Reflexão Sobre o Olhar – Elizabeth de Miranda Sandoval

Ano de Publicação: 2008

Ano de Publicação: 2008

Na vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? […] É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento […] Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? […]

 Leonardo da Vinci

Um olhar:

Inconsciente, aporto num mundo alheio a mim. Estranhamente imersa num turbilhão nebuloso de possibilidades. A ânsia da vida pela vida me impulsiona a buscar. Como diz Jung: […] Por detrás do cruel destino humano se esconde algo semelhante a um propósito secreto […][1] Expulsa do todo paradisíaco conheço a falta. Justamente esta falta é continente para minha individualidade. Recebo, então, um convite para sair de mim e ir em busca de você. Com sorte, me relaciono. Só assim me reconheço.

O movimento entre o eu e o você, o interno e o externo, a consciência e o inconsciente estabelece o ritmo do existir. A mesma ânsia que me impulsiona a navegar as ondas da vida me fascina atraindo-me a não ser. Neste conflito, construo um saber de mim, através de você. Sou, agora, sujeito, um […]’ eu’ aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam.[2] Um outro olhar nasce no universo.

Me penso livre. Mas, reconheço, ainda que de má vontade, que tanto dos meus pensamentos, dos meus sentimentos, de minhas ações independem tanto e tantas vezes de meu querer. Apanho-me trocando os pés pelas mãos, dizendo coisas que não tenho a menor intenção, pensando o que não ousaria pensar que penso. Assisto meus mais caros objetivos fugirem de mim, deslizando por entre os dedos, como se algo em mim traçasse outros caminhos, tivesse outros planos. Há em mim, um eu que me abarca em toda minha ancestralidade, em toda minha humanidade. Um self que não é meu, mas me tem sua.

O todo que me origina e me quer inteira, acolhe indistintamente tudo de minha vivência pessoal, tudo de minha ancestralidade mesmo aquilo que consciente ou inconscientemente reprimo. Valiosos pedaços meus descartados aguardam amorosa e pacientemente, como quem gesta.

Conteúdos conflitantes se insinuam à consciência e trespassando seu limiar, lá aparecem em forma de símbolos, os quais trazendo um terceiro elemento têm a intenção de colocar em movimento aquilo que antes me parecia sem saída.[3] Eu os percebo como imagens, como sintomas. Lembram-me daquilo que de mim desconsidero. “A consciência pessoal é mais ou menos um segmento arbitrário da psique”[2]

Múltiplas potencialidades secretamente me povoam. Guardiãs da sabedoria que me fundamenta. Fragmentos vivos da história da humanidade guardam segredos do existir. Um chamado da alma para voltar para casa, uma laboriosa tentativa de compensar meus excessos, meus olhares unilaterais nos quais me detenho em meus delírios de poder.

Poder que me disfarça de super-herói, adorna meu ego com cetro e coroa, e paradoxalmente embota meu olhar. A perspectiva das alturas do meu pretenso poder me fragiliza. Deste ângulo me deparo com o medo. Acredito estar ameaçado de perder o que somente ilusoriamente penso ter.  Agarrada a esta crença, petrifico… A vida perde o ritmo, perco o jeito de olhar de um outro jeito, perco o acaso, o mistério, o respeito. Paralisada, assisto a vida acontecer…

Escapa de mim a essência. Torno-me inconsciente do todo que sou, me distancio das influências do si mesmo. ‘Desalmada’ caminho à deriva.

Muitas vezes, procurando convencer a mim mesma e ao mundo, sem pleno saber, escolho e desempenho papéis. Um personagem, uma persona que segundo Jung […] representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade acerca daquilo que alguém parece ser […][4] Máscara utilizada nas manobras de adaptação. Quando identificada com ela, e isto acontece mais vezes do que quero admitir, eu sei, penso equivocadamente ser autora absoluta do meu viver. Convencido e orgulhoso, o ego agradece e luta, neste caso, não mais pela plena realização de meu ser, mas por ampliar seu poder.

O que fica fora da luz da consciência, compõe a sombra. Quanto mais enaltecido o poder da consciência maior a sombra que a segue. Mais de mim por mim desconhecido. Fragmentos meus que me assombram, mas que muito têm a contar de mim. Para ouvir suas histórias, no entanto, preciso reverenciar seu mistério. Preciso tomar para mim o que é meu com a certeza que ousando aceitá-la despir-me-ei forçosamente da perfeição idealizada. Doravante um ser, nem bom nem mau, somente um ser em busca da maior realização possível de si mesmo.

