Cora-Coragem - Dulce Helena Rizzardo Briza

Ano de Publicação: 2006

Ano de Publicação: 2006

Texto para o XIV Congresso Internacional da Associação Junguiana do Brasil – MUNDUS IMAGINALIS

 

CORA-CORAGEM

“Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau olhado,

acocorada ao pé do borralho,

olhando para o fogo”…….

“Vive dentro de mim

a lavadeira do Rio Vermelho

seu cheiro gostoso

d’água e sabão

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito

Vive dentro de mim

A mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

Desabusada, sem preconceitos

Vive dentro de mim.

-Enxerto da terra,

Meio casmurra.

Trabalhadeira”………………

“Vive dentro de mim

A mulher da vida.

Minha irmãzinha…

Tão desprezada”……….

“Todas as vidas dentro de mim.

Na minha vida –

A vida mera das obscuras”.

(“Todas as Vidas”)

 

Assim Cora Coralina se apresenta. Para alguns, a pessoa mais importante de Goiás, que nasceu em 1889. Cora do coração do Brasil.

E assim se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de analfabetismo”.

Como dizia Drummond, “uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é”.

“Sou mulher como outra qualquer.

Venho do século passado

E trago comigo todas as idades…..

“Sendo eu mais doméstica do

Que intelectual,

não escrevo jamais de forma

consciente e racionalizada, e sim

impelida por um impulso incontrolável.

Sendo assim, tenho a consciência

de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas o meio,

o tempo, as criaturas e fatores

outros contramarcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira

do que escritora, sendo a culinária

a mais nobre de todas as Artes………

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata

Sempre houve na família, senão uma

hostilidade, pelo menos uma reserva determinada

a essa minha tendência inata.

Talvez, por tudo isso e muito mais,

Sinta dentro de mim, no fundo dos meus

reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.

Sobrevivi, me recompondo aos

bocados, à dura compreensão dos

rígidos preconceitos do passado ………

Apenas a autenticidade da minha

poesia arrancada aos pedaços

do fundo da minha sensibilidade,

e este anseio:

procuro superar todos os dias

minha própria personalidade renovada,

despedaçando dentro de mim

tudo que é velho e morto.”

(“Cora Coralina, quem é você?”)

 

Podemos acompanhar a história desta velha sábia que foi no decorrer da vida processando a união interna dos seus sentimentos mais opostos e assumindo sua inteireza. Parece não ter tido medo de confrontar a sombra, que foi integrada também através da feitura dos versos e contos, da plantação de flores e do fogão à lenha.

Viveu intensamente, relacionando-se com as diferentes Coras que falavam dentro dela e com as mais diversas pessoas que fizeram parte de sua longa vida e do seu meio. Dedicou várias poesias e contos aos menos favorecidos, à lavadeira, aos presidiários, às prostitutas, aos camponeses, demonstrando enorme engajamento e compromisso social, que exerceu também em suas ações.

Sua poesia tem um tom brejeiro, singelo, coloquial, lírico-narrativo, muitas vezes autobiográfico, que incomodou a muitos críticos e encantou a tantos outros. Encantou entre muitos Carlos Drummond de Andrade, que a caracterizou como um “diamante solitário”, ao constatar seu pensamento independente. E ela aceitou essa independência, suas responsabilidades e seus limites.

Cora lidava bem com os opostos, sem conflitos, unindo matéria e espírito, luz e sombra, contando sempre com a participação de Eros.

Seu processo nesta vida foi um tornar-se a si mesma, de maneira inteira, individual. Assim, de obra libertária, sua poesia nunca foi convencional, ainda que possa ter tido influência Modernista.

Sua obra foi lançada em 1965, quando já tinha 76 anos!

Autodidata, frequentou a escola por dois ou três anos e sempre rendeu homenagens à sua professora, mestra Silvina, à qual dedicou seu livro “Vintém de Cobre”, dizendo: “Foi pela didática paciente da velha mestra que Aninha, a menina boba da casa, obtusa, do banco das mais atrasadas se desencantou em Cora Coralina”.

