Encontro entre "Homens e Deuses": Amorosidade e Intolerância no Filme de Xavier Beauvois - Maria De Lourdes Bairão Sanchez

Ano de Publicação: 2012

Ano de Publicação: 2012

 

Êxtase, arrebatamento, foi meu primeiro sentimento diante deste filme em que o sagrado se expressa de modo mais arquetípico possível, em que seus personagens consagram sua vida dando-lhes significado.

Como diz Mircea Eliade, estudioso dos mitos e das religiões:

 

            “Creio que a verdade essencial da condição humana é o sentido do sagrado.”

 

Passei algum tempo imersa nas imagens e falas do filme, depois, como acontece com os grandes sonhos, senti necessidade de compartilhar e expressar, além do sentimento, conclusões e questionamentos. Precisei ficar muito próxima dos monges, por mais de 1 ano, para poder falar sobre eles.

Quando surgiu o tema do nosso VI Congresso Latino Americano de Psicologia Analítica: Amizade e seus paradoxos: fraternidade, conflitos e (in)tolerâncias, decidi ousar, um pouco mais, e trazer como tema para mesa redonda.

Muitas são as áreas abordadas pelo diretor: Religião, Antropologia, Política Internacional, Relações interpessoais, presentes em cada momento do texto a seguir.

 

“Poderíamos, portanto, dizer que o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso[1].”[2]

 

Trailer

 

Na tentativa de traduzir meu êxtase, produzido por este numinoso de que fala Jung, convido-os a entrar nele a partir das magníficas imagens e das frases sucintas expressas pelo autor, nos diálogos entre os monges, entre eles e a comunidade islâmica, entre eles e os fundamentalistas islâmicos.

Acredito que alguns que ainda não assistiram ao filme poderão nos acompanhar e pelas belíssimas imagens, ainda que parciais, que traduzem a amorosidade e a intolerância tão fortemente expressas por Beauvois.

Para que ele fique mais vivo entre nós decidi passar uma pequena síntese com cenas importantes, “vivência na imagem e da imagem”, como costumamos falar em nossos consultórios.

 

 

O filme de Beauvois se passa na Argélia, em plena guerra civil, 1996, no mosteiro de Tibhirine, nos Montes Atlantes. Um grupo de monges trapistas ali vive, tranquilamente, inserido numa comunidade islâmica com a qual tem relações de amizade, ajuda e mesmo de trocas comerciais. Importante lembrar que o filme foi inspirado em fatos reais, tanto que monges trapistas que o assistiram se sentiram imensamente identificados.

A Ordem Trapista, oficialmente Cistercienses, tem origem na França, no Mosteiro de Notre Dame de La Trappe. São beneditinos cenobitas, isto é, que vivem em comunidade e seguem, portanto a regra fundamental de São Bento, ora et labora, centro da Alquimia tão devotada pela Psicologia Analítica.

 

 

 

Além da pobreza, castidade e obediência, tem um voto a mais, o voto de estabilidade: o de permanecer no mesmo mosteiro até o fim de seus dias… Este voto pode contribuir, também, para a compreensão das decisões finais colocadas pelos monges.

O que de fato levou este grupo de pessoas para os Montes Atlantes?

O filme começa com uma imagem muito clara e panorâmica do mosteiro e de toda região. Uma imagem que revela expansão.  Logo em seguida aparece entrando e saindo do mosteiro o rapaz que ajuda os monges: portas abertas para entrar e sair do mosteiro, que representava quase uma continuidade da aldeia!

 

Imagem da ligação aldeia/mosteiro

 

Um mosteiro em que vivem 8 monges, sendo Cristian o líder, o prior, que falava árabe, meditava inclusive numa Bíblia escrita em árabe, lia o Corão e que fazia bienalmente, grupo de estudo com mulçumanos sufis e Luc, o monge médico, que diz ser um homem livre, como aparece no trailer e por isto não teme a morte.  Ambos, protagonistas do filme, a partir dos quais vou relatá-lo.

 

 

O monge médico, Luc, atende à comunidade, desde muito cedo, como, médico, psicólogo e assistente social, utilizando uma forma de comunicação além da linguagem escrita e falada, desenhos das receitas, uma linguagem vinda do coração, como o trecho a seguir:

 

Imagem da menina sendo curada

 

Um monge cuja função sentimento muito bem trabalhada aproxima a comunidade que revela grande intimidade com ele.

 

Diálogo sobre o amor.

 

O trabalho monástico é literalmente um labor-oratório: os monges contribuem para a organização social da comunidade e participam dela executando várias atividades. Ao mesmo tempo entram em meditação profunda na leitura dos textos do evangelho e compartilham cantos gregorianos, como já mostramos no trailer.

O sacro ofício é inerente e imanente à vida de cada um deles. É ao mesmo tempo um processo pessoal e um processo coletivo, uma expressão profunda de comunhão: É uma verdadeira expressão do que se chama em psicologia analítica de processo de individuação.

