A Mutilacao da Alma Brasileira – Dulce Helena Rizzardo Briza

Ano de Publicação: 2003

Ano de Publicação: 2003

III Congresso Latino-Americano de Psicologia Junguiana

 

“Psicoterapia e a Mutilação da Alma Brasileira”

Dulce Helena Rizzardo Briza

 

Nesses anos de prática analítica, tenho observado e trabalhado com sonhos de pacientes nos quais aparecem meninos de rua carentes, menores e maiores abandonados, pessoas mutiladas, situações de extrema miséria e pobreza. Não são sonhos que relatam somente as dores da alma e uma realidade do inconsciente pessoal, mas também demonstram o que expressa nosso inconsciente coletivo.

Nos questionamentos morais e éticos que surgem nos pacientes, na política e na sociedade em geral estão sempre presentes temas ligados a uma claudicância, a uma mutilação, que me fazem parar para pensar na possibilidade de um ensaio de transposição da análise individual para a coletiva, ou seja, buscar os elementos e a dinâmica de nossa psique coletiva e os caminhos que nosso Self Cultural aponta para um resgate, transformação e individuação, se é que isso é possível acontecer numa sociedade como um todo.

Vamos então nos deparar com esse indivíduo chamado Brasil e tentar detectar a mutilação de sua alma.

Partindo do caminho apontado por Burckhardt e Jung, de que o indivíduo é produto de circunstâncias históricas, religiosas, enfim, de sua cultura e que a libido traça o mesmo percurso tanto para o indivíduo como para sua cultura, podemos nos perguntar qual é o sentido da mutilação do indivíduo brasileiro e da alma brasileira? Qual a relação dessa mutilação e da nossa falta de ética? Quais serão os fatores estruturais truncados de nossa psique coletiva desenvolvidos pelos povos que nos formaram, a saber, o índio, o negro e o branco? Qual o papel da psicoterapia e do psicoterapeuta frente a isso?

Um fator importante a ser levado em conta é o herói e sua função de restaurador da saúde, da consciência. Ele é uma figura arquetípica representando um modelo egóico que funciona de acordo com o Self e suas respectivas solicitações. Quando retomamos nosso mito heróico, resgatamos nossa coragem e retomamos nossa razão de viver e de enfrentar os desafios da vida, não só como pessoas, mas também como nação.

E nós, temos heróis de verdade?

Outro arquétipo importante para que a vida seja renovada é o do Sacrifício. Este requer a transformação de uma libido primitiva, irracional, inconsciente, do desejo instintivo, para uma situação de renovação, de consciência, de transcendência.

Na mutilação sem a transformação o indivíduo ou a cultura concretiza a Mãe terrível e fica imerso nela.

A mutilação per se não funciona como agente de mudança. Dessa forma há uma estagnação: fica-se sempre à espera de uma bengala oferecida pela consciência e energia do outro, ou por sentimentos primitivos negativos de ódio, revolta, mágoa, etc, que não são elaborados pela consciência, mas projetados no mundo externo.

Com o Sacrifício e a consciência renunciando ao poder em favor do inconsciente surge a possibilidade de uma união de opostos que facilita a liberação de energia, que bem trabalhada com o auxílio do Ego pode levar tanto o sujeito como a sociedade a uma transcendência necessária ao processo de libertação, de crescimento, de individuação.

Falemos agora da formação de nosso povo e de sua expressão mitológica.

Os primeiros habitantes dessa nossa terra, os índios, viviam numa sociedade primitiva solidária, livre e povoavam uma terra de natureza dadivosa que lhes provia e também a seus descendentes.

A colonização custou a uma nação vigorosa e guerreira em pequeno espaço de tempo uma grande redução em número e uma degradação sem par. Explorados pela cobiça dos brancos, foram esmagados em aldeias ou missões e sofreram a escravidão pelos colonizadores, leigos e surdos aos apelos da alma, e cegos para a riqueza daqueles seres. Estavam alucinados pela ganância e pelos bens materiais. E os jesuítas da mesma forma estavam alienados pela sua teologia messiânica destinada a salvar aquelas almas “perdidas, pagãs e pecadoras”.

