente deve ser interpretada como efeito (portanto histórica) ou como finalidade (portanto teleológica e de antecipação). A consciência pensa em geral sem preocupar-se com as condições prévias ancestrais e sem calcular a influência do fator a priori sobre a configuração do destino (JUNG, 2011f, OC IX/1, §499).
Seria a curiosidade, científica ou não, um ato estritamente consciente? Com certeza que não. Impossível afirmar que seria sem ao mesmo tempo considerar “o outro lado que empurra”, que motiva para a descoberta, e confere muito mais alma ao laboratório. Ao observar uma criança que está prestes a engatinhar, mas ainda não engatinha, é possível ver sua atenção voltar-se para algo, e de súbito o impulso com todo corpo na direção daquilo que lhe chamou a atenção, como se fosse sair correndo rumo a seu objeto de interesse. Como pode ter o impulso de ir sem nunca ter andado? Assim como o impulso para andar possui um mecanismo autônomo presente desde o nascimento, igualmente o impulso para a investigação, a curiosidade, também está aí.
Quando JUNG define a psiquificação, esse fenômeno que desvia a energia originariamente apenas instintiva, de sua aplicação biológica, ele distingue os impulsos para a ação e para a reflexão, além daqueles da fome e o sexual:
Eu gostaria de distinguir, como terceiro grupo de instintos, o impulso à ação, impulso este que começa a funcionar, ou talvez mesmo surja pela primeira vez, quando os outros impulsos se encontram satisfeitos. Sob o conceito de ação incluiríamos o impulso a viajar, o amor à mudança, o desassossego, e o instinto lúdico. Há um outro instinto, diferente do impulso a agir e, enquanto sabemos, especificamente humano, que poderíamos chamar de instinto da reflexão. (JUNG, 2011a, OC VIII/2, §240-241)
Podemos encontrar o impulso da ação juntamente ao sexual e da fome nos demais mamíferos, por exemplo ao observar como brincam. No caso da reflexão, JUNG vê esse instinto como constituinte da:
[…] característica e riqueza da espécie humana. A reflexão retrata o processo de excitação e conduz o seu impulso para uma série de imagens. […] Graças ao instinto de reflexão, o processo de excitação se transforma mais ou menos completamente em conteúdos psíquicos, isto é, torna-se uma experiência; um processo natural transformado em um conteúdo consciente. A reflexão é o instinto cultural par excellence, e sua força se revela na maneira como a cultura se afirma em face da natureza. (JUNG, 2011a, OC VIII/2, §242-243)
Parece que nem o impulso à ação nem o da reflexão possuem data de validade, isto é, o impulso para a descoberta e a curiosidade, a inquietação reflexiva, são inerentes aos estados da vida estando manifestos ou latentes, disponíveis para quando se apresentam as oportunidades. Vale mencionar que um mecanismo de regulação e equilíbrio compensa essa tendência que caso contrário tornaria cada ser dotado de criatividade sem limites (idem, §244).
Como foi mencionado, o inconsciente inteiro não se desliga da pessoa, felizmente, quando o pensamento objetivo está ativo. Muito pelo contrário, talvez no ápice de sua força, a força contrária (inconsciente) de toda psique esteja fazendo igual esforço, compensatório e necessário para manter o equilíbrio, que é igualmente necessário para manter a estabilidade exigida para o bom funcionamento do pensamento dirigido.
Existe uma ligação indestrutível entre o pensamento racional e o livre voo do pensamento não dirigido, ou melhor dizendo, dirigido pelo que brota de maneira inconsciente e que tem sabedoria digamos assim milenar, eônica, eterna, como visto na página anterior, na referência direta a JUNG (2011f, OC IX/1 §499). Jung chama a atenção para esse fenômeno, ao afirmar que o papel da razão, como fiel juiz da medida e verdade absolutas, para todas as coisas, não passa de pretensão humana! Mais uma vez o empírico JUNG volta para lembrar acerca da tendência totalitária da razão, usando a comparação entre razoabilidade e fato (empiria), e evoca a existência de piolhos e elefantes: estes seres podem ser estranhos a qualquer lógica, mas “simplesmente existem. Posteriormente podemos ser razoáveis [ceder ao julgamento racional]” (JUNG, 2011h, SSC, p. 493).
A questão tem dois vieses. A explicação em si por um lado questiona a validade da realidade e coloca em cheque o fato, e por outro, a razão cria realidade na forma de hipóteses, que preenchem o vazio deixado na mente consciente incapaz de compreender; vazio este que nos enche de medo. JUNG lança mão de forma analógica evocando a (quase eterna) disputa filosófica acerca do vazio, que na Física se estende à (antiga) hipótese do éter.
Enquanto não sabemos como a luz se propaga no espaço, preenchemos essa lacuna na ordem do mundo com éter e dizemos “éter”, e isso se encaixa perfeitamente em nós. Não sabemos por que, mas sempre já se pensou nesse éter. Os velhos gregos já sabiam a respeito disso. É a ideia a respeito do ar finíssimo [etéreo]. É o ar de fogo. Os primitivos já sabem que a alma dos humanos é ar de fogo. É o éter. Nós, no entanto, acreditamos, que isso seja científico. (JUNG, 2011h, SSC, p. 493-494)
A analogia mencionada reside em usar a hipótese do éter, que preencheria um vazio inaceitável para certas pessoas de ciência (desde tempos antigos, e passando pelo próprio Newton), para ilustrar a impossibilidade da existência de um análogo vazio da psique, causador de todo tipo de desassossego conforme mencionado logo acima. Esse vazio e desassossego inventam todo tipo de preenchimento, assim como o éter é inventado. Nem todo esse mecanismo é inconsciente. Por exemplo o próprio caso do éter é revisitado por Jung em uma segunda ocasião, dessa vez ilustrando um acontecimento junto ao seu professor de Física. Com certeza esse professor, durante sua formação acadêmica, apreendeu corretamente ao conceito de um éter como hipótese. Porém, ao longo do tempo, perdeu a consciência do que seria hipótese válida, transformando-a em certeza de um éter como fato concreto, a partir da força mitopoética natural da psique. O que seria hipótese válida, o arquétipo pinta com cores de realidade, afasta-se da consciência, e se impõe como tal. O trecho é o seguinte:
Quando eu era estudante, disse ao meu professor de física: O éter não existe como matéria. Criei uma lacuna em seu mitologema. Ele simplesmente havia preenchido a lacuna com éter. Não havia percebido. É assim que as coisas acontecem. Se o inconsciente de fato preenche todas as lacunas existentes na imagem que temos do mundo e nós não percebemos semelhante coisa, e sim, acreditamos que vivemos em um mundo razoável, bem ordenado, então estamos separados do inconsciente; pois um conteúdo essencial, arquetípico do inconsciente, encontra-se do lado de fora na ordem mundial e nós não o percebemos como projeção. A física antiga não concebia o éter de modo algum como projeção. E se retornarmos à antiga ciência da natureza ou à alquimia, veremos que nestas pululam as mais incríveis projeções. Os antigos não tinham consciência disso. (JUNG, 2011h, SSC, p. 494)
Por mecanismos similares, os homens modernos igualmente não têm consciência disso. Ou melhor dizendo, estamos desde sempre sujeitos às forças de tomada e afastamento da consciência. Esse éter tomado como matéria, acaba por ter existência mais forte quando a razão se apropria dele, fazendo frente ao fato da realidade objetiva, e dando valor de concretude ao que era uma boa hipótese.
Hipóteses são ótimas amigas para a formulação de teorias, mas mesmo as melhores teorias não substituirão a realidade. As pessoas em geral não se dão conta disso. Teorias não são a verdade em si; teorias têm pernas curtas como as mentiras, quando confrontadas com o real. Hipóteses são a salvaguarda das teorias, como para disciplinar qual realidade se trata para tal teoria. Dizendo de outra forma: as hipóteses delimitam a qual realidade se aplicará tal teoria. A realidade em si é muito diversa e quem sabe inapreensível, e principalmente o empirista deve ter ciência dessa limitação. “Na prática, a experiência [confronto do real] não é dada; não nos encontramos simplesmente em vias de contemplar o mundo e depois interpretá-lo” (SOKAL, 1999, p. 76).
A tendência à explicação pode ser uma estratégia inconsciente da pessoa para manter a distância entre inconsciente e consciência, ou entre a razão e a natureza em estado bruto. Ou ainda fruto de seu complexo egoico frágil e, portanto, controlador – envolvido por um complexo de poder, ainda mais quando se considera o extraordinário poder de uma boa explicação. JUNG chama atenção para esse fato em seus Seminários sobre Sonhos de Crianças já mencionados logo acima: “[…] a distância é muito grande quando o inconsciente aparece de modo tão concreto, de modo tão – por assim dizer – material, ativo, espontâneo, plástico. Trata-se sempre de uma distância muito grande entre a consciência e o inconsciente” (JUNG, 2011h, SSC, p. 492). Explicações quase sempre trazem um sentido concreto, ou então uma razão da consciência, que estabelece ordem ante uma perspectiva de caos.
As explicações são assim, nesse sentido, reconfortantes. Fica-se sossegado perante o inatingível ao conformá-lo aos alcances da racionalidade, numa atitude autoprotetora do ego frente ao abismo da imensidão da psique, e do real. O oposto também pode ocorrer, se algo em nós desconfia das explicações fáceis ou definitivas, no desvelar de uma verdade absoluta. Primeiramente, não é papel da ciência apontar a verdade, seu método prevê justamente que toda afirmação cientificamente válida possa ser confirmada, e, portanto, contestada. Ao entrar em contato com o método junguiano, ainda na graduação, pude experimentar em mim, esse fenômeno de inquietude perante os saberes demasiadamente sólidos. Como seria possível tantas linhas de atuação que quase sempre guardam pontos de divergência quanto ao entendimento, mas pretendem suficiência, cada uma? Verificar na Psicologia Analítica que havia outra maneira para a abordagem da psique dentro de um método que amplifica, em lugar de reduzir ao explicar, foi alentador, e exerceu uma força atrativa enorme. Eu só não tinha ideia do tamanho do trabalho que enfrentaria ao abraçar a Psicologia Analítica.
A força ou esperança de conforto da explicação faz, por exemplo, com que o analisando, ao relatar um sonho, muitas vezes inicie o relato esclarecendo o que andava fazendo ou pensando no dia anterior ao sonho. Ou então mescle partes do relato onírico com descrições dos fatos da vida, dos locais por onde anda ou andou, numa tentativa de “justificar o que aparece no sonho”. Olhar o sonho simplesmente, pode ser assustador.
Algumas vezes é preciso encorajar a pessoa a “voltar ao sonho”, ou dizer “isso é um sonho, não precisa ser coerente”. Quase sempre essa compulsão por explicar o sonho, não serve como material de amplificação, buscar a direção do símbolo. Outras vezes não é possível fugir desse explicar compulsivo, e o que é possível fazer é aproveitar o próprio relato explicativo, e voltar ao conteúdo onírico quando possível.
Essa atitude de autoproteção do ego, nas explicações, é ambivalente e pode ser fonte de equívoco. Ao se agarrar nas explicações como um náufrago que se agarra à tábua, o ego quer se afastar do imenso e assustador mar do inconsciente, mas igualmente se afasta da sua própria fonte de vida psíquica. WENTH (2002) adverte que no processo de individuação, segundo Jung, não se espera que a consciência prevaleça e absorva o todo do inconsciente. Muito ao contrário, a consciência brota a partir do inconsciente ao longo do desenvolvimento individual, desde que nos percebemos como indivíduos depois de nascer, e durante toda a vida. A autora considera a individuação como um permanente processo de luta entre consciência e inconsciente, onde se alterna a oposição e a colaboração entre estes dois fatores, num progressivo reconhecer, e não prevalecer.
WENTH empresta o dizer popular “Se Deus quiser e o diabo deixar” para ilustrar essa luta entre consciência e inconsciente, comparando a vontade do ego pela explicação a todo custo, ao afastamento entre a consciência que quer ser luminosa demais, e o inconsciente, onde habita o mistério e o processo criativo:
Jung cita uma visão de Brigida da Suécia, onde esta vê o diabo como insatisfeito, guloso, tudo querendo devorar. Como sabemos, Lúcifer foi um anjo que não aguentou ser “apenas anjo”, ambicionava mais. Jung demonstra que na etimologia da palavra “compreensão” está implícito um sentido de “engolir”, daí a compreensão poder ser “coisa do diabo” quando é gulosa, quando não possui limites. Afinal, o diabo não sabe seus limites e não quer tê-los, sempre pretende assumir o lugar divino. Daí a ideia de ser inerente ao ego, à consciência uma certa “arrogância” até para que em sendo tão menor que o inconsciente possa perante ele se firmar, mas decorre daí também o perigo de ser diabólica, separar-se deste e querer ser divina, usurpar para si todo controle psíquico (WENTH, 2002, p. 13)
Nessa gula sem freios o ego se torna assassino da psique. Embora o entender seja considerado ético e humano, e algo do qual não se poderia abrir mão, ele pode tornar a vida estéril ao querer a soberania totalitária, em reação ao que no fundo é medo do ego de se perder, ser absorvido. O reconhecimento pelo ego, de algo muito maior, que tudo pode prover, é como uma visão divina, e assim é percebido pela maioria das pessoas, uma percepção do próprio Deus em si, em cada um. Esse poder divino que provê a vida de energia é verdadeiro mistério e misterioso deve permanecer, ao menos em grande parte. “[…] se tudo pudéssemos compreender deixaria de existir aquilo que sem nossa compreensão age; perderíamos o divino, tudo de nós dependeria. Ao perder o divino é como se também perdêssemos o humano, nos desumanizássemos, sobra o diabo” (idem).
Esse pano de fundo sempre presente, que tende a afastar a consciência para longe da natureza bruta e inconsciente (como por exemplo a dos sonhos), é alvo da ciência moderna quando os primeiros cientistas decidem que “não trabalhamos com hipóteses além das necessárias”, desenvolvem um método que carece do recurso de citar divindades, e corajosamente se propõe a aguentar a dúvida. Newton aguenta a dúvida ao desenvolver toda mecânica de movimento dos corpos, e ao reconhecer que o que age como gravidade fica para ser explicado depois, eventualmente. Com isso ele completa o modelo do movimento dos corpos sem entrar no mérito da origem da gravitação em si (a qual permanece em discussão até hoje). Newton também desenvolve uma teoria ótica se atendo às hipóteses necessárias ao trabalho (seu segundo trabalho mais famoso é sobre ótica), mas sem conseguir dar respostas acerca da propagação da luz, deixando esta tarefa em aberto. Soube aguentar a dúvida. Ou ainda acerca do movimento dos corpos celestes, onde a mecânica clássica não consegue descrever um desvio que se verifica na órbita de Plutão. Houve um aguentar as dúvidas, hipóteses foram lançadas, até que esse desvio foi corretamente equacionado pela relatividade, séculos depois (corretamente, até agora). As dúvidas permitiram prosseguir.
