Da Aldeia Global ao Eu Profundo - Maria de Lourdes Bairão Sanchez

Ano de Publicação: 2003

Ano de Publicação: 2003

Tenho que começar comentando o quão difícil está sendo iniciar este texto cujas imagens são tão nítidas, passam como que numa tela mental, mas, para as quais me faltam palavras!

 

A melhor possibilidade foi a de emprestar as palavras da antropóloga Margareth Mead[2] que em seus escritos sobre as sociedades da Nova Guiné, os Arapesh das montanhas, os Mundugumor do rio e os Tchambuli do lago, começava com o seu famoso “from where I sit”.

De onde me situo, pretendo desenvolver este tema sobre MIDIA E ESPAÇO PÚBLICO NA CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE, trazendo para vocês de que modo venho dialogando com a Mídia, há muito mais tempo do que imaginava. Tentarei minimizar o caráter intimista das reflexões trazendo pensamentos de autores que também me conduziram às mesmas.

Tempos atrás (1998) fui sujeito de um assalto, com um grupo de 12 pessoas, na então pacata Curitiba, denominada cidade de primeiro mundo. O assalto, aliás bem no meio de um seminário sobre A verdade nua, cap. 3 de A Psicologia da Transferência, durou aproximadamente 45’ e dele todos saímos ilesos, mas muito violentados emocionalmente. Escrevi ao grupo um pequeno texto sobre “Uma tentativa de transformar em simbólico o que parece apenas diabólico”, em que defendia a violência como possibilidade arquetípica, vivida já por nossos pais primordiais só que neste momento da história da humanidade acabava se exacerbando porque estava sendo contada em prosa e verso, dissecada com todos os detalhes, por mais bizarros que pudessem parecer, enfim, abençoada por uma deusa não olímpica  que havia colocado em segundo plano todas as outras: a Mídia. Obviamente que meu radicalismo causou discussões infindáveis, mas como a intenção era a melhor possível, a de que as pessoas não se deixassem devorar efetivamente nem por uma nem por outra, acabei por ser perdoada.

Na tentativa de ampliar meu ponto de vista sobre este assunto, no Congresso Latino Americano em Salvador coordenei um café temático em que intermediei um diálogo entre duas deusas da contemporaneidade: Mídia e Economia, quando tentei numa relação face à face, mobilizar aspectos profundos de um mundo aparentemente tão superficial. Desde então venho relendo aquele que podemos considerar o primeiro comunicólogo: Marshall McLuhan.

 

Em 1966 Marshall McLuhan gráfico Quentin Fiore) então chamado pela primeira vez, comunicólogo, publicou The medium is the massage, título que ao ser decomposto se auto define: mass age, idade das massas, ou seja, o próprio meio é a mensagem e a massagem também. A tradução em português, no ano de 1969, obedeceu ao mesmo princípio e assim O meio são as Massa-gens, chegou a nós, jovens adultos letrados dos anos 60, como o arauto dos novos tempos, da ERA ELETRÔNICA. O tradutor[3] justificou o título em português assinalando que a mensagem dirigida às massas nelas produz efeito semelhante a de uma massagem condicionadora, referindo-se ao trocadilho de McLuhan.  O que passa a valer, dentro desta perspectiva, é muito mais o COMO se informa do que o QUE se informa; dizendo de outro modo, a forma se sobrepõe ao conteúdo da informação, as imagens passam a ter um valor maior do que a interpretação das mesmas e portanto as especificidades entram para segundo plano, e, conclui McLuhan, “A Nova Interdependência Eletrônica Recria o Mundo à imagem de uma Aldeia Global”.

Vocês que me acompanham, já puderam perceber que em toda aldeia que se preze há duas figuras chave, o cacique e o pajé ou xamã, representados, portanto em nossa aldeia global respectivamente, pela Economia e pela Mídia, tema específico de nossa discussão. O cacique de uma aldeia é responsável por questões referentes a aspectos cotidianos e de infra-estrutura, aspectos explícitos da aldeia. O xamã é o intermediário entre os mistérios e o mundo cotidiano, transformando e organizando experiências caóticas em experiências simbólicas.[4]

O fenômeno midiático sempre esteve presente na humanidade, Hermes, (que transita também pelo mundo das trevas,) que não nos deixa mentir, entretanto a consciência que temos dele, iniciou-se, penso eu, com os estudos sobre comunicação.