Cora Coralina, coração vermelho, vermelho vida, vermelho rubedo, que nasceu Aninha em 1889. Aninha, que apesar de descendente de donos de sesmarias, teve infância pobre, triste e difícil. Na poesia “A menina mal-amada”, nos fala:

“Eu era medrosa e nervosa. Chorona, feia,

de nenhum agrado

Menina abobada, rejeitada.”

 

Logo após o nascimento, seu velho e doente pai morreu.

“Me achei sozinha na vida. Desamada,

indesejada desde sempre”………………

“Enquanto ia crescendo lá pelo terreiro,

Suja, desnuda, sem carinho e descuidada,

sempre aos trambolhões, com minhas pernas moles

ganhei até mesmo um apelido entre outros,

perna mole, pandorga, chorona, manhosa”………..

“Sempre sozinha, crescendo devagar, menina

inzoneira, buliçosa, malina”……….

Quando adolescente:

“Passei a ser detraquée”………..

“Eu, perna mole, pandorga, moleirona,

Vencendo sozinha as etapas

Destes primeiros tempos. Afinal, paramos no détraquée

Tudo isso aumentava minha solidão

E eu me fechava circunscrita

No meu mundo do faz-de-conta…”

 

E nesse seu mundo, fertilizado pela imaginação e pelas inúmeras leituras que lhe caíam nas mãos, foi criando sua opus. Sempre teve fome de informação.

Quebrando as regras da família e da sociedade de então, fugiu de Goiás grávida e veio para S.Paulo, casando-se oficialmente anos depois. Teve seis filhos. Durante quase meio século morou nesse estado, na capital e nas cidades de Jaboticabal, Penápolis e Andradina. Retornou à sua cidade natal em 1956.

Apesar de ter sido sempre tolhida, inclusive pelo marido, foi em S.Paulo que editou seu primeiro livro. Foi esta cidade a primeira a acreditar em seu valor e a lhe conferir prêmios.

Sem esconder suas dificuldades e frustrações, um dia escreveu:

“A dureza da vida não são carências nem pobreza.

Sofrem aqueles que desconhecem a luta

e menosprezam o lutador.”

 

Crítica ferrenha da educação de seu tempo, proclama:

”Nego o amor dos pais do passado, salvante exceções.

O que eles sentiam era o orgulho da posse,

o domínio sobre sua descendência.

Tudo, todos judiciários e adultos.

Sua hermenêutica sutil de leis,

Interpretação, a favor dos adultos”…………

“Na casa antiga, castigos corporais e humilhante coerção,

Atitudes impostas, ascendência férrea, obediência cega.

Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados”………..

“Aquela gente antiga explorava a minha bobice”…….

 

E afirmou:

“Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles”.

(“Pai e Filho”)

 

Essa mulher, que tanto amava os jovens e os estudantes, um dia pronunciou:

“Tudo que criei e defendi

nunca deu certo.

Nem foi aceito.

E eu perguntava a mim mesma

Por quê?

Quando menina,

ouvia dizer sem entender

quando coisa boa ou ruim

acontecia a alguém:

fulano nasceu antes do tempo.

Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi

Nunca foi feito.

E eu dizia como ouvia

A moda do consolo:

Nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou:

Você nasceria sempre

Antes do seu tempo.

Não entendi e disse Amém”.

 

De alma jovial e curiosa, dizia:

“Venho do século passado e continuo nascendo diariamente”.

 

Cora foi uma grande incentivadora do espírito de brasilidade e uma cultivadora do folclore goiano, como podemos observar em toda sua obra.

Audaciosa e franca, soube transformar sua fragilidade em fortaleza de espírito. Estabeleceu a força e a coragem da singeleza. Passou a vida entre os tachos de cobre, removendo pedras e plantando flores.

Tirou da vida a essência e o néctar doce que pôde ser saboreado. Procurou ir atrás do que a atraía e assustava ao mesmo tempo. Fez de suas limitações um impulsor para a vida e para a poesia.