De forma antagônica, muitos se rendem ao sucesso dessas explicações e acreditam viver num tempo científico com teor de verdade. A ciência vista assim adquire status de oráculo, e os cientistas seus sacerdotes. Nessa questão, é preciso diferenciar o caso da Psicologia como uma teoria, daquela que é a prática clínica. No consultório se aconselha a “deixar os livros de fora ao fechar a porta com o cliente”. Como produção de conhecimento, mesmo considerando que as teorias se desenvolvem a partir da prática e sua observação (a empiria), não por isso estaria isenta de se acomodar às restrições científicas. Quando o psicólogo avança nas demais ciências, e esta é uma tendência irreversível em tempos de interdisciplinaridade, é preciso respeitar as diferentes terminologias, resguardar as restrições e especificidades de cada uma delas, e os limites do que seja intelectualmente aceitável; o fato da Psicologia tratar do mistério da mente não implica no afrouxamento de critérios do que seja aceitável para o seu desenvolvimento enquanto ciência.
Na ciência, a única verdade é o método. Os resultados de sua aplicação são verdades transitórias, onde as incongruências dos fatos observados, por um lado não são descartadas, e por outro lado não descartam suas teorias obrigatoriamente: elas convivem, e dependem de um contexto onde esse proceder faça sentido. Para um cientista,
[…] a ideia de pôr de lado certas dificuldades (tal como a da órbita do planeta Mercúrio), na esperança de que sejam obstáculos transitórios, apresenta-se como estratégia ilegítima visando a eludir a falsificação. Contudo, se se leva em conta o contexto, pode-se muito bem afirmar que é racional agir desse modo, ao menos por certo lapso de tempo – caso contrário a ciência seria inviável. Existem sempre experiências ou observações que não são postas de lado [não são descartadas; permanecem] à espera de melhores dias (SOKAL, 1999, p. 75).
Tal paradoxo proporcionado pela ciência, parece agir de forma distinta entre diferentes pessoas. Alguns não percebem que ao adotar o caminho da “explicação a todo custo”, como forma de estabelecer uma verdade pseudocientífica (toda verdade é pseudocientífica, aqui se quer referir justamente ao mal-uso da ciência), estão na verdade lutando contra o mistério, criando um afastamento em relação à realidade mais imediata, que carrega consigo esse “cruel mistério difícil de aguentar”. Muitos preferem uma boa teoria, limpinha e esteticamente aceitável. Refere-se aqui a grande parte dos leigos em ciência, mas também se poderia aludir aos homens de ciência que buscam “uma teoria de tudo”, “uma equação elegante pela simplicidade”. Quem garante que a natureza é explicável e simples, ou mesmo equacionável? Estes não tiveram a devida atenção em observar os mestres inauguradores do método, e seu cuidado e esforço em aguentar a dúvida, amiga da reflexão. A dúvida nos aproxima da natureza e do real.
A atração para longe da dúvida, e da natureza, acaba por conduzir a soluções que estejam à mão, como numa reação com o propósito de passar ao largo dos questionamentos, da ação da cultura ou do psíquico, na formulação do conceito e da teoria. O médico e filósofo suíço Paracelso, nascido em 1493, é apresentado por JUNG (2011e, OC XV) como possuidor de espírito independente e perquiridor, orgulhoso, guerreiro e provocativo; nessa apresentação, Jung esclarece uma das maneiras como o arquétipo atua na cultura para reintroduzir imagens primitivas preenchedoras das lacunas (os abismos de dúvidas), principalmente em épocas de crise.
O mais alto princípio cosmogônico, seu [de Paracelso] “demiurgo” gnóstico, era o Yliaster ou Hyliaster, uma composição híbrida de novas palavras, ou seja, de hyle (matéria) e astrum (astro). Poder-se-ia traduzir este conceito como “matéria cósmica” […] uma concepção da matéria primitiva e da força original [energia]. É possível que a formação greco-latina não signifique mais do que uma expressão estilística atualizada, um pequeno invólucro cultural para uma ideia primitiva, a qual também já impressionara os pré-socráticos, sem que Paracelso necessariamente a tivesse herdado deles. Estas imagens primitivas pertencem, na verdade, à humanidade em geral e podem reaparecer em qualquer cabeça de modo “autóctone”, independentes do tempo e do espaço. Para seu renascimento, necessitam apenas de circunstâncias propícias. O momento mais oportuno para isso é sempre quando uma visão do mundo desmorona e arrasta consigo todas aquelas formas e estruturas que outrora valiam como resposta definitiva para todos os grandes enigmas da vida e do mundo. Isto, aliás, corresponde inteiramente à regra psicológica. Quando todos os deuses desenraizados se recolhem para cair sobre o homem […], e quando uma religião que glorifica o espírito começa a desaparecer, então surgirá em seu lugar, bem no fundo da alma, uma imagem primitiva da matéria criadora. (JUNG, 2011e, OC XV, §12)
As crises, o desmoronar das visões de mundo, quem sabe próprias ao instinto questionador, parecem não dar trégua desde antes de Paracelso até os dias de hoje, o que torna este parágrafo referido, atual em todos os tempos.
Esta compulsão explicativa que se afasta do real e da ciência em si, tornou-se tendência e moda em certos meios. Não apenas como abuso da ciência, mas igualmente como abuso do intelecto mesmo. Não é sem motivos que o termo “pós verdade” (post-truth) foi escolhido como “a palavra do ano 2016” pelos editores do Dicionário Oxford, que devidamente o introduziu como verbete20. Pós verdade é designativo de, ou referente a, circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais. Também se relaciona com o termo “fake news”, ou com o fato de que “qualquer afirmação repetida muitas vezes ganha força de verdade”.
O termo pós verdade teria sido usado pela primeira vez pelo jornalista Steve Tsich em 1992 ao falar sobre a primeira Guerra do Golfo, lamentando que “nós, como povo livre [da América], decidimos livremente que queremos viver em uma espécie de mundo da pós- verdade”, ou seja, um mundo no qual a verdade não é mais tão importante ou relevante. Tanto o fato em si como a capacidade intelectual estão em cheque. Com certeza isto vem a calhar com a tendência de afastamento entre consciência e natureza, ou o real. Ao aderir ao que é lançado como ideia, e sem um crivo do pensamento racional, isto é, sem o uso da capacidade intelectual para aferir valor às informações e dados, qualquer afirmação pode ser investida da qualidade de fato.
Vale ressaltar que não se quer referir aqui àquelas verdades subjetivas e carregadas de valor, como, por exemplo, quando alguém afirma que “meu pai, minha mãe, é um monstro”. Para essa pessoa os familiares realmente o são, essa é sua verdade psíquica subjetiva, independente se seus parentes tenham patas ou focinhos, o que usualmente não é o caso. Sabemos que quase certamente não o são, e podemos aferir nessa afirmação de monstro, uma analogia que pode ter um alcance que aos poucos se revelará (ou não) eventualmente ao longo do processo analítico.
A capacidade da alma em criar sua própria realidade está sempre presente; JUNG afirma que “A psique cria a realidade todos os dias” (JUNG, 2011j, OC VI, §73). A capacidade criativa, nos momentos de perda dos referenciais, nas épocas de mudança, pode dar lugar à invasão das imagens primitivas, e uma dificuldade de relacionamento com estas imagens de forma criativa, como referido acima em Jung acerca de Paracelso (JUNG, 2011e, OC XV, §12). Para que não se diga que as analogias não são úteis, é como se houvesse nesses casos uma similaridade com o que ocorre com as infecções por doenças oportunistas. Estamos sempre expostos a todo tipo de bactérias, e o organismo saudável é capaz de fazer frente a essa exposição com suas defesas naturais, mas em períodos de rebaixamento da eficiência dos sistemas imunológicos, uma ou outra dessas bactérias ou vírus acaba por produzir sua sintomatologia. As condições sempre estiveram presentes, latentes, não adquirimos necessariamente algo, apenas as defesas baixaram a guarda e permitiram a manifestação.
Igualmente se pode encarar a referência a Paracelso – este foi um influente pensador, mas o que ocorre em relação a ele não é privilégio ou caso isolado. Jung faz dele exemplo para o caso geral, é “regra psicológica” nas suas palavras. O arquétipo estará sempre presente, e sua invasão autóctone tomará lugar quando as condições (oportunidade) se apresentarem, como numa época de questionamento das visões de mundo. A constelação do mundo arquetípico tem suas finalidades que precisam ser descobertas a partir de uma relação mais consciente com este, a questão que se coloca é a atuação deste mundo sem questionamentos. Hoje em dia com as facilidades da comunicação e a tendência ao relaxamento dos critérios de “verdade”, que vão ao nível do questionamento dos métodos do acesso à realidade, a possibilidade da inconsciência, da invasão do arquétipo, fica aumentada. É como se estivéssemos, o mundo inteiro, viajando num só ônibus com várias pessoas gripadas dentro dele. Não há o que fazer além de procurar manter as imunidades em prontidão, e as janelas abertas.
Na produção de pensamento, isso significa aguçar a crítica, revisar origens de informações, investigar a propriedade (se são apropriadas) das afirmações, e mesmo adentrar no mérito das diferentes disciplinas que envolvem uma determinada discussão ou analogia, ao mesmo tempo que manter a mente aberta e arejada. Períodos de mudança (crise, transformação) seriam então propícios justamente a maiores reservas quanto às próprias mudanças radicais. É contraditório que se fale aqui que seja preciso resistir à mudança. Como seria então possível chegar ao novo, exercer a criatividade, quem sabe a maior conquista humana? A resposta quem sabe seja uma ótima interpretação da frase “opus contra naturam”. O cuidado meticuloso no desenvolvimento da obra, das ideias, frente a atuação natural do arquétipo e do mítico.
Na obra de SOKAL encontra-se uma passagem que guarda evidente similaridade com as afirmações de JUNG ilustradas com o caso de Paracelso. A preocupação do físico teórico SOKAL, juntamente ao físico e filósofo da ciência BRICMONT, é com o uso abusivo de analogias infundadas, a apropriação de terminologias, a deturpação dos princípios desenvolvidos nas ciências matemáticas e físicas, pelas escolas de pensamento que ele designa como “pós-modernas”.
O que virá após o pós-modernismo [intelectual]? […] Uma possibilidade é uma reação que conduza a alguma forma de dogmatismo, misticismo (por exemplo, Nova Era [New-Age]) ou fundamentalismo religioso. Isso poderia parecer pouco provável, pelo menos em círculos acadêmicos, mas a perda da razão foi suficientemente radical para pavimentar o caminho para um irracionalismo mais extremado. Nesse caso a atividade intelectual iria de mal a pior. […] Nossas esperanças, contudo, vão em outra direção: o surgimento de uma cultura intelectual que seja racionalista mas não dogmática, científica mas não cientificista, receptiva a ideias e argumentos mas não frívola, politicamente progressista mas não sectária. (SOKAL, 1999, p. 228 – grifos meus)
A similaridade com o princípio psicológico ilustrado com Paracelso é mais evidente, pois essas preocupações referidas por parte de SOKAL, vêm logo a seguir de sua contextualização histórica num período de revolução de ideias e questionamentos que “remontam ao início dos anos 1960: às filosofias empiricistas da ciência (Kuhn), críticas às filosofias humanistas da história (Foucault), desilusão com os grandes projetos de transformação política” (SOKAL, 1999, p. 227). Ou seja, questionamentos de uma visão de mundo, que desmorona ao menos para alguns, que falam em mudanças de paradigma, mas quase sempre de maneira vaga. O próprio SOKAL refere-se ao fato dessa tendência às mudanças como um “vago Zeitgeist” (vago espírito de época). Sokal tece suas afirmações fundado nas suas observações das coisas, nas dificuldades crescentes na lida com o meio acadêmico, dentro de uma tendência que se impõe. Não faz referência a nenhuma teoria psicológica (afora uma crítica a Lacan); é possível ter relativa certeza que esse autor desconhece a obra de Jung. Seu livro é recheado de referências a uma multiplicidade de pensadores de diferentes disciplinas, mas não da Psicologia Analítica – o que dá um valor especial à coincidência entre os termos utilizados por ele com aqueles que Jung usa na passagem citada acerca de Paracelso.
A preocupação original de SOKAL e seu colega BRICMONT, é com um movimento denominado por eles de pós-modernismo da filosofia (do pensamento em geral) que abusa de termos e ideias, sem cuidado com a articulação do pensamento, e que se fundamentam em propostas vagas como “mudanças de paradigmas” dentro da própria ciência. Preocupados com a popularização desse pós-modernismo intelectual, e as possíveis dificuldades decorrentes dele, que os dois autores preveem, SOKAL decide publicar um artigo contendo esses mesmos abusos e liberalidades intelectuais, de forma deliberadamente recheada das inconsistências as quais ele pretende de fato criticar. Esse artigo, na verdade uma paródia (releitura cômica com ironia e deboche), é submetida à revista americana Social Text, com o título “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, e publicado em 1996. Em posterior comentário do próprio autor, esclarece ele que:
[o artigo] está eivado de absurdos e ilogismos flagrantes. Ademais, ele defende uma forma extrema de relativismo cognitivo: depois de ridicularizar o “dogma” de que “existe um mundo exterior, cujas propriedades são independentes de qualquer indivíduo e mesmo da humanidade como um todo”, proclama categoricamente que “a realidade física, não menos que a realidade social, é no fundo uma construção social e linguística”. Por meio de uma série de raciocínios de uma lógica espantosa, o artigo chega à conclusão de que “o π de Euclides e o G de Newton, antigamente imaginados como constantes e universais, são agora entendidos em sua inelutável historicidade”. (SOKAL. 1999, p. 16).