          

A primeira “marca” de que tenho lembrança é a do IV Centenário de São Paulo quando comemorávamos, entre amigos e família os 400 anos de São Paulo no inacabado Parque do Ibirapuera, e, com muita euforia saímos correndo atrás de um teco-teco, que jogava mapas do Estado de São Paulo, confeccionados em papel de alumínio. Nesta época já existia televisão, a TV Tupi, que passava jornais, talvez o Repórter Esso, um pouco de programa infantil e a TV de Vanguarda, no domingo à noite, teatros magníficos, com Cacilda Becker e companhia: tabu para os menores (comuns naquela época) e o grande programa da semana para os adultos.

O mesmo Repórter Esso que trouxe as primeiras imagens do assassinato de Kennedy, em 1963, talvez uns dois dias depois de ter sido noticiado pelo rádio, quase que imediatamente após o fato. McLuhan lembra-nos que o enterro de Kennedy foi o primeiro fato que comprovou “o poder da televisão de revestir uma ocasião com o caráter de participação coletiva”, envolvendo uma população inteira num processo ritual. Vejam bem que em apenas nove anos conseguimos perceber já uma enorme diferença   no papel da TV, antes local e agora já global!

Pouco tempo depois (1966), cursando “Filosofia Pura” na USP, entrei em contato com outra marca, mais “tribal”, para usar o termo de Maffesoli[5], a de que participávamos de um “oásis intelectual no Brasil”, situação muito mais amedrontadora do que criativa: sentia-me ao mesmo tempo uma incapaz intelectual e perdendo tempo quanto às questões sociais. Podemos adiantar que neste momento já se precisava delinear espaços para se defender do que estava para acontecer.

Esta experiência tribal para o compartilhamento de valores, lugares e ideais que estão absolutamente circunscritos, e quer queiramos, quer não, vivemos num encontro como este.

Bem, a marca tribal ficou e deve ter me energizado para trazê-la aqui até hoje! Então fomos ao cinema para assistir ALPHAVILLE, obra prima de Jean Luc Goddard que tratava de um mundo organizado em volta de um imenso computador que falava ininterruptamente, em linguagem binária, “libre”, “occupé”, numa tentativa de, como Orwell, com seu 1984, alertar ás mentes para este controle que hoje em dia vivemos e tentamos, em vão, sair.

Memórias, Mídia e Reflexões! Difícil selecionar apenas algumas delas!

Os anos 60 foram marcados por todo tipo de reação à globalização (que ainda não era assim denominada), inclusive através de movimentos estudantis e de discussões nas universidades (como por exemplo, o protesto contra o programa MEC-USAID) e fora delas sobre o que poderia “aparecer” ou não nos meios de comunicação de massa.

Lembro-me que em 1968 quando foi realizado o primeiro transplante cardíaco, pelo Dr.Zerbini, no Hospital das Clínicas da USP, um médico também de ponta, recusou-se participar do procedimento pelo fato de ele estar se tornando um “evento”, pois seria transmitido pela televisão, e, portanto, eticamente questionável, já que se caracterizava como uma invasão da privacidade do paciente.

Os tempos mudaram, mas ainda nos dias atuais pensadores[6] discutem que muito freqüentemente as entrevistas que se submetem às regras jornalísticas transformam informações científicas em sensacionalismo, revelando o mesmo tipo de preocupação com o que o que foi assinalado 35 anos atrás.

Há, entretanto, uma outra forma de analisar a mesma questão: as informações menos sensacionalistas provenientes da Mídia tem propiciado um menor abuso do poder nas profissões de saúde e além disto, criado grande espaço para as redes de solidariedade, tanto no campo da saúde como em muitos outros. Com o advento da TV a Cabo, as entrevistas jornalísticas e os programas televisivos de divulgação científica revestiram-se de uma seriedade jamais imaginada naquela época, e funcionando como gatilho para muitos procedimentos produtivos.