Poderíamos aqui lembrar do enfoque adleriano da teoria da compensação, que fala que as raízes de superioridades futuras acham-se fincadas em inferioridades antigas. Seria este o caso?

Poderíamos também lembrar o enfoque da teoria da sublimação, onde Freud afirmava que fraquezas primitivas não são simplesmente transformadas em forças, mas também em produtos de arte e cultura.

Mas falando com o espírito de Cora, gostaria de salientar o enfoque hillmaniano, que nos fala da teoria do” fruto do carvalho”, que nos aponta que cada vida é formada por uma vocação que é sua essência e que a leva para um determinado destino.

E é aí que situamos Cora e seu comovente processo, cujo destino estava escrito em sua pequena semente e a fez virar um grande carvalho.

E aqui evocamos Deméter, deusa e mãe da terra cultivada, a “mãe terra”, a matrix universal, a mãe do grão. Também considerada o archote que ilumina o caminho.

E Cora das mãos calejadas faz seu elogio ao milho (“Poema do Milho”) e também a “Oração do Milho”:

“Sou apenas o alimento forte e substancial dos que

trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre”…………

“Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,

que me fizeste necessário e humilde”.

 

Cora construiu seu processo através da inspiração do contato com a terra. Na poesia “A gleba me transfigura”, escreve:

“Sinto que sou a abelha no seu artesanato.

Meus versos tem cheiro dos matos, dos bois e dos currais.

Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.

Amo a terra de um místico amor consagrado num esponsal sublimado, procriador e fecundo”…………….

“Minha identificação profunda e amorosa

com a terra e com os que nela trabalham”.

 

Podemos também conclamar Héstia, a deusa da lareira, personificação do fogo sagrado, o centro religioso do lar dos deuses, assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens. O fogo corresponde à cor vermelha, ao verão, ao coração: Cora Coralina.

Cora e seu fogão à lenha, trabalhando e fazendo a purificação alquímica. Enquanto mexia a comida e preparava seus doces no tacho, mexendo com a colher de pau em movimentos circulares, circumambulava. E aí acontecia o complexio oppositorum das várias instâncias de sua alma enquanto misturava e apurava os ingredientes das comidas e dos doces.

Fogo da alma de Cora, que sublimava seus sentimentos mais intensos do doce e do amargo da vida e a colocava diante do papel e da pena. Fogo que ardia no fogão favorecendo a regeneração da alma. Fogo que propiciava a alquimia do doce materializando a poesia.

E, orgulhosa, Cora dizia:

“Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior.”

 

Na poesia dessa goiana os costumes, os cheiros, as paisagens da terra, da Fazenda Paraíso e as histórias da Casa Velha da Ponte:

“Meus versos tem cheiro dos matos, dos bois e dos currais”

“Meus versos tem relances de enxada, gume de foice e peso de machado”.

 

Sobre sua arte, escreveu:

“A maior dificuldade para mim sempre foi escrever bem.

A minha maior angústia foi superar a minha ignorância.

Confesso com humildade essas verdades simples e grandes”.

(“Meu vintém perdido”)

 

A palavra “pedra” aparece com frequência na obra da poetisa:

“Entre pedras

cresceu a minha poesia.

Minha vida…

Quebrando pedras

e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam

levantei a pedra rude

dos meus versos”.

(Das Pedras)

 

“Não te deixes destruir…

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça”.

 

“Carreando pedras,

Construindo com as mãos sangrando

Minha vida”.

(“Cântico primeiro de Aninha”)

 

Há uma relação íntima entre a pedra e a alma. Ela também é viva e dá vida. É o local onde se celebram as cerimônias sagradas.

Os alquimistas buscavam a Pedra Filosofal, o “lápis”, o instrumento da regeneração. A regeneração da alma pela graça.