Solve et coagula é a experiência, especialmente a de Cristian, o líder grupal, no confronto entre os princípios da Bíblia e do Corão, de Cristo e do profeta Maomé. É a experiência da enatiodromia para chegar ao si-mesmo, o enfrentamento dos opostos para se chegar naquilo que de fato se é.

A cada momento se pode perguntar o que levou aquele grupo de monges a Tibhrine, não no trabalho pastoral como fazendo parte de uma ordem religiosa, mas cada um deles como pessoa envolvida com uma busca de si mesmo a partir do contato profundo com o outro, que é seu igual e com o outro tão distinto, tão assimétrico também!

Aqui uma imagem da festa seguida circuncisão do menino, e a explicação das peculiaridades culturais, bem como da tentativa dos monges de fazerem parte, de viverem esta religiosidade participativa, sendo redundante, intencionalmente, envolvente.

 

 

“Quanto mais religioso é o homem, mais real ele é, e mais ele se desvia da irrealidade de um dever privado de significação. Daqui a tendência do homem para “consagrar” toda sua vida.” (Mircea Eliade)

 

A partir de um determinado momento, são ameaçados tanto pelo Grupo Islâmico Armado (GIA) quanto pelo Exército Islâmico de Salvação (AIS) por quem são impelidos a receber proteção, num primeiro momento e depois, são convidados a deixarem a Argélia, ou pelo menos os Montes Atlante. Ambos, fundamentalistas, tinham os estrangeiros como alvo e os próprios nativos que não obedeciam a regras, especialmente as mulheres.

 

Reunião com a comunidade

 

Visitas frequentes dos militares, voos de helicópteros rasantes sobre o mosteiro e tentativa de entrada forçada nas dependências exclusivas dos monges, que faziam uma barreira contra isto, tornam-se frequentes. Vivem entre duas forças muito distintas que, de um certo modo, tem a dominação francesa como pano de fundo.

 

Fala do mandatário.

 

Na noite de Natal são “visitados” pelos terroristas do GIA.

 

Esta visita inicial dos terroristas é com a intenção de sequestrar o médico Luc e seus remédios…, como vocês puderam ver, é a cena diretora do filme.   Muito importante que na saída o terrorista sai, cumprimentando Cristian, com um aperto de mão, o que deixa Cristian perplexo.

Podemos fazer muitas digressões trazendo esta situação para nossas casas, nossos consultórios, ritualizando as passagens no próprio cotidiano, na tentativa de transformar em simbólico o que parece apenas diabólico, como Jung comenta no vol. IX/1, a psiquificação do arquétipo do sentido, que nos remete diferentes etapas da existência.

Em que, Mercúrio que une, também separa: difícil para Cristian dar a mão ao terrorista, apesar de ele próprio aspirar por um diálogo verdadeiramente espiritual, não unicamente inter-religioso, dogmático, mas fundamentado principalmente sobre as experiências de convívio.

Ribât-el Salam – Vínculo da paz

Na psicologia analítica o contato com o espírito é o contato com o mundo dos mistérios. O confronto entre diferentes culturas e religiões situa-se aqui: inicia-se e não se sabe mesmo como será este processo.

O diálogo verdadeiramente espiritual não se baseia nos dogmas das religiões, mas, na experiência religiosa de aproximação na diversidade. A crença hermética de que pode existir uma ponte entre as diferentes maneiras de se viver a espiritualidade.

A espiritualidade é vivida sob a forma de grande fraternidade expressa pela plenitude da vida monástica diante da aridez do meio circundante.

O líder do grupo monástico ressalta em diversos momentos, que a verdadeira fraternidade consiste em viver par a par com a comunidade e não como um grupo especial paralelo.

O filme assinala a diferença entre a espiritualidade vivida com a comunidade e com os fundamentalistas e militares… Um dos monges pede a Deus que ele morra sem ódios, ódio produzido pelas diferenças até mesmo em relação ao amor.

Questões aparecem no convívio entre os monges: medo, competição, descrença, questionamentos sobre continuar no mosteiro diante de um clima de muita ambiguidade e insegurança.

Cristian toma sozinho, a decisão, de não querer a proteção da polícia, mas, na reunião do capítulo é interpelado pelos monges: “elegemos você para nos representar e você decide sem consultar a comunidade.” Outra situação tão presente na nossa experiência profissional e pessoal.

Por outro lado, cenas belíssimas de cooperação mútua. Por exemplo, Cristian dialogando com o monge apaixonado pela jovem da comunidade, lembrando que ele havia feito outra escolha e que estava ali em busca de outro sentido.

 

Imagem do olhar amoroso

 

Luc, o monge médico e asmático, ouve história contada por outro confrade até conseguir dormir. Luc examinando o mais velhinho de todos com muito carinho. Cristian tira os óculos de Luc que adormece lendo depois de superar a falta de ar.

Várias cenas do filme que mostram a transformação da aldeia pela presença dos monges. Depoimentos dos líderes comunitários, em uma reunião, revelam como o fechamento do mosteiro seria um desastre para a aldeia!

 

 “Somos os pássaros, vocês os galhos, se vocês se forem, aonde iremos pousar?”