Civilização em transição!

Todas estas confusões devidas às transformações tecnológicas e midiáticas sobre as relações sociais e interpessoais já haviam sido previstas por Alvin Tofler[7] e a diferenciação entre o que poderia ser de domínio público e de âmbito do privado tem rendido verdadeiros compêndios e como todos sabemos, inclusive dentro da Psicologia Analítica.

Jung, ele mesmo, em muitos de seus trabalhos discutiu sobre o tema. Assinalou que, por exemplo, nas sociedades tradicionais alguns sonhos permanecem com o indivíduo, outros devem ser compartilhados com o grupo.

Confirmando esta constatação num encontro em Curitiba, no mês de junho, de 2003, pude assistir ao filme de Siã Kaxinauá, índio Kaxinauá, do Rio Jordão, Acre. Siã teve um sonho que ele deveria fazer um filme sobre sua gente. Fez o filme, com os seringueiros da região e com o auxílio de uma ONG enviou-o aos   Estados Unidos, aonde foi premiado, auxiliado pelos meios de comunicação que o ajudaram a chegar até lá: com o dinheiro do prêmio comprou mais terras para seu povo, revelando que a Mídia é detentora do domínio público, mas inspiradora do âmbito privado. Neste sentido ela nos expõe a uma série de experiências potenciais, podemos mesmo dizer, arquetípicas[8], as quais tem que ser humanizadas para se atualizarem.

Nós humanos do século XXI vivemos o que podemos chamar de paradoxo da informação: excesso de informação para alguns, leia-se excesso de formas, por um lado e a ansiedade perene pela impossibilidade de digeri-la, por outro, de tornar estas formas significativas. Ignácio Loyola Brandão fala de uma vida como se fosse um vídeo-clip.

Diversidade e transitoriedade são as palavras de ordem!

O que faz as pessoas temerem relacionamentos mais profundos ou será que sempre os tememos, só que sem consciência disto?  Dizendo de outro modo, a psique, dissociada por natureza, caminha por uma contínua busca de integração interceptada pelo excesso de possibilidades que podem nos manter num estado de torpor, como diziam os alquimistas, permanecendo num sono profundo.

É como se nos faltasse um coador de boa qualidade para que pudéssemos fazer escolhas e experienciar esta informação que em si é algo extremamente coagulado: muito pó, com pouca água, impede a passagem do conteúdo informático pelo coador. Ou será que o estágio chamado coagulatio é uma característica da psique que num certo sentido, defende-se continuamente temendo sair do caos da dissociação?

A Psicologia Analítica oferece-nos um coador de qualidade que é o desenvolvimento da função sentimento[9], aquela que nos permite fazer escolhas, fluidificar a informação, no sentido de escolher sem pressa o que me serve daquilo que pode ser desprezado a nível pessoal, para que ela não permaneça apenas como o pó que fica nas estantes dos livros abandonados!

Em um artigo sobre a mídia e o combate à exclusão social, Oded Grajew, leia-se Instituto Ethos, Fórum Social Mundial, comenta que todos somos dotados de liberdade de escolha, podemos fazer diferentes escolhas, mas muitas vezes por questões associadas ao ritmo do dia a dia, expectativa que os outros têm de nós e do que é valorizado socialmente, reduzimos nossa capacidade de avaliar e de fazer as escolhas que mais combinam com nosso próprio jeito de ser.

Com o advento da internet os próprios meios de comunicação têm nos oferecido este coador para o qual, parece-me, ainda não estamos preparados.

Muitos aqui podem não concordar mas a verdade é que a internet por exemplo, é fonte e vaso de aprofundamento, no sentido de permitir ao sujeito olhar para conteúdos dissociados: ouço o relato tanto de adolescentes como de adultos que expõem muitíssimo de suas idiossincrasias, de seu eu profundo, em conversas virtuais. Este outro virtual pode se constituir numa tentativa da psique de fazer a coniunctio de aspectos dissociados.