Além das doenças, os índios aprenderam a noção de culpa e de pecado, conforme a cultura européia, começaram a temer, odiar, desconfiar e a deprimir. Aqueles que projetaram sua visão mítica do mundo e sua ingenuidade nos portugueses que aqui chegavam foram tratados como simples canibais, vadios e inúteis, pois nada faziam para produzir e juntar bens materiais.

Depois de perder as ilusões de um contato solidário e pacífico, vieram os conflitos de vida e morte. Usados e feitos cativos pelos colonizadores, perderam o Paraíso. Na maioria das vezes preferiram a morte à escravidão e paralelamente surgiu a mão-de-obra negra.

O tráfico de escravos negros era feito pela escória das nações marítimas com extensão e caráter de violência, nunca vistos até então.

A invasão, o cativeiro, a escravização e a viagem da África para a América mutilavam a alma negra. Já a travessia consistia num ritual de passagem sombrio. Além da mutilação simbólica na qual perdiam as raízes, suas riquezas e sua cultura, havia também a concreta, feita por castigos, surras ou por carregar excesso de peso. Os que conseguiam fugir dos capitães-do-mato formavam aldeamentos. O mais famoso foi o de Palmares, tendo como líder o herói Zumbi, traído e morto em 1695. Seu corpo apresentou quinze ferimentos à bala e inúmeras marcas de arma branca. Seu pênis foi decepado e enfiado na boca. Sua cabeça foi tratada com sal fino e enviada ao Recife, onde foi espetada em um pau, exposta em praça pública, como o troféu mais cobiçado dos governantes da época.

Constatamos que houve, nessa mutilação, a castração do pênis (entendido como a ação do Pai) e a da cabeça (entendida como a consciência).

Essa tirania era exercida pelo branco que Portugal nos mandou. Tirando alguns chefes das expedições que aqui aportaram e que vinham formados dentro de um sistema mercantilista e colonialista, os homens que aqui chegaram constituíam uma parcela da sombra social portuguesa: presos, degredados, maus elementos. A mentalidade implantada era a da exploração da terra, para mandar produtos para Portugal e Inglaterra. Assim começou a mutilação do Brasil. Como disse o Padre Vieira em uma carta: “Perde-se o Brasil, senhor digamo-lo em uma palavra, porque alguns ministros de sua majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens”.

A mãe América era a grande provedora e assim tivemos os ciclos do açúcar, do ouro, da borracha e do café. O mesmo se deu com as invasões dos holandeses e dos franceses.

Nesse sistema patriarcal, onde o Pai ora era ausente (estava em Portugal), ora terrível (truculento e opressor), se desenvolveu nossa história.

Convém ressaltar ainda um pilar que influenciou nossa cultura, composto pelos jesuítas.

O projeto jesuíta era bem diferente do colonial mercantil, pois se opunha ao aliciamento indígena para mão-de-obra barata. Seu propósito não era a destruição, mas a criação das missões e a salvação de suas almas.

Como diz Darcy Ribeiro, nossos missionários constituíram uma utopia “seráfica e socialista”, tentando implantar na América, essa despudorada e diabólica terra, uma sociedade solidária, igualitária e pia, com base nos profetas.

Foi instalada então a guerra entre os colonos mercantilistas e os sacerdotes piedosos, que queriam criar uma indianidade cristã com língua tupi-guarani.

A idéia de seu fundador, Inatius de Loyola era “produzir frutos para a glória de Deus”. Criou os Exercícios Espirituais e as “Constituições”, que guiavam o comportamento dos jesuítas.

Além de doutrinar os hereges e catequizar os incultos, pregavam a obediência cega, que deveria se deixar guiar pela providência divina, por intermédio de seus superiores, como se fosse um cadáver (perinde ac cadaver); junto com ela, a abolição da vontade e a docilidade. 

O fundador recomendava ainda muita prudência nas relações com mulheres.

Loyola reprimiu parte de sua personalidade em função da “bondade”, de um Ego Ideal. Daí surgiu que seus seguidores caíram no mesmo engano.

Inácio, em testamento, deixou a seus discípulos uma palavra de ordem: “Ite et inflamate” (Ide e incendiai!).

E foi com esse espírito que os jesuítas desembarcaram no Brasil, introduzindo o paternalismo e a teocracia. O Self Cultural de nossos primeiros habitantes não foi percebido, nem respeitado, nem integrado.