A vida exige ser realizada. Ela concede um novo conflito, pede um desvio da rota, um outro olhar…

Neste ponto da jornada, volto meu olhar curioso para o fato da natureza insistir tanto e de tantas formas em movimentos de ir e vir, qual pendulo incessantemente balançando sobre um mesmo ponto me conclama a ir mais fundo, a encontrar tesouros escondidos sob aparência do banal, do óbvio. Observando com isenção o diferente experiencio mais plenamente a vida em mim, construo meu caminho com meus passos. Estendo meu olhar …

Abraço o mundo com o auxílio de lentes diversas: pelo viés da consciência, do inconsciente, do ego, da persona, do si – mesmo, da sombra, da anima, do animus, etc. Ainda o percebo através da minha individualidade, da coletividade em mim.  Cada olhar meu à sua maneira apresenta dados. As diferentes perspectivas todas, ainda que antagônicas, possuem um papel de complementaridade. Elas ampliam o foco do meu olhar para o mundo tanto externo quanto interno. Somente concedendo espaço para todos os nuances do olhar sou capaz de obter uma maior apreensão do todo que sou.

A adaptação ao mundo pressupõe uma relação dialética, entre mim e você. Esta relação implica que meu olhar modifica você assim como sou por seu olhar modificada. O olhar não somente vê, mas atua concretamente. Construímos, eu e você, nossa realidade com um olhar.

Abrindo ainda mais o leque das diferentes perspectivas, a consciência assume, fundamentada em bases instintivas e inconscientes da psique, uma atitude que direciona o interesse, mais frequentemente, para o mundo subjetivo, ou para o mundo objetivo. Porém, convivem em nós, as duas atitudes, extroversão e introversão, concomitantemente, em polos opostos, assim, uma atitude introvertida na consciência gera uma reação extrovertida no inconsciente. É o olhar que se quer inteiro, e requer a visão de seu outro polo, perspectiva oposta talvez, mas complementar, nunca excludente, simplesmente diferente.

Todos nós contamos também, naturalmente, com o sentimento, o pensamento, a sensação e a intuição para captar informações e aferir-lhes valor. Chegamos, assim assessorados, a dados que nos permitem fazer escolhas, tomar decisões, agir. Todas estas funções estão disponíveis em todos os indivíduos, porém algumas delas estarão mais conscientes em uns que em outros, e serão consequentemente mais facilmente utilizadas quanto maior for o grau de consciência por elas atingida. As outras funções, menos conscientes apresentarão um desempenho menos refinado, ao menos, para os padrões da consciência. E, isto fará muita diferença na minha maneira de espelhar o mundo.

Podemos inferir disto que coexistem em cada um e em todos nós uma multiplicidade de olhares, uma miríade de opiniões. E que elas se relacionam entre si em nosso nome, se interpenetram construindo nosso saber. Estes olhares dão corpo à nossa fantasia de eu, à ideia que fazemos do mundo.

Uma pessoa acontece no mundo de uma maneira única. Seu olhar será muito diferente de outro qualquer. Meu olhar é a parcela que me identifica no universo. Na minha diferença sou única. Há importância no um jeito de ver. Através dele existo eu, existe o universo

O olhar acaricia as coisas, se detém sobre elas, perambula entre seus espaços, mas das coisas não se apropria. No olhar elas permanecem vivas, livres. Um olhar só, que se quer mais sábio reclama para si direitos de autor e é, por si só, patológico, unilateral e por isto impotente, nada constrói.

O que estou tentando dizer, e não tenho a pretensão de estar sendo clara, uma vez que falar de olhar é tentar engessar em palavras imagem viva. Mas, vejo que a natureza humana nos prepara para a perplexidade, para a sacralidade do olhar. Para um olhar que em mim não é só meu, para a necessidade de reverenciar o mistério que sustenta a mim, a você, a vida, o universo.

Há sempre mais um outro sentido escondido naquilo que vemos, como disse o prêmio Nobel Steven Chu,” Cada vez que estendemos nossa habilidade de enxergar, nós vemos algo novo”.

Posto isto, imagino estarmos dispostos na terra, qual olhares multicoloridos, delineando uma intrigante paisagem caleidoscópica, a abarcar, num relance, todo o bem e todo mal, toda a luz e toda a sombra. Deste entrelaçamento surgimos lado a lado, de mãos dadas, formando um grande círculo apotropáico a proteger o universo contra a pobreza, a unilateralidade, a superficialidade, numa sociedade que, hoje, se quer estatística, rasa, previsível. Unidos por nossas diferenças, fortalecidos pelas incontáveis perspectivas que delas se originam, chegaremos criativamente a novos caminhos, poderemos então tornar realidade o sonho do poeta: “and the world will live as one.”

 

Curitiba, março de 2008

 

[1] Jung, Carl Gustav -Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo- Volume IX/1 §64

[2] Jung, Carl Gustav-Aion- Estudos Sobre o Simbolismo do Si mesmo- Volume IX/2§1

[3] Zoja, Luigi, Manhã de Setembro –Axis Mundi pág.42

[4] Jung, Carl Gustav: Estudos sobre Psicologia Analítica, Volume VII §246

 

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