Será possível apresentar uma matéria tão fluida como o devaneio através de um método fenomenológico?
Ao ler a poética do devaneio de Gaston Bachelard, ocorreu-me escrever este artigo baseado no texto, para fomentar em outras palavras o próprio método de trabalho junguiano. Parece bastante filosófico começarmos por questionar com Bachelard, o que significa fenomenológico. Fenômeno – lógico. Como nasce a imaginação e como morre a imaginação? Porque é tão fluida e mágica nas crianças e tão estagnada, travada, em certos adultos? A mágica e fluidez do imaginário infantil consiste especialmente numa capacidade de maravilhar-se. Em outro artigo falávamos de metáfora e parábolas. Através delas apontamos um Reino interior, denominado “Reino dos Céus”. Parece significativo manter este fio condutor em mente, uma vez que nossa perspectiva é de circuambular em torno deste ponto, e fazer dele o fio condutor de nossas reflexões. Como metáfora poderia ser expressado com outras designações, mas optamos por manter uma de suas expressões mais originárias e rememorá-lo aqui, com outras palavras.
Portanto, como se estivéssemos dando continuidade aos passos dados por um caminho, tomaremos agora, emprestadas de Bachelard, novas metáforas para tecer nova rede de significações e, quem sabe, de compreensões. Não será a experiência deste Reino o maravilhar-se, assim como o fazem as crianças?
Fenomenologia não é descrição empírica dos fenômenos, nos alerta Bachelard, sua finalidade é a de colocar-nos no presente em um tempo de extrema tensão, tempo este em que acontece a tomada de consciência. A tensão é interior, assim como a disputa entre os opostos. O devaneio tanto pode ser aquele de uma consciência que se perde, que diminui, que adormece, como fugas para fora do real, o devaneio das idealizações; quanto aquele de uma consciência que cria, na linguagem de Bachelard, uma consciência poética, aquela que quer libertar-nos dos fardos da vida. Aqui, todos os sentidos despertam e se harmonizam, preparando-se, gerando a força com que trarão à tona o ato criativo e, com este, a expressão do maravilhar-se. A este maravilhar-se também chamamos inspiração. “São estes impulsos de imaginação que o fenomenólogo da imaginação deve tentar reviver”.
Para que haja este tipo de fenomenologia do devaneio, é preciso fazer uso da escrita. Dizia Friedrich Schlegel da imagem poética: “é uma criação de um só jato”. E, poéticamente inspirado, Bachelard nos fala de que o amor ainda é para duas pessoas que se amam, o contato entre duas poesias, a fusão de dois devaneios. Mas, não é menos verdade que grandes paixões preparam-se em grandes devaneios. Assim, é precisamente através da fenomenologia que procedemos à distinção entre sonhos e devaneios. Nos sonhos não há interferência da consciência, os sonhos são autônomos; enquanto que nos devaneios há uma interferência possível da consciência que torna esta distinção decisiva. Há uma passagem belíssima de Victor Hugo, escrita em En voyage:
“Aquilo não era nem uma cidade, nem uma igreja, nem um rio, nem cor, nem luz, nem sombra; era devaneio. Fiquei imóvel por muito tempo, deixando-me penetrar suavemente por esse conjunto inexprimível, pela serenidade do céu, pela melancolia da hora. Não sei o que se passava no meu espírito, nem poderia dize-lo; era um desses momentos inefáveis, em que sentimos em nós alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta”.
A fenomenologia do devaneio nos ensina que para devanearmos bem, devemos dizer: comece por ser feliz; então o devaneio torna-se beleza; torna-se um devaneio cósmico e não caótico. Em sua essência mais funda, o devaneio brota da solidão, e porque não pensarmos então que talvez não haja uma fenomenologia do devaneio mas uma fenomenologia que brota do devaneio. Não é do íntimo mais íntimo do ser humano que tudo brota? Não será a fenomenologia uma espécie de “alma nascente”?
Essa possível dualidade, ou duplicidade, foi abordada por JUNG ao colocar a psique sob o signo da ânima e do ânimus. Porém, em se tratando do devaneio, sendo no homem ou na mulher, é sempre uma questão da ânima. É ela quem nos traz a metáfora e sua presença, expressão, na matéria. É ela quem tece com longos fios os rosários das palavras e lhes dá os tons coloridos e fluidos dos textos que nos deixam maravilhados. A ânima, através do devaneio sacraliza seu objeto. Multidões de palavras evocam as cores dos imensos tapetes de era e seus odores nos embriagam quando seduzidos pela sacralidade da ânima. Dizem os poetas: “há assim, flores que nos acompanham a vida inteira, mudando um pouco o seu ser quando mudam os poemas”. Páginas inteiras enchem-se de flores vocais, e as chamamos palavras poéticas.
O masculino, do ânimus, ou aquilo que assim lhe atribuímos pode aparecer como um imperativo. Silêncio! diz a palavra. Mas, quando o silêncio traz paz a uma alma solitária, sente-se que ela prepara a atmosfera para uma ânima tranquila. Podemos então confundir-nos com o devaneio. Sonhador e devaneio se confundem. Rememorando Francis Jammes, lemos:
“Eu dizia “cala-te!”, quando nada dizias”.
Assim, quando se escreve descobre-se nas palavras sonoridades interiores; suas nostalgias, suas afinidades, suas tendências, são todas imantadas pelo arquétipo do Andrógino. A fenomenologia do devaneio não pretende estudar objetivamente a imaginação porque, de fato, só percebemos verdadeiramente a imagem quando a admiramos. Quando somos um com ela; quando co-nascemos com ela. Esse inconsciente do qual nos fala JUNG não é um consciente recalcado mas a natureza primeira, o lugar que como uma dupla antena desdobra-se em androginidade. Ânima e Ânimus são colocados por JUNG, como duas realidade presentes em uma só alma, esta é a androginia necessária para expressar a realidade do psiquismo humano. Diz-nos o filósofo: “Ler, ler sempre, melíflua paixão da ânima. Mas quando, depois de haver lido tudo, entregamo-nos à tarefa com devaneios, de fazer um livro, o esforço cabe ao ânimus”. Androginia bendita, quando podemos suspirar ao ler uma página e encontrar nela outra vez os odores dos jardins da alma. Os odores da infância. Porque “Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus” Mat. 18, 3.
Sonia Regina Lyra
CRP 08/0745
Maio 2005.