Após aceito o artigo pela revista, e pior ainda, publicado em edição especial, o autor revela a artimanha. Revelada a paródia, recebe uma enxurrada de críticas e comentários, tanto a favor como contra a iniciativa. Em uma das críticas, um aluno chega a comparar a situação com a fábula do Rei Nu – o monarca que sai vestido com roupas que “os idiotas não podem ver”, ele mesmo e todos em volta fazem de contas que o rei estaria de fato vestido. Onde mora a farsa? Com a reação à publicação, outros argumentos e novas citações foram reunidas por SOKAL, que esmiúça de maneira agora crítica, cada uma das partes do próprio artigo, e insere novas críticas, as quais com rigor acadêmico expõem as incongruências embutidas na liberalidade excessiva, que se torna perniciosa, de certas articulações do pensar demasiado liberal. O resultado é o que consta publicado no volume que é aqui referido por SOKAL (1999).
A publicação, na forma de uma paródia não percebida pelos editores, lembra o caso citado no capítulo I da presente monografia (p. 17-18), igualmente uma paródia de “primeiro de abril” publicado com seriedade de novidade tecnológica, que pretendia anunciar um toca- discos inovador. Com certeza as proporções entre as duas paródias são muitas ordens de grandeza distintas, tanto da revista quanto da publicação, quanto da pretensão do autor de cada uma, mas a comparação com a fábula do rei nu cabe nas duas, e evidencia a leviandade com que se trata a “coisa intelectual” em certas situações.
Na série de exercícios no Tai Chi Chuan do estilo Chen, executa-se um que é denominado “chacoalhar o corpo”. Costuma ser usado com frequência ao final do aquecimento e nos intervalos entre séries de exercícios. Consiste em balançar o corpo, chutando o ar de forma relaxada e cruzando os pés à frente, ao mesmo tempo que se joga os braços para frente, que terminam por subir de maneira relaxada ao final do movimento. Seu propósito é de aliviar as tensões acumuladas indevidamente durante os exercícios anteriores, ao mesmo tempo que regulariza o estado geral do aquecimento do corpo, movimenta e abre espaços nas articulações, etc.
Certo dia, ao fazer este exercício um aluno pergunta ao professor: “por que esse movimento, que serve para descarregar as energias, é feito com subida das mãos, enquanto em outras situações, na Umbanda por exemplo, seria executado em movimentos de descida das mãos?”.
É possível que em geral se entenda o movimento de “descarrego” como manipulação de energia; ao menos esse é o caso do entendimento deste aluno. Aqui não se pretende aprofundar a questão. A Umbanda é referida apenas como exemplo; há um entendimento genérico para descarrego, independente de credo, não se reivindica aqui acerto ou erro do uso desse termo na religião ou nas crenças que o usam.
Não se usa dar muitas explicações no Tai Chi, mas o professor responde que seria uma forma de relaxar, “desprogramar” os movimentos que acabaram de se realizar, remover as tensões nos locais do corpo onde não foi possível obter relaxamento adequado, enfim, soltar os tecidos e, sim, soltar a energia. O professor toma cuidado em confessar que não conhece exatamente o que representa energia na Umbanda, e o que seja exatamente tal movimento de mãos na Umbanda ou outros meios (o movimento de descarrego).
A situação acima é real. O aluno voltou com esta mesma questão, em várias outras oportunidades, o que mostra que as explicações não surtiram efeito. Nestes casos, a insistência na prática e a auto-observação do aluno podem trazer algum progresso, com o tempo, e o aluno tende a atingir um novo grau de percepção, um novo entendimento por meio da percepção. Este mesmo aluno é praticante de uma técnica terapêutica alternativa natural21, inclusive ele auxilia em demonstrações coletivas dessa prática. Tal prática, inclui posturas corporais com autoimposição das mãos em posições bem específicas, com duração de 30 segundos cada uma. O aluno convida então o professor de Tai Chi para uma conversa com a professora terapeuta, e solicita que o professor examine e comente as posturas, com objetivo de “conferir se estão corretas do ponto de vista da energia”. Pode-se chamar a uma situação dessas de saia justa.
Estamos na situação de comparar a energia no Tai Chi, na Umbanda e na terapia alternativa. É uma situação de interdisciplinaridade. Sem dúvida ocorre compartilhamento de terminologia. Há um caráter investigativo nas perguntas feitas pelo aluno, que é aplicado e diligente, e é evidente que existe, para esse aluno, uma ideia de energia que ele busca transferir de uma atividade a outra, de um campo a outro entre o Tai Chi, a Umbanda, a técnica terapêutica, buscando um entendimento que unifique tudo. O aluno identifica tudo como a mesma coisa, mesma ideia de energia. E isto é forte indício de que ele entende energia como coisa (um fluxo de algo que se desloca22), não um conceito como na Física. Na Física, a energia não carrega qualidades da coisa que opera, justamente por ser um conceito “[…] que não existe objetivamente no fenômeno em si” (JUNG, 2010, OC VIII/1 §26). No entanto, o aluno, alheio a isso, busca respaldo junto a seu professor de Tai Chi, para que, a partir do suposto conhecimento, ajude que estas diferentes aplicações façam um único sentido dentro dele. A necessidade de um entendimento unificador age imperiosa.
As explicações do professor de Tai Chi são infrutíferas do ponto de vista do conhecimento, pois ao empregar a ideia de energia com caráter de algo, um fluido espiritual ou vital, matéria condutora de propriedades boas e ruins, este algo poderia se transferir de uma situação à outra, mas apenas na concepção do aluno, seja esta qual for. Tal noção de um fluido vital que possa ser manipulado entre as diferentes técnicas, mesmo que oriunda a partir de pressupostos de diversas culturas, credos e fundamentos, permite que se busque “manipular a energia”, pois nessa noção geral, “energia é coisa”. Note-se que não é pretensão aqui, dizer se a definição de energia como coisa é certa ou errada. É correto afirmar que a ideia original de energia é muito ampla. Além disso, diferentes métodos ou escolas de pensamento podem estipular suas afirmações de verdades, de forma independente. A palavra energia pode servir bem a seus propósitos. Além disso, uma afirmação de verdade (como um dogma) normalmente não pode ser contestado de um ponto de vista lógico (quer dizer, a lógica não contesta o dogma). A ideia de uma energia vital como fluido é bem antiga e não se pretende entrar nessa questão, muito menos questionar o método de cura.
A solução prática para o professor de Tai Chi, nesse caso da saia justa, é declarar que não conhece quase nada de Umbanda e das terapias de imposição de mãos, em especial no aspecto da manipulação de energia. Mas ainda há algo a fazer. Como a autoimposição de mãos exige movimentos e posicionamento sustentado de braços e mãos, não é isento de uma correção da postura do corpo, a partir do ponto de vista do Tai Chi Chuan: verticalizar a coluna, relaxar ombros, afundar cotovelos estendendo o relaxamento ao longo dos braços até os dedos. Arquear braços de modo a formar um “pan” adequado, afundando e relaxando igualmente o peito.
Dessa forma a interdisciplinaridade está sendo produtiva, pois Tai Chi é também correção postural, proporciona sim um equilíbrio do corpo, do ponto de vista energético. O uso correto do corpo, numa postura energeticamente favorável, vai preservar os sistemas vitais das pessoas em qualquer situação. Fica por resolver a questão conceitual acerca do que seria energia nessas duas diferentes abordagens, a terapêutica e o Tai Chi Chuan. Todavia, o Tai Chi não se funda numa explicação, e sim numa prática, a qual é igualmente terapêutica (notadamente profilática). No caso dessa saia justa, qualquer incursão filosófica ou teórica em busca de uma definição para energia seria desperdício de energia, sem contribuir para a situação que se apresentou.
Seria improdutivo abrir uma discussão teórica nesse caso prático descrito acima. Primeiramente o Tai Chi Chuan é uma prática, não uma explicação, embora haja muita teoria escrita. Quando se usa a fala durante a aula, é de uma forma mais descritiva, e espera-se que o praticante evolua baseado na percepção de si mesmo, o que deve fazer sentido em si, e igualmente nos resultados para a saúde que também requerem percepção de si. Além disso uma discussão teórica acerca de energia seria improdutiva, quando fica claro que as diferentes pessoas partem de pressupostos tão distintos. Talvez para ele, seja possível carregar a energia com as mãos, ou ao menos afastar essa energia por exemplo com os movimentos de descarrego, como ele pergunta. E caso seja assim mesmo, tanto na Umbanda como em alguma terapia de imposição de mãos, não há nada de inerentemente errado, desde que haja coerência nos pressupostos.
O erro consiste em carrear uma palavra, energia, de um contexto para outro, sem respeito ao seu verdadeiro significado em cada um dos contextos. É o mesmo que ocorre numa tradução, e os italianos bem dizem: “traduttori traditori”, os tradutores são traidores! É um ditado conhecido por muitos; veja-se o exemplo nessa monografia, onde um mesmo parágrafo nas obras de referência é usado aos pedaços juntando duas edições com diferentes traduções, feitas pela mesma editora, na busca de ajuste entre significados no original e sua versão (vide nota de rodapé no 11 p. 49).
Na Física a palavra energia remete a conceito, não a coisa. O que se percebe na experiência e ganha concretude no ato são as diversas manifestações da matéria e suas transformações. São as forças mecânicas, tensões elétricas, magnetismo, reações químicas e etc.; isto sim pode ser apalpado com as mãos, percebido com os sentidos de alguma maneira, ou de outra maneira por meio de instrumentos. A energia como conceito ajuda a entender e equacionar tais transformações, manifestadas em ato, ou ainda em potencial. Para ser cuidadoso nesse aspecto conceitual de energia, é prudente tentar perceber se se poderia trocar o termo utilizado pelas pessoas em geral, por exemplo por “força”. JUNG diz: “Quando atualizada [em ato], a energia psíquica aparece nos fenômenos dinâmicos, específicos da alma, tais como instintos, desejos, vontade, afeto, atenção, rendimento do trabalho etc., que são justamente forças psíquicas” (JUNG, 2010, OC VIII/1, §26).
Certos aspectos da matéria são de apreensão mais direta pelos sentidos, enquanto outros aspectos são menos evidentes. Isso com certeza causa confusão para quem não está familiarizado. Eletricidade é invisível e inodora, embora seja tão material quanto um bloco de pedra. Pode ser comparada a um fluido no encanamento, quando ela percorre um fio. Ao acendemos a luz ou quando cai um raio, vemos bem os efeitos da eletricidade. Pagamos a conta de energia elétrica, é difícil aceitar que estamos pagando por um conceito! O que o medidor de luz faz, é uma contabilidade da quantidade de eletricidade que passou pelo quadro de luz na entrada da casa, quantidade essa equivalente ao trabalho realizado pelos aparelhos dentro de casa. Igualmente o magnetismo, não vemos nada e não temos sensação táctil, daquilo que ocorre perto de um ímã, mas podemos perceber os efeitos na agulha da bússola que se move como resultado da interação das forças magnéticas.
Nas páginas anteriores, está sugerido que pode ser um erro carrear conceitos de energia da Física para outras disciplinas, sem delimitar qual conceito se pretende usar. Equivale a dizer, qual seria a base epistemológica que se vai carregar de uma disciplina a outra. Na Psicologia Analítica esse conceito foi apropriado adequadamente, fazendo herdar suas limitações e especificidades. Aqui a questão é quando uma disciplina avança sobre a outra. Toda ciência tem sua terminologia, e esta sempre vai carrear significados específicos. Para transitar de forma adequada entre as disciplinas é necessário compreender estes significados, onde começam e terminam suas semelhanças, fazer distinção adequada das situações e contextos.
Leve-se em conta que o método, em paralelo com a visão de mundo, influencia na construção de um conhecimento, e na construção da realidade em si, dentro das ciências, nas escolas místicas e nas conversas comuns de bar, e em todos demais lugares possíveis entre estes três. Ao querer fundamentar uma possível teoria, ideia simples ou nova visão de mundo, seria preciso se perguntar por onde se anda nesse terreno tão variado.
Importante sempre lembrar que não caberia o uso restrito da Física para energia, retroagir, limitando um conceito mais amplo, mesmo que não devidamente especificado como a ciência o pretende. Ainda mais, pelo fato de energia herdar um peso tão grande quanto o de maná, e daí o próprio arquétipo divino. Igualmente a noção de ciência, como ideia, e o que ela suscita no âmbito de cada um, herda uma promessa de amparo, aquilo que ela representa ao tomar o lugar dos deuses.
Quando alguém procura aplicar a ideia energia, agora apropriada pela ciência, este termo pode surgir, na mente de quem o usa, tingido com as qualidades divinas que a ciência em si é igualmente atribuída. A fé na ciência ocorre entre cientistas e leigos. Até certo temor da ciência há, por parte de religiosos receosos de algumas teorias, como na celeuma entre criacionistas e evolucionistas (hoje existe uma corrente criacionista defendida dentro da ciência). Haveria conciliação? JUNG não vê essa necessidade, conforme ele afirma na citação que inicia este capítulo “[…] é bom viver em um mundo ainda habitado por oréades, hamadríades e ninfas e deuses. Sempre foi assim e não há nada de errado nisso, mas quando vem a ciência, a brincadeira acaba” (JUNG, 2011h, SSC, p. 494). A conciliação estaria na sabedoria de delimitar adequadamente “quando a brincadeira acaba”?
Pode-se observar um esforço na tentativa de conciliar ciência e religião, matéria e espírito, colocados aqui em oposição, nas iniciativas de diversos autores. Essa oposição e tentativa de conciliação é observada na moda de pensamento abordada por SOKAL (1999), que o autor denominou “Nova Era”, ou pós-modernismo da filosofia, ou relativismo epistêmico (SOKAL, 1999, p. 9-14). Outros autores abordam com preocupação o uso demasiadamente descompromissado de terminologias e conceitos da ciência, como o filósofo da ciência Osvaldo PESSOA (2017); igualmente outros expressam sua preocupação com a “crescente quantidade de obras e materiais de divulgação que apresentam interpretações alternativas sobre a teoria quântica” (HILGER, 2009).
Ao caminhar na outra direção, e não raro com origem no meio científico, há quem contribui na proliferação desse pensamento pós-moderno, como Fritjoff Capra com O Tao da Física, e mais recentemente outros como Amit Goswami (A física da alma, entre outros). Estes autores lançaram termos antes restritos ao meio acadêmico da Física, em ideias de teor mais livre, fazendo associações com outras disciplinas como psicologia, religiões ou filosofias espirituais. Algumas vezes estas associações são vagas, ou apenas afirmações injustificadas. Mas ao partirem de pensadores com origem na academia, muitas pessoas, quem sabe desavisadas, tomam tais afirmativas por verdade científica, termo que, como já dissemos, é por si contraditório.