O desenvolvimento da consciência foi imposto segundo os padrões do Self-cultural europeu, sem o respeito ao estágio de desenvolvimento do indígena (participation mystique).

A criança Brasil não teve a chance de fazer uma transição do estado do matriarcado ao do patriarcado num movimento construtivo e saudável, mas pela dominação e mutilação física e psicológica. Instaurou-se o filicídio e o genocídio. A sombra dos colonizadores foi devastadora. É fácil perceber como a nova terra e a população indígena foram alvo das projeções, das fantasias inconscientes das gentes do Velho Mundo.

Também os Exercícios Espirituais aplicados à missão de catequese não serviram para uma ampliação da consciência, mas, via projeção, para imputar e exercitar nos índios aquilo que deveria ser trabalhado e confrontado dentro de cada um dos europeus.

Com a personalidade reprimida por obediência ao princípio perinde ac cadaver, proibidos de entrar em contato com os sentidos, de pecar até em pensamento, agindo com o inconsciente de maneira castradora, esses homens, apesar da boa intenção, constelaram uma força energética que só poderia ser descarregada em cima dos índios, que eram a imagem projetada do pecador interno que queriam eliminar.

Viviam também o inferno das agressões da selva, do desconforto, das privações dos entes queridos, das tentações da carne, do cálice amargo. Disso resultava uma sombra diabólica cujo foco de projeção era a população primeva.

Em seu modus vivendi os índios vivenciavam o lado positivo da Anima, enquanto os jesuítas foram treinados a sufocá-la, automutilando-se e se incumbindo de mutilar a do índio, tarefa que os colonizadores portugueses conseguiram realizar com perfeição. Assim a experiência de nosso Self, que é feita via Anima, às vezes de forma dolorosa, foi destruída.

Violados em suas raízes, em suas terras, em seus corpos e almas, privados da liberdade, a saída dos indígenas foi a morte. E isso acontece até hoje, quando ocorrem suicídios em reservas indígenas. Para outros, foi a profunda depressão e a existência vegetativa; outros ainda, travestidos de europeus, privados da liberdade de ser, desenvolveram o oposto do instinto criativo erótico, o da destruição. Atacaram os brancos, comeram os portugueses, se mataram. O ego ficou desconectado do Self; houve um rompimento com sua matriz essencial e com a possibilidade de vida.

Como representações coletivas da mutilação abordada podemos citar figuras do nosso imaginário: o Curupira, o Saci e a Mula-sem-Cabeça.

O Curupira, cuja função é proteger as florestas é representado como um tapuia com os pés virados para trás, deixando pegadas de modo a confundir. Há quem afirme que a mitologia índia o criou para promover o pânico entre os que destruíam indiscriminadamente as matas e a caça. Os que matavam e destruíam além de suas necessidades corriam o risco de ser atormentados, perseguidos e punidos por ele, que assim tentava estabelecer a ordem na floresta.

Além do espírito ambientalista podemos perceber que esse andar que dissimula e desorienta também pode ser um mecanismo de defesa de quem se sentiu violentado e perseguido por predadores.

O Saci-Pererê é representado mais comumente como um menino de uma perna só, com barrete vermelho e cachimbo na boca; diverte-se criando dificuldades domésticas e espavorindo os visitantes nos caminhos solitários.

É um mito-síntese da alma nacional, pois é um negro que tem muito de tupi, a cor e o rosto do africano e o gorro vermelho dos marujos portugueses. Além das traquinagens ele também faz os viajantes perderem suas direções e tem um aspecto vampiresco, pois suga o sangue dos cavalos.

O vampiro significa uma inversão de forças psíquicas contra o próprio indivíduo.

O cavalo, além de símbolo da Anima, também significa a libido instintiva do inconsciente, a impetuosidade do desejo. Assim, se o Saci suga a vida anímica, a força e energia que leva à transformação, faz um trabalho oposto ao do herói que a liberta, para fazer as mudanças.