Cada vez que aparece nos programas de TV o convite para se acessar o endereço eletrônico, o e-mail, em programas sérios como Roda Viva, Observatório da imprensa, está se criando uma possibilidade de escolha por parte do expectador, numa tentativa de subjetivar o público, de envolvê-lo, de transformá-lo em participante do processo. É como se a deusa fosse liberando partículas para ser humanizada, convidando-nos a nos manter presentes na experiência maior, integrando-nos no sentido de ampliar nossa própria consciência, de nos inspirar na busca do caminho da auto-realização[10].

O grande físico N. Bohr afirmava que o contrário de uma verdade profunda é outra verdade profunda, o que se aplica a nós, adultos do século XXI, resistentes às transformações, que como nossos pais ancestrais, ao mesmo tempo, aproximavam-se e fugiam, do fogo.

O que nos amedronta em relação aos chamados midiáticos é a idéia de superficialidade? Ou será mesmo a de sairmos de nossa própria experiência incestuosa e de nos encaminharmos para a transformação?

Penso que, como para as outras deusas vale também para a Mídia o processo de Enantiodromia, momentos em que nos permite fazer coniunctio, outros em que nos encaminha para a disjunctio, num movimento contínuo de dissociação e simbolização, entre o diabólico e o simbólico.

Procurei sintetizar aqui com vocês, ainda que parcialmente de que modo a Mídia tem sido inspiradora da minha própria subjetividade.

Deixo como proposta de continuidade de discussão a afirmação de Nietzche, que por ser tão radical, relativiza o tema em questão:

“Tudo que é profundo ama a máscara…todo espírito profundo tem necessidade de uma máscara.

Direi ainda mais: à volta de todo espírito profundo cresce e floresce sem cessar uma máscara.”

 

BIBLIOGRAFIA

 

Jung, C.G.

Vol. IX –  Arquétipos e o Inconsciente Coletivo – Ed. Vozes – 2000

Vol. XVI/2 – Ab-reação, Análise dos sonhos, Transferência –  Ed. Vozes 1987

Vol. XVIII/1 – Fundamentos da Psicologia Analítica – Ed. Vozes 1983

 

Lévi Strauss, C – Antropologia Estrutural -Tempo Brasileiro – 1975

 

Maffesoli, M – Ed. Forense – 1987

 

McLuhan, M – O meio são as Massa-gens – Ed. Record – 1969

 

Mead, M. Sexo e Temperamento- Ed. Perspectiva – 1979

 

Morin, E. – As duas globalizações-E. Sulina- 2002

 

Tofler, A – O choque do Futuro -1970

A Terceira Onda – 1980

 

[1] Trabalho apresentado no XI Encontro da Associação Junguiana do Brasil- Civilização em Transição- Angra dos Reis-2003

[2]Mead, Margareth- Sexo e temperamento- Ed. Perspectiva – 1979

[3] Ivan Pedro de Martins, Ed. Record

[4] Lévi Strauss, Claude –Antropologia Estrutural, A eficácia simbólica

[5] Maffesoli, Michel- O tempo das tribos, o declínio do individualismos nas sociedades de massa-Editora Forense- Rio de Janeiro-1987

[6] Morin, Edgar- As duas globalizações- EDIPUCRS, ED. Sulina, P.Alegre-2002

[7] Tofler, Alvin- O Choque do Futuro-1970 e A terceira Onda, 1980

[8] Retomando as reflexões contidas no início da página 2, podemos fazer uma aproximação entre a deusa Mídia e a experiência mítica ou arquetípica e, relembrando o parágrafo 155 do Vol. IX/1, em que Jung afirma que “O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma de sua representação.”

7 A definição de função sentimento dada por Jung nas Conferências de Tavstock: “O sentimento nos informa, através de percepções que lhe são inerentes, acerca do valor das coisas.É ele que nos diz por exemplo, se uma coisa é aceitável, se ela nos agrada ou não.”

[10] No vol.XVI/2 par. 448, Jung, afirma que “O processo de individuação tem dois aspectos fundamentais: por um lado, é um processo interior e subjetivo de integração, por outro, é um processo objetivo de relação com o outro, tão indispensável quanto o primeiro. Um não pode existir sem o outro, muito embora seja ora um, ora o outro desses aspetos que prevaleça.”

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