É possível notar igualmente uma certa tendência nestes autores (aqui denominados de pensamento liberal), de que seus arrazoados deságuam em conclusões de cunho espiritual e moral, agora pretensamente embasados pela ciência. Seria como a obtenção de uma unicidade geral: além da busca pela ciência, da teoria de tudo, da equação simples e elegante, agora a ciência pode igualmente voltar para o lugar de onde saiu – a religião, o espiritualismo e suas consequências morais, inclusive consequências para a ecologia, ou outro pensamento da moda.
Pode-se tecer três objeções a esse respeito.
Primeiramente, os arrazoados engendrados usualmente carecem de coerência e sustentação nas disciplinas científicas onde pretensamente buscam apoio. Em geral seus autores estão afastados da comunidade científica de onde saíram, de onde derivaram seus conceitos.
Segundo, mesmo que se possa provar que um determinado princípio espiritual ou moral é embasado por alguma teoria da Física, o que ocorre quando essa teoria estiver ultrapassada ou simplesmente descartada? Revoga-se a obrigatoriedade moral ou a verdade espiritual? Esse problema vem justamente do fato de que na ciência tudo pode ser questionado, e o será, uma vez que a ciência não tolera dogmas, o que lhe é premissa epistemológica basilar. Sem ignorar que há sim evolução na moral e nas religiões, e que não há por que novas descobertas nas ciências da natureza não influam nestas duas, mas a necessidade de um vínculo imediato esbarra na diferença da maneira como cada uma constrói suas realidades.
E terceiro, é bem provável que a maioria das afirmações de cunho espiritual e moral, ou mesmo ecológicas e sociais, sejam verdades sustentáveis pela via de outros caminhos muito mais próximos do alcance do pensar habitual (afora as afirmações metafísicas, que carecem de qualquer comprovação). Estas poderiam partir da Filosofia ou das próprias religiões, da ciência já consolidada, sem necessidade de apoio extra em setores da Física que ainda carecem de firmeza para si próprios. A senhora Física quando imbuída da magia explicativa, é qual um oráculo a dizer profecias. E se ela disse, então está dito. Coitada da Física e dos físicos. Quem sabe o mistério da ciência (em especial a física quântica) contribua para popularizar certas ideias? Mas o que será das boas ideias fundadas na areia mole?
É verdade que a ciência passou por um estresse enorme a partir do final do século XIX, por exemplo com as dúvidas de Planck acerca de suas próprias teorias. Como num certo “mal-estar na ciência”, outros cientistas a partir daí, tentaram se aprofundar em questões filosóficas, como Bohr. Isso pode ser muito positivo, como um movimento de retorno às origens. As ciências ditas exatas foram, ao longo dos séculos, se afastando da filosofia e das humanidades em geral, e ao longo desse afastamento não pouparam alfinetadas, renegando a origem, quem sabe num tipo de revolta contra o pai. Em um tempo não distante, havia uma cobrança sobre a Psicologia, de que “já seria hora de produzir suas previsões”, de objetivar o seu proceder para merecer enfim o status de ciência. Mas isso é apenas cientificismo.
Com a relatividade, o princípio da incerteza e a mecânica quântica, foi à Física que faltou um pouco de Filosofia onde obter embasamento. Em particular a questão do observador, na Física, precisa quem sabe de suporte da Filosofia e em particular da Psicologia (suporte aos cientistas e às teorias propriamente), para poderem dar conta da avalanche de questões que se colocam. Porém não se pode avançar se se abre mão da qualidade do intelecto em avalizar adequadamente as questões, e impor limites às próprias questões. A ciência aguenta a dúvida, esperando por melhores dias, mas parece que muitas pessoas, cientistas e outros, não aguentam, e vão aplacar suas necessidades prementes, mesmo às custas da razão e do intelecto. Cientistas são seres humanos. Caso as humanidades, e a Psicologia, abandonem seus princípios de coerência, quem vai ajudar as ciências exatas?
Em dois casos a seguir, se buscará ilustrar o exposto acima, procurando apontar para fragilidades em certos argumentos ou afirmações, pretensamente fundados na ciência, mas o fazendo de maneira incompleta ou incoerente. Com tais comentários não se pretende questionar o pensamento de autores ou suas obras. Pretende-se tão somente questionar, como um certo desleixo com a coerência do pensamento pode comprometer aquilo que seja a real criatividade dos autores, o que pode minar o todo da mensagem. Igualmente procura-se, que os leitores menos afeitos às ciências de onde os termos e conceitos são usados, possam medir adequadamente os efeitos de baixar a guarda de um certo rigor do pensamento. Nestas publicações, a criatividade dos autores é respeitável e inquestionável.
Antes de entrar nos casos, seria oportuno retomar um pouco a questão da formação de modelos, com uma citação ao físico americano John Wheeler, mencionado por outro Físico, o brasileiro João Bernardes, este igualmente afeito aos assuntos da Psicologia.
Penso em minha vida na Física como dividida em três períodos. No primeiro período […] trabalhei com a impressão de que Tudo são partículas […] Chamo meu segundo período de Tudo são campos […] Agora fui tomado por uma nova visão, a de que Tudo são informações. (John Wheeler citado em ROCHA FILHO, 2014, p. 97)
Este poderia ser um exemplo de como a busca de modelos, viáveis à descrição da natureza da matéria, assume diferentes formas, em quem o procura (na mente da pessoa que busca formar o modelo de descrição). Partículas, campos (de onda), informações, estes termos fazem parte de tentativas de modelar. A proposta de abordar a natureza objetiva com modelo fundado em “informação”, implica que a psique passe a estar associada a essa descrição, já que é na consciência do inconsciente que a informação ganha significado.
Ao adentrar mesmo que superficialmente nos temas acima, foi possível perceber que há neles um conceito subjacente, que seria a reflexão de Jung sobre Unus Mundus. É justamente um pensamento que ele herda a partir da alquimia, bem esta que toca tão de perto o que é místico. As reflexões de Jung sobre Paracelso, a identificação da época desse pensador, como da passagem de um período de grandes mudanças, de perda do chão, permite perguntar “qual é a perda de chão que vivemos hoje em dia?” Particularmente em relação ao Unus Mundus, uma pergunta me foi feita, da seguinte maneira: “Macrocosmo e microcosmo são tão diferentes? Me explica isso…”.
Evidentemente, não há uma necessidade lógica para tal afirmação, que “o microcosmo repete o macrocosmo”. Seria uma necessidade psicológica? E por que? A psique faz ligações entre mundo externo e mundo interno, isso pode ser visto como necessidade da psique; para ela as inter-relações são vitais, em especial a relação entre o eu e o todo. Quando a transição entre os modelos da Física para a matéria, antigos e novos, incluindo os métodos de modelagem, se fizeram necessários na ciência, ficou exposta a fragilidade do modelo na psique de equivalência entre o macro e o microcosmos: o alcance descritivo do modelo atômico considerado a partir de Rutherford (que sugere um sistema planetário – vide fig. 2) alcançou seu limite. Este é apenas um modelo para a física, mas talvez seja uma ótima representação para uma realidade interna humana.
A transição entre modelos, que a Física adotou por necessidade de uma representação adequada, é descrita da seguinte forma em OGURI ao abordar “A interpretação probabilística de Born” para o átomo:
As analogias, apesar de seu caráter não comprobatório, são frutíferas; a grande crise na Física, no final do século XIX, foi configurada a partir de tentativas para se estabelecerem analogias mais do que formais [i. é, fora do rigor formal] entre os fenômenos ondulatórios, acústicos e eletromagnéticos. Dessa crise surgiram as duas teorias fundamentais da Física Moderna: a Teoria da Relatividade Restrita e a Mecânica Quântica, que exigiram a revisão e a modificação de vários conceitos geométricos e dinâmicos da natureza, criados e aceitos até então pelo homem.
A utilização de analogias baseadas na Mecânica Clássica constituiu um procedimento tão forte [poderoso e eficaz] durante a construção da teoria quântica, mascarando várias questões de cunho imperativo, que muitas controvérsias assim originadas, perduram até os dias de hoje.
O resultado desses procedimentos é que tanto a Teoria da Relatividade Restrita quanto a Mecânica Quântica possuem estruturas formais condicionadas pela Mecânica Clássica, através de correspondências estabelecidas para a forma e a expressão de seus conceitos, grandezas e leis (OGURI, 2006, p. 451-452).
A partir daí esse autor tece considerações acerca da Teoria de Probabilidades e a Estatística, como ciências matemáticas, e sobre suas aplicações na Física. Uma diferença a salientar é o fato da probabilidade, no mundo de nossas dimensões, ser aplicado para um grande número de objetos, que forma uma unidade complexa, e onde cada objeto discreto é corretamente descrito dentro das regras deterministas e causais, e a estatística é ferramenta de abordagem da complexidade devido ao número de objetos. Na Mecânica Quântica, o interesse é por saber a probabilidade de encontrar um único objeto (a partícula), sob o princípio da indeterminação. Conclui ele:
Enquanto as teorias clássicas da Mecânica de Newton e do Eletromagnetismo de Maxwell descrevem os fenômenos de maneira causal e determinística, a Mecânica Quântica Ondulatória de Schrödinger e de Born descreve os fenômenos de modo causal e não determinístico (OGURI, 2006, p.451).
Um fato importante, JUNG está atento acerca dos modelos de representação:
É preciso dar-nos sempre conta de que aquilo que entendemos por “arquétipos” é, em si, irrepresentável, mas produz efeitos que tornam possíveis certas visualizações, isto é, as representações arquetípicas. Encontramos situação semelhante na Física, onde as partes mínimas são em si irrepresentáveis, mas produzem efeitos de cuja natureza é possível deduzir um certo modelo. A representação arquetípica, o chamado tema ou mitologema, é uma construção deste gênero (JUNG, 2011a, OC VIII/2, §417).
Ao vasculhar a matéria até os confins, e muito além, do que seja nem de longe parecido com algo que nosso senso suponha, nas dimensões materiais mais extremas (o infinitamente pequeno ou infinitamente grande), onde as analogias traem a imaginação, a matéria como que foge por entre os dedos do pesquisador. Simplesmente por que a matéria não pode mais ser descrita dentro de modelos onde qualquer analogia com algo familiar seja ainda válida, sequer como auxílio. Aqui a eventual inteireza do cosmo fica sob suspeita, e abala o conforto organizador de um Unus Mundus.
A realidade bruta carece de realidade psíquica no ser, esta é sua representação, indistintamente de ser cientista ou não. Pretender olhar a natureza de forma assim crua e direta parece trazer o efeito colateral de abalar as defesas naturais da psique, e esta precisa se refazer, como, por exemplo, buscar equilíbrio em novos, ou velhos mitos. É um princípio psicológico, como afirma Jung ao descrever Paracelso.
Observar o mundo e como ele funciona é observar os efeitos, estes são o resultado de um funcionamento, são sua eficácia. A observação dos efeitos, que é a empiria em si, suscita no espírito a necessidade de uma representação, e ao chegar a esta representação de uma forma sistematizada, dentro de um certo padrão, podemos classificar isso de modelo científico. É claro que o modelo científico não está isento do mito, nem tampouco seu idealizador está. É aqui que ciência e mito se misturam, numa mistura humanamente saudável se mantida nos limites, ou seja, deve haver um esforço para delimitar: “quando vem a ciência, a brincadeira acaba” (JUNG, 2011h, SSC, p. 494). O fim da brincadeira não é o fim do afeto verdadeiro para quem pratica ciência, muito pelo contrário. A aventura do intelecto pode ser ainda mais perigosa nesse jogo com a razão, carreando o prazer na investigação e o gozo pela descoberta. Não fosse isso, o que moveria o cientista?
O envolvimento continua sendo palavra de ordem, como fica transparente na citação a John Wheeler logo acima (p. 124), que usa a expressão “fui tomado”, para se referir ao modelo (informação como modelo). Denota no cientista um envolvimento de alma e espírito, que ao conduzir o pensamento objetivo e frio, confere calor e afeto. Muito apropriadamente, aliás condizente com GLEISER, este não nos deixa esquecer que os pensadores do campo da física são movidos pelas suas paixões; o afeto é o que toma a pessoa. Igualmente foi sugerido que “os dois tipos de pensamento” propostos por JUNG, resumidamente o pensamento dirigido e o livre sonhar (JUNG, 2011i, OC V, §17-19), estão presentes e colaboram um com o outro. Agora o subjetivo não apenas impulsiona para a investigação, ele torna-se parte dessa investigação – objetivo e subjetivo deixam de ser contrários absolutos; desse jogo de contrários resulta colaboração para o crescimento.
Ainda ROCHA FILHO em outra atribuição a John Wheeler, afirma que “o maior mistério da natureza é a consciência” (idem), completando que tal fato seria trivial para os psicólogos, afeitos à lida com a consciência. Pode-se ajuntar que os psicólogos estão afeitos a um modelo de psique e um método de trabalho onde o sujeito e o objeto são parte de um mesmo campo de estudo; e que também na prática clínica e na teoria, os psicólogos têm forçosamente que considerar esta realidade de maneira permanente, na lida com as transferências. Parece que as novas descobertas em particular na Física moderna, têm colocado os físicos face a estas mesmas questões. Diante das novas dificuldades para a compreensão do mundo material, os físicos se colocam dúvidas que são mais afeitas às humanidades.
Como a Psicologia poderia contribuir com a Física para alcançar estes novos entendimentos? Lembremos que JUNG considera a Física como uma espécie de oposto complementar à Psicologia, ao tomar emprestadas as palavras de C. A Meier: “Entre a Física e a Psicologia há inclusive uma autêntica e genuína relação de complementaridade” (JUNG, 2011i, OC V, §440).