 

A experiência arquetípica de busca de significado pode ser vislumbrada pelos depoimentos informais de cada monge bem como nas reuniões da comunidade monástica. Na reunião de decisão final, se deveriam ou não permanecer em Tibhirine, sair ou permanecer na Argélia, os depoimentos revelam que ali permanecer não é mais uma questão de escolha, mas, uma questão de imanência. Não como um martírio, ou suicídio coletivo, mas, como uma premência, segundo o depoimento dos monges:

 

 “Partir é fugir e abandonar a aldeia aos terroristas; partir é morrer[4]!”

 

 

 “O bom pastor não abandona sua manada quando chega o lobo.”

 

A cena de Frei Cristian meditando e orando na chuva é emblemática de como o processo de individuação é entremeado por grandes dores e angústias.

Outro monge diz: “Morrer pela fé não deveria impedir-me de dormir!”

Em meditação, Luc, o monge médico, lê o pensamento de Pascal:

 

 “Os homens fazem o mal tão completa e alegremente quando eles o fazem por razões religiosas, gerando confusão e violência.”

 

Lembro-me de um filme que se chama Em nome de Deus, em que Abelardo e Heloísa são punidos por viverem um grande amor, execrado pelo dogma, que, como diz Jung, ocorre quando o símbolo perde sua vitalidade.

Na última quinta-feira, dia 13[5], Clóvis Rossi escreveu um artigo sobre o massacre de diplomatas na Líbia que se chamou: Em nome do pai, do filho e do ódio., em grande consonância com o que estamos tratando aqui.

Quando chega o monge Bruno de outro mosteiro Cristian faz uma síntese de todos os acontecimentos concluindo que depois da invasão, celebraram o Natal acolhendo o menino que nasceu pela e para a paz. Além disto, diz ele, voltamos à realidade cotidiana: jardim, cozinha, sino, escritório, consultório, tudo um dia depois do outro. Guiados então pelo arquétipo do significado ou seja encontrar um pequeno sentido onde parece não haver nenhum![6]

 

 

A última ceia acontece logo depois da chegada do monge Bruno e é uma expressão da espiritualidade, uma expressão de coniunctio no seu mais alto grau! O lago dos cisnes de Tchaikowski é um ícone, eles dançam o Lago dos cisnes, como num processo de individuação. Celebram a vida diante da morte iminente. Cada detalhe da cena é imprescindível!

Imagem da ceia e os rostos de cada um, alegres, perplexos, sérios de olhos úmidos, umidade que vai virar neve logo depois.

No momento em que de fato o mosteiro é invadido pelos terroristas e os monges são colocados numa van, com exceção de dois que não são encontrados, e são entrevistados: cada um tem que dizer quem é e como está.  Parece que a intenção do diretor foi primeiro preservar a lembrança de cada um como indivíduo para depois permitir a volta ao todo, ao momento comum diante da morte.

A imagem arquetípica da transformação vai sendo vislumbrada desde o início do filme a partir do Salmo 82:

 

“Eu disse: vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo! Entretanto, como homens morrereis e como qualquer príncipe caireis.”

 

O filme se apresenta a partir do salmo 82 e termina com a experiência final de resignação diante do imponderável, vislumbrada desde o início.E fica a questão quando são  homens quando são  deuses, quem são os homens quem são os deuses, e como é o confronto dentro deste mistério,  como símbolos inesgotáveis, que neste filme se apresentam a partir de imagens, no início, de uma natureza muito clara e cheia de fecundidade, de expansão, e no final, uma imagem de afunilamento, um esmaecimento dos homens que vão se tornando natureza, natureza branca, neve, albedo, delineando de algum modo o percurso da vida , entrando no que Jung chama de arquétipos de transformação, símbolos verdadeiros e genuínos que não podemos interpretar exaustivamente, por sua ambiguidade e por serem inesgotáveis.[7]  Estes símbolos que nos remetem para o mais essencial como o expresso no Rosarium Philosophorum:

 

“Quando vires a terra como neve branquíssima…é a cinza extraída da cinza e da terra, sublimada e honrada… é o bem procurado na terra branca em forma de folha.”[8]

 

 

Poema de Rumi, persa Sufi, após o assassinato de seu mestre:

 

Eu era a neve e em teus raios derreti

A terra me sorveu, nevoeiro de espírito, volto a subir em direção ao sol.

Tu estavas adormecido enquanto a água da fonte jorrava sobre ti

Despertes do teu sono e alcances a taça da eternidade.

 

 

[1] Numinoso que foi definido por Rudolf Otto no seu livro – O Sagrado – Edições 70

[2] Religião dentro da perspectiva assinalada – Jung no §9 – vol. XI, Psicologia e Religião

[3] Ribât-el Salam – Vínculo da paz

[4] Morrer para uma vida com sentido e viver num mundo sem sentido.

[5] 13 de setembro de 2012

[6] Jung, Carl Gustav – Vol. IX/1 § 65

[7] Jung, Carl Gustav – Vol. IX/1§ 80

[8] Citação do §149 do vol. XIV

 

Atenção: Os vídeos não estão inseridos no arquivo para download, somente texto e imagens.

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