Com as pedras removidas, Cora construiu a estrada por onde caminhou e que a levou à redenção. Construiu o santuário de sua alma e seu edifício espiritual. E falou de “Humildade”:

“Senhor, fazei com que eu aceite

minha pobreza tal como sempre foi.

 

Que não sinta o que não tenho.

Não lamente o que podia ter

e se perdeu por caminhos errados

e nunca mais voltou.

 

Daí, Senhor, que minha humildade

seja como a chuva desejada

caindo mansa,

longa noite escura,

numa terra sedenta

e num telhado velho.

 

Que eu possa agradecer a Vós,

minha cama estreita,

minhas coisinhas pobres,

minha casa de chão,

pedras e tábuas remontadas.

E ter sempre um feixe de lenha

debaixo do meu fogão de taipa,

e acender eu mesma

o fogo alegre da minha casa

na manhã de um novo dia que começa”.

 

Friccionando as pedras, deu origem ao fogo que aqueceu a alma, sendo um facilitador para que ela se manifestasse. E com ele cozeu e apurou” o ponto”. Ponto dos devaneios, da fantasia, da vida. E aconselhou:

“Acende o fogo das geleiras que te cercam”

(“Esta é a tua safra”)

 

Cora não só observou a vida. Viveu-a intensa e vigorosamente: a vida a empolgava.

Afirmava que a vida é boa que saber viver é a grande sabedoria e que é preciso saber recriá-la.

“Eu sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama vida”.

 

Dizia que tinha todas as vidas dentro dela e que todo escritor que fugir da vida está fadado a não passar do primeiro livro. E que escrever é uma forma de comunicação, de recriação da vida. E deixou sua recomendação aos poetas:

“Converse, você, poeta destes novos tempos,

Converse com as sementes e as folhas caídas que pisa distraído”.

(“Recados de Aninha I”)

 

E assim esta mulher envelheceu sabiamente.

“Envelhecer é entrar no reino da grande Paz.

Serenidade maior.

Olhar para frente e para trás

e dizer: dever cumprido”.

 

Foi uma vencedora:

“A certeza de ter vivido e vencido

a maratona da vida”.

(“Menina mal-amada”)

 

Conseguiu até escrever uma “Ode às Muletas” que lhe serviram de apoio após um tombo e uma cirurgia. Mas confessou:

“A gente tem medo dos vivos e dos mortos.

Medo da gente mesmo

Nossas covardias retardadas e presentes.

Assim foi, assim será”.

(“Confissões partidas”)

 

No final da vida constatou:

“Tudo em mim vai se apagando.

Cede minha força de mulher de luta em dizer:

Estou cansada………”

“Deixo de reconhecer rostos amigos, familiares.

Um véu tênue vai se incorporando no campo da retina.

Passam lentamente como ovelhas mansas os vultos conhecidos

que já não reconheço”.

(“Sombras”)

 

E morreu acreditando na vida. Em sua poesia “Eu creio”, diz:

“Creio nos valores humanos

e sou a mulher da terra……….

Creio na salvação dos abandonados

e na regeneração dos encarcerados

pela exaltação e dignidade do trabalho…

Acredito nos jovens à procura de caminhos novos

abrindo espaços largos na vida………

Creio na superação das incertezas

deste fim de século.”

 

E foi numa pedra que mandou gravar seu epitáfio:

“Não morre aquele

que deixou na terra

a melodia de seu cântico

na música de seus versos.”

 

E termino a minha fala através das palavras do poeta Paulo Bomfim:

“Cora-Coragem

Cora-Poesia

Cora-Palavra

Cora-Protesto,

Cora-Justiça,

Cora-Paixão,

Cora-Mulher!

Na inquietação-Coralina,

Na procura-Coralina,

Nos combates-Coralina,

Nos Goiases-Coralina!

E de Cora Coralina,

Veste-se a noite de hoje,

E de Cora Coralina

É o verbo que se faz verso!

Ave Poesia, cheia de graça,

Nave Goiás-Anhanguera,

Benção Cora Coralina”.

E eu falei de Cora-ação!

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