Com certeza a Psicologia tem a contribuir, assim como a Filosofia, com as questões sobre a formação do pensamento, e do conhecimento. O físico brasileiro José Carlos Valladão de Mattos adentra por essa fronteira que transborda da Física para a Psicologia, e no caso desse cientista, também para a espiritualidade e a religião. Em um de seus livros sobre o assunto, o autor desmente a matéria como realidade final, havendo outra que se impõe que é de caráter eminentemente não material. MATTOS usa termos da Física Quântica para descrever que “o que pensamos ser matéria” seria na verdade um vazio, um nada que é tornado material pela ação da vontade. Afirma ele que, aquilo que percebemos como matéria é, na verdade, igual à matéria de nossos sonhos oníricos. Isto seria o mesmo que dizer que a realidade objetiva é de fato psíquica, inclusive a existência da matéria em si. Segundo esse autor, o que experimentamos como sendo material, seria realidade ilusória e parte de um processo:
[…]destinado a nos habilitar a participar do mundo espiritual. Para alcançar este mundo, teremos de superar os sentimentos gerados por nossas baixas energias existenciais: ódio, egoísmo extremado, ganância, cupidez exagerada, orgulho, enorme individualidade, inveja, ciúmes, vingança, etc. Teremos de aprender a vivenciar e consolidar nosso intervalo de energias existenciais àquelas que são seus opostos: amor a si mesmo e ao seu próximo, solidariedade, humildade, perdão das ofensas, compaixão, compartilhamento, veracidade, honestidade, justiça, etc. (MATTOS, 2015, p. 141-142)
Evidentemente há um forte cunho espiritual e moral nas afirmações de MATTOS. Não é ele o único cientista a se lançar nestas questões a partir dos estudos da matéria. Este fenômeno suscita o aparecimento, até mesmo, do termo “espiritualidade quântica” usado pelo filósofo da ciência Osvaldo Pessoa Jr, para denotar esse modo de pensar. MATTOS não é o único pensador egresso das fileiras da física a procurar uma unificação entre matéria e espírito, ele mesmo cita outros como R. C. Henry, A. Goswami, R. Reed, J. Jeans (MATTOS, 2015, p. 47).
O caminho que leva MATTOS a adentrar nesse campo da mente e do espírito, ao longo da obra, começa pela noção de matéria e vazio, colocados em oposição, e pela noção de átomo e forma, como constituintes da matéria. Ao longo da leitura de MATTOS (2015) logo se nota que o autor faz do assunto uma busca de vida; vários pontos entremeados de termos técnicos estão cheios de emoção e decerto se percebe a alegria da descoberta, enquanto o autor desenvolve o assunto que gira em torno do vazio, entre a matéria (ou sua ausência) e o espírito. Segundo FRANZ, é por esse tipo de situação que “Jung supôs que os dois polos – a matéria e o espírito – desembocavam em um, no sentido da existência de um Unus Mundus, no qual matéria e espírito, exterior e interior não estão separados” (FRANZ, 1992, p.104). Isso sugere ser mesmo fato natural que o físico adentre no espírito e na alma e o psicólogo na Física.
A questão filosófica de um mundo dividido entre matéria e vazio, e provido de qualidades morais e espirituais, pode ser constatada na filosofia da Grécia antiga, numa tentativa de opção a uma concepção mitopoética da natureza. Nesta Filosofia emergente, é possível recuperar ideias de substâncias primevas como os constituintes do universo e de nosso mundo, as bases para o uso da razão como linha guia para essa visão, expressos em postulados acerca de parcelas da realidade que escapariam à percepção dos sentidos, enfim, a construção de uma cosmovisão científica da Natureza (do grego Physis para “natureza”; Cosmos para “um todo coerente ou organizado”). Nos parágrafos seguintes, as informações da história da Filosofia da natureza são citações encontradas em CARUSO (2009, p. 1-22), e apresentadas de maneira bem resumida, com objetivo de mostrar que este assunto parece ser de pauta permanente, ao longo da história do pensamento.
Em Aristóteles encontra-se o representante maior na busca do estabelecimento de relações causais racionais, a busca por um único princípio norteador, de uma matéria primordial.
Tales afirma que “Todas as coisas têm origem numa simples realidade substancial, a água (ou princípio úmido) que é o alimento de todas as coisas ao passar por variadíssimas transformações: parte dela é exalada no ar, a parte mais sutil é exalada do ar em éter, e se compacta no lodo para virar terra”.
Anaximandro de Mileto postularia “O apeiron, o indefinido, de natureza divina, que não é água nem outro elemento perceptível pelos sentidos (fogo, ar, terra), espacialmente infinito, é a substância primeva, original, eterna e indestrutível, fruto apenas da mente humana”. Para Anaximandro, o eterno movimento do apeiron, gera diferentes formas e corpos que dão lugar a conflitos sem fim, os opostos, e seria uma injustiça qualquer predominância, o que acarreta a busca da reparação, em movimento eterno na busca do equilíbrio.
A ideia de um equilíbrio em eterna mutação vem também de Heráclito, quem primeiro nos brindou com a imagem de que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. Heráclito reconhece o princípio dos opostos que se transformam, em harmonia, como está atribuído a ele, por exemplo, em “Aquilo que se obsta conduz à concordância, e das tendências contrárias provêm a mais bela harmonia” (BERGE, 1969, p. 239), e também “Não compreendem como o discorde concorda consigo mesmo: harmonia, reciprocamente tensa, como a do arco e da lira” (idem, p. 259). Portanto a harmonia dos contrários não é sem tensão, que é força. Jung atribui a este filósofo a descoberta deste princípio, a enantiodromia, como lei psicológica:
O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Dou-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo se reverte em seu contrário. […] A cultura racional dirige-se necessariamente para seu contrário, ou seja, para o aniquilamento irracional da cultura. Não devemos nos identificar com a própria razão, pois o homem não é apenas racional, não pode e nunca vai sê-lo. Todos os mestres da cultura deveriam ficar cientes disso. O irracional não pode e não deve ser extirpado. Os deuses não podem e não devem morrer. (JUNG, 2011g, OC VII/1, §111)
Para Heráclito, o fogo (Pyr) não é exatamente um elemento, mas um princípio cosmogônico e transformador, assim como unificador, e que provê harmonia. BERGE retoma a ilustração do tropismo solar de inverno e verão, para diferenciar esse movimento conforme visto em Heráclito, para quem “a ideia do fogo está relacionada com a do cosmos: ambos são tidos por eternos e pela sua eterna oposição dão existência concreta aos seres concretos” (BERGE, 1969, p. 145). JUNG igualmente recorre ao movimento solar circadiano para ilustrar as fases da vida humana, de aumento e diminuição de força dentro de um princípio de enantiodromia (JUNG, 2011g, OC VII/1, §114).
Parmênides destoa dos pensadores gregos que o precedem, ao afirmar o monismo, o conceito de Uno; afirma ele que os objetos são reais e imutáveis, sendo possível pensar apenas em uma coisa que é. Na sua premissa, o vazio não tem realidade ou sentido, e, portanto, não há espaço para a transformação; passado e futuro são desprovidos de significado, conduzindo a um eterno presente e a negação das noções de tempo e movimento.
Simplício que em princípio afirma o monismo, vai além desse com o pluralismo, onde os princípios fundamentais são o Amor e a Discórdia; com a ação deste, os quatro elementos se misturam e separam continuamente.
Anaxágoras substitui os princípios anteriores pelo Espírito (Nous) que separa os elementos antes misturados e coloca ordem. Para ele, todas substâncias poderiam ser divididas em partes menores, indefinidamente. Anaxágoras afirma que há um agente ou “força” que controla o movimento, e que é independente da matéria, ideia retomada mais tarde por Descartes postulando a matéria e a força como conceitos independentes.
Bem mais tarde, Newton vai associar esses conceitos ao definir a massa, força e movimento incluindo a aceleração, como dependentes, na sua segunda lei. Newton ainda lança mão da infinitude do espaço vazio e dos corpos, que seria justificado pela harmonia estável observada no cosmo, pois se fosse finito o espaço, os corpos se atrairiam formando uma única massa. Assim como o espaço, Newton assume um tempo independente e infinito.
Em Demócrito o conceito de átomos e vazio ganha vez, para ele tudo é composto de átomos e vazio, equivalentes a cheio e não cheio, ser e não ser, sólido e não denso. Esses dois princípios juntos seriam as causas materiais das coisas, nas suas diferentes combinações. Todo universo é composto de Ser – o sólido – que pode se replicar infinitas vezes, e do não Ser – o espaço vazio de extensão infinita. O vazio não seria exatamente um “nada”, uma vez que ele sustenta o movimento.
Com Demócrito e Leucípio, a importância da razão é reforçada com os princípios de que “nada acontece sem razão, tudo tem justificativa ou necessidade”, e “a causa de todas as coisas é a necessidade”. Aristóteles questionou estas afirmativas, dizendo que os dois “deviam especificar qual o tipo de movimento que é natural aos corpos (a tal necessidade)”. Essa descrição acabou sendo tarefa cumprida por Newton, e a “necessária” observância das suas leis, em especial a gravitação universal.
Os atomistas especulam, pois, sobre propriedades da matéria perceptíveis aos sentidos, determinadas pela combinação de posições relativas e movimentos dos átomos que a compõe; daí decorre a necessidade do vazio, onde estes átomos se movimentem.
Na Física moderna, o que era especulação ganha evidências, e embora reformulados os conceitos de solidez e vazio, a hipótese basilar do atomismo continua verdadeira, qual seja, a descontinuidade essencial da matéria, sua natureza discreta, como decorrência lógica da hipótese de constituição molecular. Esta concepção guarda inclusive as diferentes noções de uma natureza percebida de forma contínua pelos sentidos, e discreta pela formulação da ideia de átomo.
Platão introduz a concepção geométrica da matéria. Afirma ele que “um corpo físico é simplesmente uma parte de espaço limitado por superfícies geométricas, as quais não contém nada além de espaço vazio”. Estipula uma relação direta entre os cinco poliedros regulares da geometria, e os elementos básicos constituintes da natureza: tetraedro e fogo; hexaedro e terra; octaedro e ar; icosaedro e água; dodecaedro e o universo em si – o cosmo que engloba os quatro anteriores. Platão considerava que estes poliedros poderiam ser modificados entre si, ou seja, ele previu as transformações dos elementos entre si pelo rearranjo dos formatos; a combinação adequada dos triângulos levaria à formação de qualquer dos sólidos poliédricos regulares. Este último princípio foi perseguido amplamente durante o desenvolvimento da Alquimia, e é usado como modelo para a compreensão de diferentes propriedades dos elementos químicos, e das moléculas mais complexas, na Química moderna e na concepção das partículas elementares.
A geometria que Platão utiliza, foi desenvolvida pelos pitagóricos. Pitágoras é referido pelo filósofo Bertrand Russell como “um dos homens mais importantes que já existiram”, por ter inaugurado a matemática como argumento dedutivo demonstrativo: “Toda concepção do mundo eterno, revelada ao intelecto, mas não aos sentidos, deriva dele [Pitágoras]; se não fosse por ele os teólogos não teriam procurado provas lógicas da existência de Deus e da imortalidade”. Interessante notar que esta afirmação de um mundo composto de formas e números, que no fundo são ideias, de certa forma complementa ou mesmo encoraja uma linha de pensamento corrente, que postula um mundo formado pela informação (geométrica, no caso dos pitagóricos).
O nascimento da ciência moderna passa por Leonardo da Vinci ao realçar a relevância da experiência como “requisito para a honestidade intelectual”.
Galileu defende a aplicação da observação e da experiência, em parceria com a matemática, sem o que “se estará navegando em vão por um obscuro labirinto”. Este filósofo afirma o atomismo, dizendo que “excluindo o som, é possível chegar a uma teoria corpuscular dos fenômenos físicos” (OGURI, 2009, p. 26-27). Com a teoria cinética dos gases, pode-se dizer que o som (propagado no ar) é uma manifestação ondulatória da matéria modelada de forma corpuscular, o que atualiza e remove a “exceção” feita por Galileu.
Newton consolida o método científico, ao desenvolver a matemática necessária para descrição dos fenômenos, cumprindo e reafirmando o que Galileu havia determinado. Atomista, sua teoria se dedica não à descrição das substâncias, mas deixa nas leis de movimento da matéria seu grande legado, cujo sucesso decorreu da enorme capacidade de fazer previsões e projeções, com precisão, incluindo uma descrição nunca antes vista do movimento dos corpos celestes. Newton é fiel ao princípio intelectual exigido por da Vinci, ao se referir com cautela à natureza das forças que agem sobre a matéria, a “gravidade, magnetismo, eletricidade, […] como essas forças se podem realizar eu não vou considerar aqui […], e podem existir outras que atinjam distâncias tão pequenas que até hoje escaparam à nossa observação”. Com isto Newton foi brilhante nas afirmações, e exemplar naquilo que não ousou afirmar.
Desde a Física clássica e até hoje, a descrição do mundo natural parte da observação; o levantamento de dados e a modelagem matemática conduzem à teoria, da qual se deduzem outras de caráter geral, na forma de leis. É possível que a descrição esmiuçada do funcionamento do universo material dentro de leis específicas, onde o determinismo e a causalidade imperam, tenha feito despertar no espírito humano um sentimento de falta de liberdade, quem sabe até de falta de mistério pela ausência do mito. Seria isso que levou o filósofo Kant a referir-se ironicamente às “leis que Newton impôs à natureza”?23 Decerto, nomear lei à teoria, sugere subjugar a natureza ao arbítrio, o que iria contrariar ao princípio máximo de Galileu, para quem a natureza não guarda submissão ao arbítrio humano24. É bem possível que a confusão resida na forma de se ver a ciência, quando ela é confundida como reveladora da verdade, e suas afirmações consideradas dogmas.
É igualmente possível que a chegada do século XX e as surpreendentes questões levantadas pela teoria da relatividade e da mecânica quântica, tenham aberto uma perspectiva de liberdade para aqueles espíritos mais livres, que se sentiam oprimidos por uma ciência demasiado ditatorial, uma tirana absolutista. Segundo Jung, “O instinto de reflexão talvez constitua a nota característica e a riqueza da psique humana” (JUNG, 2011a, OC VIII/2, §242), mas a razão pode também ser uma tirana. Tal opressão ou tirania não vêm dos grandes nomes da ciência, como se pode ver nos parágrafos precedentes; eles pensavam com cautela e buscavam a subordinação do pensamento à experiência, isto é, às manifestações da natureza em si.
As novas teorias se de fato surpreendem o senso comum, refletem um esforço enorme para se chegar a um novo modelo, que acomode as novas observações. São as observações dessa realidade que de fato ultrapassam o senso comum; a realidade é agora muito maior que o senso dos sentidos, ao que estamos habituados. A liberdade termina onde a realidade começa, uma voracidade diabólica por explicações não é necessariamente liberdade intelectual, é submissão ao medo.
O anúncio de uma grande mudança de paradigma na ciência pode soar como um grito de liberdade lançado ao vento, e a revolução libertadora está iniciada. Mas qual é mesmo o paradigma que mudou? O determinismo e o mecanicismo causal foram abolidos? Ou fomos “nós”, espíritos livres, abolidos de suas leis? Voltando aos grandes nomes da ciência, e acerca dos fundamentos da mecânica quântica, Heisenberg teria dito que “na formulação mais estrita da lei de causalidade ‘se conhecermos o presente exatamente, podemos calcular o futuro’, não é a conclusão que está errada, é a premissa” (OGURI, 2006, p. 451). Essa afirmativa redime o método, ao lembrar que o estado presente não nos é mais dado determinar, de forma absoluta ou inequívoca. É natural que uma expansão do universo de busca deve ocorrer sempre que o conhecimento do universo se expande.
As leis anteriormente universais, agora aplicam-se apenas a um universo mais restrito, onde se pode aplicar as premissas, ou seja, as premissas podem não ser tão universais quanto se imaginava. Em outras palavras, o universo aumentou, como seria de esperar, depois de tanto esforço dirigido para sua descoberta. Esse mecanismo de expansão é inerente ao método científico. Se expande o universo, seus horizontes levam junto o conhecimento e as dúvidas. Com isso se pode indagar em que consiste exatamente a suposta mudança de paradigma? Ou, o que de fato permanece sobre seus alicerces, ou necessariamente rui, a partir da Física Quântica.
O desmoronamento reside na nova teoria, na nova experiência, ou nas novas dúvidas que a ampliação de horizontes traz? Ou é a ameaça ao Unus Mundus inerente ao humano, que pode ser mais frágil em diferentes pessoas, embora tão necessário em todas, e que agora precisa ser posto em cheque e reconstruído em cada um?
Depois de um período em que a ciência afirmou tantas certezas, a Física Quântica permitiu abordar o mistério mais uma vez. Novas descobertas limitaram o alcance de antigas teorias, não as negaram. Na verdade, a reafirmação do método científico permite abrir novas portas, e prosseguir a partir do ponto onde se estava, o fato de premissas precisarem ser revistas requer ao contrário, mais esforços da razão e do intelecto para continuar avançando. Depois de fazer previsões surpreendentemente corretas acerca dos acontecimentos da natureza, todos esperavam que os mesmos princípios confirmassem seus poderes legislativos sobre a natureza. Newton havia afirmado que as mesmas leis que fazem uma maçã cair aqui na terra, fazem os astros se moverem (e permanecerem) nos céus! E isto foi confirmado até onde a vista alcança, desde o sistema solar (exceto um pequeno desvio orbital do planeta Mercúrio) até o que se conseguia observar de mais diminuto. O próprio Newton, todavia, sabia que deixara muitas questões em aberto, acerca da natureza da luz, da matéria e das forças atuantes. Na verdade, o sucesso da mecânica clássica prevalece até hoje, pois seu grau de acerto num mundo gigantesco (desde um grão de areia fina até o planeta Urano) segue bastante eficaz. A ciência aplicada (nas engenharias por exemplo) a usam sobejamente, não por se ignorar sua limitação, mas por conhecer seus acertos. OGURI afirma o seguinte acerca disso:
O sucesso da Teoria Cinética dos Gases [e das leis de Newton] reforçou essa visão mecanicista e reducionista da Natureza. Embora haja, ainda hoje, críticas filosóficas e metodológicas ao reducionismo, quando encarado como um método eficaz de análise da Ciência, e não como um dogma, deve-se compreender que ele permitiu, em última instância, o desenvolvimento durante o século XX não só da Física, incluindo suas várias ramificações, desde a Matéria Condensada à Astrofísica, mas também da Química Molecular e da Biologia Genética. (OGURI, 2009, p.133)
O homem foi à lua e retornou, aplicando os conhecimentos oriundos da Física Clássica, mesmo já havendo disponíveis a relatividade e parte da mecânica quântica. Os laboratórios onde se desenvolvem os experimentos de partículas de alta energia, como o CERN onde são realizados experimentos com partículas subatômicas, foram construídos segundo essa mesma ciência tradicional, aplicada à engenharia civil, mecânica, elétrica, etc.
Conforme o aprofundamento do conhecimento científico alcançou lugares mais distantes dos sentidos, é que começou a ficar claro que havia limites, antes inesperados, para certas premissas, se é que “claro” seja qualidade atribuível para o que se pretende ver nos mundos subatômicos ou nos confins do universo. O que se sabe é pouco e o que se supõe é ainda um grande pano de fundo, um quadro negro à disposição do inconsciente e bem receptível para todo tipo de projeções.
De volta a MATTOS, o autor recupera alguns pontos daquelas visões de mundo que vêm desde os gregos, agora em uma nova combinação. Afirma ele que “os físicos abandonaram as certezas inerentes ao modelo reducionista e determinista de Newton” (MATTOS, 2015, p. 35), e que, em decorrência de sua descrição através de um modelo de natureza ondulatória e probabilística, o elétron (e demais partículas) “são pura energia, ou ainda constituídos de algo etéreo ou absolutamente não material” (idem p. 36), e em decorrência “o nosso mundo material é, na verdade, um mundo absolutamente sem Matéria” (idem, p. 37), para concluir que “somos pura e eterna energia que se manifesta no mundo da forma” (idem, p. 39). O autor conclui que energia e ser se confundem. Essa conclusão trai o que para a Física seria energia, isto é, um conceito de transformação, em ato ou em potencial, e não algo em si. Ainda, fica implícita a transposição direta de um modelo descritivo do mundo subatômico, retroativamente para o mundo de dimensões humanas, o que não é necessariamente adequado.
Apesar de afirmar, quanto a fundamentação de seu argumento, que “a Física aceita amplamente, sem nenhum questionamento” (idem p. 62), podemos encontrar em verdade uma grande controvérsia de interpretações e mesmo de teorias inteiras, dentro da própria Física. O filósofo da ciência Osvaldo PESSOA se debruça sobre esse assunto e expõe a atual tendência de associar a Física para além do que ela mesma se propõe.
A mecânica quântica é uma teoria científica que descreve muito bem experimentos com objetos [sub] microscópicos, como átomos, moléculas, e suas interações com a radiação (por exemplo, a luz). Nos últimos anos, ela tem sido incorporada em visões de mundo místicas, espiritualistas etc., para sustentar ideias como a de que nossa consciência pode se conectar à consciência cósmica. (PESSOA, 2011, p. 4)
Para PESSOA tal abertura para especulações que vão além da Física, é inerente ao método. A Física trabalha a partir de observações e medições do laboratório, e as teorias são montadas a partir daí. No caso da mecânica quântica, o que há de consenso dentro da ciência é acerca de um formalismo mínimo, “com as regras e leis que fornecem as previsões da teoria sobre as probabilidades de se obterem diferentes resultados de medições” (idem).
Escapa ao escopo da metodologia, e do formalismo mínimo (que é o que pode ser chamado de consenso entre os físicos), especular acerca do que há por trás das observações. O que não é visto ou medido não é suposto ou atribuído, e isto foi ensinado por Galileu e aprendido desde Newton, quando ele mesmo não arriscou palpite acerca da natureza das forças atuantes. Esta lacuna é que permite, segundo PESSOA, que a teoria Física seja preenchida pelas visões de mundo e suas respectivas representações de uma realidade, que deste ponto em diante não pertence mais à Física e sim à metafísica. Isso não é um erro em si, apenas uma inversão de argumentos, no sentido de que se poderiam fazer as afirmações metafísicas como postulados em si (verdade ou revelação), e então associar ao que se tem como conhecimento objetivo do mundo.
Note-se mais uma vez que preencher as lacunas não é um erro em si, pois é humano. Como é humana a projeção. Asas à imaginação tornam o mundo mais leve, e criativo. Saber identificar os limites da imaginação dá mais liberdade a essa força que é tão humana.
Visto isso, seria possível reatribuir os valores adequados na afirmação inicial de MATTOS “Esse […] é um livro com fundamentação científica, porém com sabores de ficção” (2015, p. 18). A ficção e a metafísica têm tido pouco espaço no desenvolvimento do conhecimento, e talvez seja hora de recuperar o tempo perdido. Fazer isso em detrimento da própria Física seria um tiro no pé, pois desvalorizada a ciência, que ajuda daria essa ao metafísico?
Um dos autores que está presente na paródia crítica de SOKAL (1999) descrita mais acima nas paginas 115 a 117, é Henry Bergson. Este filósofo francês que viveu entre 1859 e 1941, recebeu o Nobel de Literatura de 1927. Bergson é conhecido pela sua abordagem da consciência, com a primazia da intuição que ele considera a faculdade suprema do homem, tanto no aspecto de impulso de vida (élan vital), como faculdade do filósofo para formação do conhecimento. A obra de Bergson abordada por SOKAL é Duração e Simultaneidade de 1922. SOKAL não vê em Bergson um representante do que ele define como pós- modernismo da filosofia, mas o considera um inspirador dos pós modernistas, que dele herdaram o conceito da primazia da intuição. “Há certamente algo de sério em Bergson que contrasta nitidamente com a desenvoltura e o comportamento indiferente dos [autores] pós- modernos.” (SOKAL, 1999, p.182). Nessa citação, a “indiferença” diz respeito à falta de cuidado na construção do pensamento em si; é indiferença na qualidade da articulação do pensamento intelectual.
Segundo SOKAL, as predições acerca da realidade, a partir da teoria da relatividade, se encontram distantes do que nos informa a intuição comum, que é adquirida a partir da experiência desenvolvida num mundo de dimensões humanas em relação ao espaço, e no tempo encontra relações com nossos processos biológicos naturais, juntamente com o passar dos dias e das estações do ano. A relatividade de Einstein não contradiz os fatos do dia a dia. A problemática contra intuitiva “se deve à pobreza de nossa experiência: a velocidade da luz é tão grande e as distâncias cotidianas são tão pequenas, que não reparamos nos efeitos relativistas” (idem, p. 188). As contradições teriam origem na extrapolação entre as experiências habituais e as predições da relatividade, agora comprovadas. “É necessário sublinhar que esses fenômenos, ainda que contraintuitivos, são reais: a teoria da relatividade, bem como a teoria eletromagnética de Maxwell, foram confirmadas experimentalmente durante os últimos noventa anos, através de milhares de experiências, com uma precisão impressionante” (SOKAL, 1999, p. 187).
Em favor de Bergson, diga-se que a própria comunidade científica levou muitos anos para admitir de forma ampla a teoria de Einstein, o que custou a esse cientista não ter ganho o prêmio Nobel com a Relatividade. Einstein recebeu o prêmio Nobel em Física com seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico. SOKAL admite que a publicação de Duração e Simultaneidade é anterior à maioria dos experimentos comprovatórios da relatividade.
Porém seus princípios teriam sido exaustivamente explicados, de modo pedagógico, para Bergson, que preferiu manter as polêmicas. Apesar de a relatividade ser um fato científico hoje, não impede que alguns autores deem continuidade às afirmações de Bergson em novas articulações que envolvem a física e a mente.
Encontra-se um exemplo disso num artigo publicado na revista de psicologia Psique da Editora Escala, sob o título Eixo Mente-Tempo, assinado por Daniel Lascani. O autor, jornalista e pós-graduado em Psicologia Junguiana pela PUC-Rio, articula termos da física para chegar a afirmações no âmbito da psicologia, mas sem preocupação em dar bases diretas e coerentes para justificar suas afirmações, que permanecem vagas. Lança o assunto da distorção de tempo e espaço, prevista na teoria da relatividade de Einstein com as Equações de Lorenz, e menciona um experimento sem referir-se exatamente qual é.
O limite desse experimento foi medido por Einstein, calculando-se objetos percorrendo próximos à velocidade da luz. Nesse exemplo, um corpo no espaço, que viaja, por exemplo, durante um ano, em tal velocidade, ao retornar à Terra poderá se assustar com passar de tempo de até 16 anos (LASCANI, 2018)
O parágrafo carece de sentido por si embora remeta à relatividade. É uma coleção de palavras que não se articulam em pensamento, nem em termos físicos nem psicológicos. O autor deixa de mencionar qual experimento se refere, embora saibamos que Einstein era um físico teórico, o que já deixa algo a desejar no conteúdo dessa afirmação.
Apesar de ser comum aos físicos lançar mão de experimentos mentais, em explicações que pretendem ser didáticas, a didática permanece comprometida devido ao caráter não usual dos resultados, “grandemente contra intuitivos” para usar termo de SOKAL, em especial em se falando de Relatividade ou Mecânica Quântica. Mesmo assim, quando um físico usa um experimento mental, esse termo diz respeito à imaginação de corpos materiais que se deslocam (no caso desses exemplos), e não a uma participação da mente no processo físico.
No artigo da revista, o autor segue afirmando que “A Relatividade Especial tem um fator de Lorentz, em média, de 16 para 1, quando medida próxima à velocidade da luz no espaço físico” (LASCANI, 2018). Não existe uma tal média de 16 para um que seja inerente às Transformações de Lorenz. As equações de Lorentz, que podem ser conferidas, por exemplo, em OGURI (2006), têm um comportamento altamente assintótico para a unidade, ou para o infinito, conforme a velocidade se aproxima respectivamente do 0 (corpo parado num dado referencial) ou à velocidade da luz (OGURI, 2006, p.190). Não há sentido em definir um valor médio de 16 para 1, para o fator de Lorentz, pois haverá sempre um valor para cada velocidade, encontrado na solução das equações. Na verdade, o valor médio para qualquer pessoa é sempre muito próximo da unidade: tanto entre pessoas sentadas nas varandas, correndo em fuga de um cão, em velocidade dentro do automóvel ou mesmo de avião.
Lascani segue comparando as visões de um conceito de tempo, entre Einstein e Bergson. Segundo ele, “Na visão bergsoniana, o tempo é um fenômeno mental e não espacial. Seria apenas uma percepção humana, uma construção psicológica.” Ao entrar numa definição filosófica de tempo, de caráter psicológico, Lascani se contradiz com respeito ao que acabara de dizer, pois se for estritamente um conceito psicológico, qual o sentido do experimento mencionado logo antes na mesma página da revista? Quando na ciência, “O gênio de Einstein fez ver que se podem conciliar as equações de Maxwell com o princípio da relatividade se se alterarem as equações que enunciam a passagem de um sistema de referência inercial a outro” (SOKAL, 1999, 187), é das equações de Lorentz que se trata, sendo o fator de Lorentz o produto dessas equações que relacionam velocidade, tempo e espaço dentro dos referenciais físicos de ocorrência, e não “espaços” mentais. A relatividade, apesar do nome, trada de informações objetivas do tempo, e não subjetivas.
Toda a Teoria da Relatividade especial, com as equações de Mawell e Lorentz, e a limitação de velocidades à velocidade da luz, diz respeito a fatores objetivos da natureza observável. As teorias foram desenvolvidas e seus dados foram sendo comprovados por meios experimentais objetivos, passíveis de repetição, confrontação e confirmação. Quando Lascani afirma que na visão bergsoniana o tempo é um fenômeno mental, deveria deixar de imediato de se referir aos termos, conceitos e resultados da Física, pois esse autor não faz nenhuma menção, muito menos tece arrazoado acerca de uma eventual transferência de valores e qualidades entre os sistemas objetivos da física, para os sistemas subjetivos.
Se o tempo é uma construção mental, e pode-se sim encarar dessa forma, o é quando percebido subjetivamente. Mesmo os cientistas de hoje têm dificuldade em encontrar uma definição para o tempo, e tendem a procurar uma saída psicológica. Isso é decorrente da própria mudança de conceitos para o tempo, que deixou de ser considerado uma grandeza por si só. Isso não diminui em nada o caráter objetivo da “variável tempo” nas equações de Lorentz. Tanto é de caráter objetivo, que pode ser confirmado pela coerência entre experimentos e cálculos, efetuados e comprovados largamente. Pode-se inverter o raciocínio, e partir da afirmação do tempo como fenômeno mental, com o que as assertivas sobre o fator de Lorentz feitas inicialmente, no artigo de Lascani, estariam invalidadas, visto que elas se aplicam ao mundo objetivo. De qualquer modo que se observe, as afirmações no artigo não têm um ponto de apoio na articulação de ideias, ou se tem, esse ponto foi omitido.
Não obstante, Lascani prossegue, e afirma que “Atualmente, postulados da mecânica quântica conseguem unir as duas teorias. A mesma distorção espaço-tempo que ocorre no espaço material também ocorre em nosso espaço mental, portanto são uma mesma realidade colapsada” (LASCANI, 2018). Essa afirmação não decorre de argumento anterior, inclusive não são mencionados os postulados da mecânica quântica que o autor se refere. Nessa frase, que considera “mesma distorção” de espaço material e mental, fica implícito que existiria um espaço físico objetivo na psique igual ao espaço material. É uma concepção materialista da mente.
A citação a uma “realidade colapsada” no espaço mental é jogada sem nenhum esclarecimento acerca de seu significado, como se houvesse um pressuposto implícito, algo que o leitor deva ter como verdade a partir da simples menção dos termos ajuntados a esmo. Como uma espécie de conclusão, a argumentação segue com “[…] a teoria da Relatividade, com a contribuição de Bergson, constata que cada ser humano também pode sentir o tempo passar de forma diferente, sem necessariamente viajar na velocidade da luz” (idem). É fato histórico que Bergson não deu contribuição à teoria da Relatividade. Nenhuma consideração teórica ou resultado experimental na relatividade precisou de qualquer ajuste ou confirmação feitos a partir de uma suposta contribuição de Bergson.
A frase acima no artigo da revista, é completada da seguinte forma por Lascani: “Há um fator de Lorentz, também, em proporções bem menores, dentro de nossa mente, assim como há entre o espaço-tempo”. As equações de Lorentz dizem respeito ao espaço físico mensurável, o que não existe para um eventual espaço mental. Novamente se faz uma transposição entre psique e matéria, parece que se pretende uma equivalência de leis, o que obrigatoriamente passa por uma consideração de psique material. Não há menção de uma tal transposição nesse artigo, nem menção a outro trabalho que sustente a afirmação final.
Não há porque afirmar que a realidade apreendida na psique não produza um tipo de equivalência entre o mundo objetivo e o psíquico subjetivo, porém afirmar essa equivalência de forma injustificada e usar para isso os termos da Física, é em primeiro lugar um desafio à integridade intelectual, dentro de qualquer lógica, e por outro lado, uma pretensão ao usar as ferramentas e a métrica do mundo material como se funcionassem no mundo mental. O tamanho da psique não se mede em metros.
O termo citado, “realidade colapsada”, é tirado do que a Física denomina como “colapso da onda de probabilidades”. A teoria diz que a função de onda quântica, estabelecida pela equação de Schrödinger, pode assumir uma multiplicidade de estados. Existe a questão destes estados permanecerem indeterminados até serem medidos, o que traz à pauta a questão do observador. A indeterminação decorrente do modelo, faz nascer na Física uma multiplicidade de opções para sua solução teórica, indeterminação que apenas é resolvida quando, e caso, a partícula possa ser observada.
Na verdade, o próprio Schrödinger percebeu a possível confusão das múltiplas interpretações, caso o modelo idealizado para o microcosmo, seja transposto diretamente para o mundo da experiência real, sensível, de nossas dimensões. Em função disso, e em decorrência das discussões com Einstein, a quem pretendia uma crítica às interpretações, ele propôs o experimento mental que ficou conhecido como “gato de Schrödinger”. A intenção do cientista não era propor um gato ao mesmo tempo vivo e morto, ou que estaria vivo ou morto dependendo da hora que o observador abre a caixa do experimento. Sua intenção era justamente o contrário, era expor como o paradoxo se forma na transposição direta e irrefletida entre sistemas tão diferentes como um modelo de partículas subatômicas e o mundo do tamanho humano.
Em um texto publicado em 1935 na revista alemã Ciências Naturais, ele mesmo escreve:
Qualquer um pode mesmo montar casos bem ridículos [como o caso do gato vivo e morto …]. É típico destes casos que uma indeterminação originalmente confinada ao domínio atômico venha a transformar-se numa indeterminação macroscópica, a qual pode então ser resolvida pela observação direta. Isso nos previne de tão ingenuamente aceitarmos como válido um “modelo impreciso” para representar a realidade. Em si mesma esta pode não incorporar nada de obscuro ou contraditório. Há uma diferença entre uma fotografia tremida ou desfocada e um instantâneo de nuvens e bancos de nevoeiro (grifos meus). 25
A intenção desse cientista e prêmio Nobel de 1933, foi a de clarear de uma forma didática, e com um caso “bem ridículo”, como é fácil cair em paradoxo e “ingenuamente aceitar como válido um modelo impreciso para representar a realidade”. Mais uma vez o problema é de transpor o que é uma indeterminação teórica e matemática (o “modelo impreciso”), no domínio atômico, para uma realidade macroscópica. Não obstante o esforço didático do cientista, a história do gato na caixa é mencionada até hoje “para provar que o gato pode estar vivo e morto, provando a incerteza da realidade e o papel do observador no destino do gato”. Justamente o contrário daquilo que Schrödinger pretendia com a história.
Em sua genialidade, e certa poesia, Schrödinger ainda termina o trecho acima com referências à fotografia: uma imagem tremida e desfocada não pode se confundir com a foto de um nevoeiro (a palavra instantâneo era usada em lugar de fotografia na época). De um ponto de vista psicológico, é justamente o nevoeiro, o incerto e obscuro, o lugar natural para a projeção e para que a alma se expresse. Isso é humano, logo não pode ser encarado como um mal. O inconsciente se projeta como forma de necessária expressão. Deve-se então deduzir que, se é disso que a psique precisa, a consciência vai ver o gato vivo e morto, não importa qual o esforço que o autor da história original faça para dizer justamente o contrário. A confusão de conceitos mal-empregados pode funcionar como o espelho escuro onde a psique projeta e expressa sua realidade profunda.
A consciência de algum modo recorre à ciência mais iluminada, mas o que vê são nevoeiros que podem ser qualquer coisa. Aqui vemos o reforço que a imagem mítica da ciência recebe dentro de quem projeta, quer dizer, o fato da ciência ter esse poder mítico de reveladora da verdade, pode exercer o reforço que dá valor de verdade para a afirmação: o gato está vivo e está morto, é a ciência que o diz.
Quem nunca se deitou ao ar livre e ficou de olhar perdido nas nuvens, a imaginar animais e monstros nos seus contornos e texturas? Mas se o que se pretende é o desenvolvimento do conhecer, o aprofundamento em qualquer área, o que se espera é um cuidado com as ideias que se articula. Num dado instante será preciso passar as mãos pelas nuvens em um movimento que pode ser um gentil cuidado, como a afagar nossos sonhos livres, fontes de criação espontânea, de onde brota o novo e o maravilhoso, e em meio dessa gentileza, discernir o que é o sonho e o que é o esforço do pensamento dirigido.
Um cuidado redobrado será exigido no caso de se dobrar as esquinas entre duas (ou mais) áreas do conhecimento, mesmo do conhecimento onde a objetividade encontra seus limites, onde a ampliação do conhecer exige justamente ultrapassá-los.
Não precisamos dizer o nome ‘rosa’ para sentir o seu perfume.
Não precisamos dizer o nome ‘mel’ para sentir a sua doçura.
Muitas pessoas que jamais pronunciaram o nome de Deus O conhecem como reverência pela vida.
Rubem Alves (2013, p.20)
A Ciência deve começar com os mitos e com a revisão crítica dos mitos.
Karl Popper (CARUSO, 2006, p.1)
O sonhador não consegue sonhar
diante de um espelho que não seja ‘profundo’
Gaston Bachelard (CARUSO, 2006, p. 1)
Não obstante a Física ter delimitado com precisão seu conceito de energia, é justamente devido a esta delimitação, que seria inadequado pretender que esse novo conceito científico pudesse limitar o uso da palavra, com a tal especificidade, quando o assunto é de outra monta.
Mas qual é o conceito que se deve mudar? O novo tempo deve chegar, ou seria a coerência intelectual que não chega?
A energia que move para o novo, alardeado com roupagem científica, é a própria energia divina e eterna em cada ser. Seria preciso romper com o conceito estritamente científico da energia para poder lançar-se novamente nos braços de Deus, fazendo jus outra vez ao revigorante maná?
Fosse possível ir de encontro ao espírito e à alma através da razão, onde ficaria o símbolo? A energia estritamente científica transita entre a matéria e os modelos de matéria. É como que desinvestida do símbolo e assim deve permanecer. O símbolo e o mistério se impõem em outra camada à revelia da razão, abarcam o humano como um todo, e o arrastam de volta ao caminho da fé. A razão se usada estritamente, calcinaria esse funcionar livre da alma, o que de fato não ocorre devido às suas inerentes limitações.
Estas duas formas de aproximação de Deus, percepção subjetiva ou concepção científica, levam a impossibilidade de uma única imagem Dele. Felizmente, este problema é resolvido pela falha existente na premissa cientificista: ela parte necessariamente da afirmação de Deus como hipótese de uma teoria (Teoria?), o que encerra a discussão. Sem uma imagem interna de Deus, a questão não poderia ser realizada.
Ao iniciar esse ensaio sobre energia, há vários anos, não imaginava que pudesse desenvolver o assunto na direção que ele tomou. Havia desde o início duas preocupações, uma dela sobre o conceito de energia em si, como Jung se apropria desse conceito junto à Física. Logo percebi que havia todo um cuidado da parte de Jung, com os detalhes, para o uso correto do conceito. Me surpreendi em constatar que energia enquanto conceito passava desapercebido pela maioria das pessoas, incluindo a mim mesmo.
Mesmo tendo que rever a questão conceitual sobre a energia, muita coisa em mim eram certezas. A afirmação de que “tudo é energia”, verdade líquida e certa para algumas pessoas, nunca me intrigou como verdade da Física, na natureza em si. A famosa equação E=mc2 não denota que tudo é energia, apenas que existe um equivalente a ser usado para descrever matematicamente as transformações da matéria, e esse equivalente se chama energia. Nesse sentido, dizer que tudo é energia é o mesmo que afirmar que tudo é material. A numinosidade e totalitarismo implícitos na tão afirmativa frase, muito utilizada: “Tudo é energia”, não pertence à Física. Nessa questão, minha curiosidade sempre foi o que leva tanta gente à essa afirmação? E esta curiosidade foi um dos fios condutores e catalisador de reflexões ao longo deste trabalho.
Outro fator que me mobilizou desde o início foi o que eu via como leviandade na abordagem de assuntos científicos, que muitos se deixam levar, afrouxando não apenas os conceitos, mas mesmo a articulação das ideias. A interpretação tendenciosa da famosa equação é apenas parte desse assunto. Pensava nessa leviandade como um descaso, em contraste com o evidente e grande esforço do próprio Jung, em manter a correção e coerência em toda obra, procurando desenvolver a Psicologia como ciência. Não obstante viu-se ele mesmo na defensiva, tantas e tantas vezes, da acusação de místico, e ele se definindo um homem de ciência, um empírico dentro da ciência. Nesse ponto o tema fica mais geral e se expande para além do conceito de energia, para a questão da formação de ideias e conhecimento, e qual a energia que move esse processo.
A imposição das Leis de Newton à Natureza conforme ironizou Kant (vide p. 133), trai a ciência ao mesmo tempo que sugere engessar o espírito. Nomear lei à teoria, seria subjugar a natureza ao arbítrio, o que contraria o princípio máximo de Galileu, para quem a natureza não guarda submissão ao arbítrio humano. “Nas ciências naturais, cujas conclusões são verdadeiras e necessárias e não têm qualquer relação como o arbítrio humano, é preciso precaver-se para não se colocar em defesa do falso” Galileu em (OGURI, 2006, p. 26). É bem possível que a confusão resida na forma de se ver a ciência, quando ela é confundida como a reveladora da verdade, e suas afirmações com dogmas. Ou, se não é uma confusão, é apenas expressão da necessidade organizadora da mente, na interminável e inabalável tarefa de criação de mitos.
Há em Jung uma crítica ao racionalismo e ao cientificismo presentes em certas pessoas, oriundas de várias linhas de pensamento. Ao considerar que o racionalismo é insuficiente para a abordagem de uma psicologia científica, Jung ao mesmo tempo se recusa a cair no misticismo. Há premissas contrárias provavelmente irreconciliáveis entre o místico e o científico, onde basicamente a ciência não aceita o dogma como verdade, e o conhecimento deve ser compartilhável, posto na ordem objetiva. Do outro lado, uma verdade individual que brota dentro da pessoa, as vezes como necessidade imperativa, que se impõe, precisa também encontrar seu lugar. A verdade científica (objetiva) e a verdade interna (subjetiva, ou mística), podem se completar, mas não se confundir.
A contemplação é lugar para desenvolvimento de saber. Veja-se no caso do I Ching, que foi originalmente concebido para ser apenas contemplado, diretamente pela persistente observação de seus hexagramas. Os comentários posteriores foram anexados, necessários para tornar o conhecimento mais acessível a um número maior de pessoas, o que não elimina o método original contemplativo usado por Confúcio e seus antecessores.
Transformar uma inspiração, vinda ou não de um sonho, decorrente ou não de um processo contemplativo, e torná-la um conhecimento objetivo que seja aproveitado dentro do esquema mais ou menos estreito da ciência, é uma arte verdadeira. É bem possível que não exista conceito teórico que não tenha um embasamento arquetípico – afinal são feitos pelos homens. Brotam da psique humana.
Um outro ponto de incômodo que me moveu para o presente trabalho, foi uma certa inconformidade com a existência de espiritualistas saídos da ciência. A partir de um certo ponto na história recente, pareceu que ostentar no currículo “Físico Quântico” habilitava a pessoa para ser “Guru”. Meu incômodo (afora a inveja: afinal, o que é que eles veem que eu não consigo enxergar?) residia justamente numa incompatibilidade inerente dos métodos, entre ciência objetiva e fé subjetiva, mas igualmente na constatação de uma certa necessidade que algumas pessoas demonstram, de afastar-se da matéria, negando ou imputando qualidades morais depreciativas, como se houvesse um preconceito contra a matéria, a favor do espírito. Chegar num ponto de dúvida e incerteza é para mim talvez a zona de conforto; matéria e dúvida são inerentes à vida, como seria a vida sem elas?
Qualquer que seja o objeto de uma investigação, é preciso guardar respeito às ciências que se recorra em suporte ao que se investiga, independente de um âmbito interdisciplinar ou não. Se os recursos necessários incluem os da Física, deve-se guardar respeito aos saberes dessa ciência, incluindo seus métodos. Se para essa empreitada forem necessárias mudanças, paradigmáticas ou não, estas devem ser levadas a cabo a começar no interior da Física ou qualquer que seja a ciência. Não apenas ao formalismo das ciências, o pensar guarda um formalismo a ser respeitado. Não se pode simplesmente acusar de preconceito, ou invocar uma vaga ideia de mudança de paradigma para rebater argumentos. E se a discussão atravessa disciplinas, deve haver uma responsabilidade ética para que especialistas de uma área lancem ideias com sabor de verdades para especialistas de outras áreas que não podem tecer julgamento adequado. Seria abuso intelectual e da ciência.
Em respeito ao argumento de um eventual preconceito contra mudanças, ou uma mudança de paradigma visto como “necessidade de época” (e invocado de maneira vaga segundo Sokal), é por outros imposta como necessidade, por exemplo Goswami, que afirma que é apenas uma questão de tempo para ser aceito. Mas se não há argumentos, a aceitação cai em dogma novamente! Aqui há sim um ponto de separação entre o que é ciência como “ampliação do saber”, e o que seria idealismo ou misticismo.
Quando ao olhar para a matéria, se descobre e aponta a alma (ou a mente, ou o próprio Deus), é o mesmo que se tivesse confinado uma coisa à outra. Em lugar de “se libertar da matéria”, agrilhoa-se a mente (ou a alma ou o próprio Deus) na matéria em si, ou na suposta pretensão, racional e, portanto, unilateral, de matéria. Quando a Alquimia fala acerca da alma ser libertada da matéria, não estaria a falar da matéria da física, mas sim da alma a ser libertada dos literalismos; fala do mercúrio verdadeiro ser libertado do mercúrio vulgar para que depois volte para animar novamente a matéria: está falando de processos simbólicos.
O homem moderno não viu este aspecto simbólico e desqualificou a Alquimia. Agora se propõe a usar de termos da ciência, e, no entanto, cometendo abusos dentro da ciência, para chegar ao encontro de Deus na matéria literal. Seria esse encontro literal com Deus na matéria a perda definitiva da interioridade, pela ausência do símbolo? Seria um caminho viável para qualquer desenvolvimento interno? Ou o fim do Tao como caminho e mistério? Tao é o caminho. A busca da alma é a busca, não a alma em si, que vai continuar habitando o mistério de onde retira a própria realidade e a vida. Fora disso é a racionalidade que triunfa apartada do ser, e anuncia a pretensa descoberta científica de Deus. Mas é o mesmo que dizer “Deus está morto”, mais uma vez, agora preso na matéria, calcinado pelo racionalismo. Em lugar de Unus Mundus, se tem um mundo pela metade, virado apenas para o lado objetivo, de fora.
O movimento da busca por Deus pelo caminho da objetividade, pode muito bem denotar a ativação dos arquétipos. Quem sabe numa resposta ao movimento retrógrado da libido que se manteve muito fortemente reprimida, restrita à luz muito forte da consciência racionalista, ao longo do esforço dirigido da consciência desde os tempos de Galileu. Uma força tão humana e tão poderosa, volta-se agora e põe à prova a capacidade do homem em manter seu equilíbrio, na luta interna entre o cientista e o místico que habita em cada um.
Ao me aprofundar, a partir do próprio conceito de energia, em uma revisão dos princípios da Física, foi possível rever o método em si, e na Física moderna aprofundar um pouco as teorias da relatividade e a Mecânica Quântica. A partir disso foi possível distinguir entre o que são hoje as teorias amplamente aceitas ou especulações e, os resultados de experimentos aceitos na comunidade científica, assim como ver como os antigos conceitos que permanecem formam um todo com o que se desenvolve de novo.
Na interdisciplinaridade, se é verdade que não se pode prescindir mais, há um trabalho extra, conforme as nuances das disciplinas se tocam e interpenetram. Se não se quer cair em leviandade, é preciso estudar muito mais, e contar com fontes seguras. Seria uma sobrecarga excessiva de trabalho se todos tiverem que estudar tudo, de maneira profunda, para permanecer dentro do que é aceitável de um ponto de vista intelectual, dentro da enorme variedade de assuntos que uma interdisciplinaridade pode exigir.
Esse cenário exige um cuidado a mais na distinção entre o que é especulação livre, o que são hipóteses mais ou menos aceitas, e o que são as teorias fundamentadas e corroboradas pela experiência. Se viajamos em mares revoltos, somos, cada um, obrigados a permanecer estáveis dentro do barco, e agir colaborativamente, para não ir a pique.
A partir de uma base sólida onde se possa retornar, ou ao menos fincar um farol, os voos mais livres da imaginação poderão eles também aproveitar o que trazem de melhor na criação do novo. O psicólogo recebe ajuda da Física se souber exatamente o terreno que pisa, pois não tem conhecimento suficiente para discernir o que significa cada modelo nessa disciplina, e até onde vão as certezas ou iniciam as especulações. O físico poderia receber ajuda extra ao conhecer os funcionamentos da própria alma, não como teoria apenas, mas como experiência, como esta opera e influencia dentro de si. Físicos e psicólogos precisam perceber os movimentos da energia que transita entre alma e espírito, ter uma noção das armadilhas da própria razão.
A consecução desta monografia mobilizou-me, pelo fato de em minha história pessoal, certos conceitos aparecerem de forma espontânea: o cheio, o vazio, o significado (como signo e como símbolo), a transformação, a busca pelo centro do círculo. Seguir no mundo da concretude que tende sempre ao cheio, na engenharia, não valia mais a pena, era necessário buscar o mundo do espírito na psicologia, o mundo da alma da Psicologia Analítica, percorrer o Tao de encontro ao vazio que é onde as coisas se movem e transformam.
No mesmo ano que iniciaria a prática de Tai Chi e o estudo formal da psicologia, mas antes mesmo de tomar essas decisões, eu terminara de construir a casa que foi minha moradia em Curitiba nos 15 anos seguintes. Queria colocar nessa casa um hexagrama, na forma de um mosaico sobre o fogão, algo que representasse “fogo”. Uma amiga, sugeriu o hexagrama 61 – Zhong Fu, Sinceridade Profunda – que eu coloquei no piso na entrada de casa. Foi uma escolha casual. Esse hexagrama é composto de Sun Tui: brisa suave sobre a quietude do lago. Seu desenho com duas linhas cheias abaixo, duas linhas interrompidas ao meio e mais duas cheias acima, forma o vazio central, esse vazio intrigante, que nesse hexagrama é a sinceridade central, sem a qual as coisas não valem a pena.
O hexagrama 61 traz uma mensagem similar ao Gong Fu, a prática diligente e cuidadosa para o desenvolvimento físico em harmonia com o mental. Como deve ser no Tai Chi Chuan. Conduz à ideia acerca de como os mundos interno e externo se alinham (Unus Mundus); como aprender a partir de nossa própria natureza, e descobrir quais partes de nós não se movem, resistentes à transformação, e como cada resistência revela nossa essência no momento que pode ser enfrentada.
No I Ching encontramos o seguinte texto para o hexagrama 61 (I Ching, 2007, p. 466):
Com esse hexagrama, Confúcio obteve conhecimentos relativos ao Caminho do Meio.
Em sua Doutrina do Meio, Confúcio diz:
Sob o Céu, somente o indivíduo possuidor da lealdade e sinceridade mais completas é capaz de desenvolver totalmente sua verdadeira natureza.
Quando é capaz de desenvolver completamente sua verdadeira natureza, é capaz de desenvolver totalmente a natureza de outros indivíduos.
Quando é capaz de desenvolver totalmente a natureza de outros indivíduos, é capaz de desenvolver totalmente a natureza de todas as criaturas.
Ao fazê-lo, é capaz de tomar parte nas funções de nutrição e transformação do Céu e da Terra
e se torna um com o Céu e a Terra
Figura 6 – Hexagrama 61 do I Ching.
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[4] “http://richardjdavidson.com/biography/” – acesso em março/2017.
[5] Tradução livre de: “Conceivably the title Psychology of the Unconscious was the publishers’ choyce, for its relative lucidity.
[6] Tradução livre de : “[…] to find a coherence among ideas in religion, psychoanalysis, philosophy, cultural history, literature, and his personal situation”.
[7] Tradução livre de: “As for coherence, Jung himself said that his book consisted of fragments strung together in an unsatisfying manner, a desription easy to accept”.
[8] Tradução livre de: “The courage to maintain the thesis and the erudition to carry through the exposition are the notable qualities of this remarkable book.” “[…] some five hundred-odd pages of incoherence and obscenity in the form of a psycho-analytic interpretation of the experiences of a sentimental young American woman […] who believed herself to be inspired”; “[…] to the scientist who has accepted the general principles of Freud, it will bring much new light. The danger is that its value may be obscured by the almost overwhelming sandstorm of facts which the author found necessary to the support of his ”; “Jung’s book … has great value for all of the already large and steadly incureasing number of people who have accepted the Freudian psychology as a long step, probably the longest ever taken, toward an understanting of mental mysteries hitherto insoluble.”; “The mather is so entirely pathological that the book belongs in the library of the pathologist, and not elsewhere.”
[9] Tai Chi é o nome do símbolo de yin e yang; refere-se aos opostos em constante transformação. Chuan diz respeito a “punhos”, “luta”, “a prática do boxe”. Tai Chi Chuan é a arte marcial fundada na filosofia de yin e yang. Será adotada esta grafia, que em português produz fonia aceitável; na grafia oficial para a língua chinesa em caracteres romanos (Pinying) seria grafado “Tai ji quán”. Tai Chi Chuan pode ser às vezes abreviado para Tai
[10] Shigong é o termo usado para se referir ao “professor do meu professor”.
[11] Devido a diferenças de tradução entre as edições das obras completas para esse parágrafo 26, foi usado parte da 2a edição (JUNG, 1985) e parte da 11a edição (JUNG, 2010). As palavras inadequadas, aqui evitadas, são “atualizar”, para tornar em ato (i.é, realizar), e “virtual”, para energia potencial.
[12] Na “famosa equação” E=mc2: E é a energia em Joules, m é a massa em gramas, c2 é uma constante igual ao quadrado da velocidade da luz, aproximadamente 000.000.000.000.000 m2/s2 .
[13] Conforme KOTZ, , C., TREICHEL, P., Química e Reações Químicas, 3ª ed., v. 2; Rio de Janeiro, Ed. LTC, 1998; citado em http://quiprocura.net/w/portfolio-item/bomba-atomica/ , acesso em 17/1/2018
[14] Para mais informações consultar em http://quiprocura.net/w/portfolio-item/bomba-de-hidrogenio/, reunidas por Miguel Medeiros, acesso em 17/1/2018
[15] Para considerações mais detalhadas sobre colisões de partículas de altas energias, como a conservação da energia e da massa, ver por exemplo CARUSO e OGURI (2006, 210ss)
[16] Termo igualmente usado na física e na engenharia: mede-se os sinais de perturbação decorrentes de um estímulo aplicado a um meio, objetivando estudar o conteúdo do
[17] Tradução livre de: “The symbol, considered from the standpoint of actual truth, is misleading, indeed, but it is psychologically true, because it was and is the bridge to all the greatest achievements of humanity”
[18] Essa técnica pode ser observada em um vídeo breve, disponível na internet, onde o Grande Mestre Wang executa a prática do Tui Shou, em demonstração com o Mestre Niall O’Floinn – ver em https://youtu.be/pIhiA4UxNQg . A voz que se ouve no vídeo é de Mestre Niall.
[19] O céu começa em você: a sabedoria dos padres do deserto para hoje. Petrópolis: Vozes, 2014
[20] Vide em https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/16/internacional/1479308638_931299.html . Acesso em 17/11/2016. Igualmente disponível em outros sites pela pesquisa “pós verdade”.
[21] Técnica apresentada em O código da cura de Alexander Loyd. 22
[22] Ver o antigo conceito de calórico, páginas 44 e 45
[23] O termo lei é devido ao caráter universal da gravitação, a genial sacada de Newton em hipostasiar que a maçã e a Terra se atraem pelo mesmo princípio que a Terra ao Sol; é possível supor que a tendência mitopoética popular transformou isso num “decreto da ciência”.
[24] “Nas ciências naturais, cujas conclusões são verdadeiras e necessárias e não têm qualquer relação como o arbítrio humano, é preciso precaver-se para não se colocar em defesa do falso.” Galileu, em (OGURI, 2006, p26).
[25] Erwin Schrödinger em artigo original de 1935 na revista alemã Naturwissenschaften. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Interpretaço_de_Copenhague ou https://pt.wikipedia.org/wiki/Gato_de_Schrodinger . Acesso em 25/3/2018.