Podemos dizer que nosso lado representado pelo Saci está longe de ser um iniciado. Para que isso aconteça, é necessário que haja um sacrifício, de forma que esse Trickster mutilado perca sua forma aleijada e renasça simbolicamente à sua estrutura alada, mobilizando e fornecendo elementos através dos quais conteúdos do inconsciente sejam transpostos para a consciência e também para a transcendência. Assim ele será transformado e deixará de estar conectado apenas com o lado malandro, esperto, indisciplinado e passará a ser realmente um elemento iniciático.

A Mula-sem-Cabeça é a moça solteira que tem relação sexual antes do casamento, ou comadre com compadre; também é a mulher do padre.

Ela aparece na sexta-feira e quando alguém vê essa aparição deve se deitar de bruços e esconder as unhas e os dentes para não ser atacado. Quando encontra uma pessoa, ela chupa seus olhos, unhas e dedos.

A cabeça na Alquimia é um símbolo do Self. Mais tarde foi interpretado como o significado, a essência. Constitui a base de todos os enigmas da Anima.

A busca de questões materiais superando as questões espirituais desencadeia uma desarmonização do espírito e uma perda da predominância da alma. Quando percebemos que a cabeça da mula foi devorada pelo inconsciente, notamos o perigo da loucura.

Os olhos que a mula arranca, nos faz perder a consciência, a visão, a enxergar a realidade, a nos orientar. Para alguns povos primitivos, os dentes são associados aos conceitos de universo e de inteligência. Perder os dentes muitas vezes é perder as defesas, as forças agressivas, a energia vital.

Chupando os dedos e as unhas, ela impede os movimentos mais elaborados, paralisa e arranca mecanismos de defesa necessários, deixando os indivíduos à mercê de suas forças inconscientes subjetivas, individuais e coletivas.

Lembremo-nos que nossa terra era vista como pagã e pecaminosa e faria o homem perder a cabeça. A falta de contato com a Anima e com o inconsciente faz com que o indivíduo, quando possuído por ela, perca a consciência (a cabeça). O instinto então vem à tona de maneira violenta. A Anima do padre deveria ser sacrificada na sua expressão instintiva biológica, transformada na conniunctio com o sagrado.

Quando essa expressão é apenas reprimida, mutilada e não sacrificada, torna-se um complexo autônomo, capaz de engolir a consciência. Ocorre então a possessão pela Anima.

Foi o que aconteceu com grande parte dos nossos colonizadores, que para cá vieram para saquear nossa terra e nossa gente. Inconscientes, sem visão, sem valores éticos, ficaram enlouquecidos pelo abuso do poder e pela ganância.

Essa falta de consciência e de valores de cidadania está presente até hoje na sociedade brasileira.

Constituímos uma nação onde falta lucidez para orientar nossa energia. Tivemos lutas e dizimações, mas não conseguimos sair da opressão e da dependência, da situação e mentalidade de colonizados. Por trás da euforia e mania carnavalesca permeia a amargura e a subjugação do escravo negro e índio. E o grande repressor se resumiu a um patriarcalismo etnocentrista e elitista que desonra e rebaixa nosso povo e nossa alma. Sofremos de um grande complexo de inferioridade.

Buscar respostas politicamente corretas não é tão difícil; o difícil é buscar respostas psicológicas, individuais e coletivas, para nossos problemas. Se não transformarmos a alma individual e coletiva, nenhuma outra revolução será eficaz.

Mas como está nossa alma? Como anda nossa “doença’ que se resume no antagonismo social, onde existe uma pequena camada da classe dominante distante de uma classe média sempre derrapante e outra classe mais miserável, oprimida e abandonada? O que acontece com nosso casal parental? Por que tanta corrupção? Por que tanta burocracia? Como andam nossa ética e nossa consciência? Por que tanto desequilíbrio? Por que tanta indiscriminação? Por que tanta injustiça? Como estamos trabalhando nossa sombra social?

A “lei de Gerson”, o “jeitinho”, a propina, a impunidade, o tráfico de influências, a inconseqüência são todos frutos de uma Mãe indiscriminada e um Pai ausente e terrível. Se exagerarmos nossa função de discriminação da consciência, corremos o risco de reduzir a realidade simbólica. Por outro lado, com o exagero da densidão dos processos inconscientes incorremos no erro da indiscriminação exagerada, na ambigüidade, na amoralidade.

O que é que falta para fazermos nosso efetivo ritual de passagem?

Nossos rituais foram inócuos, não servindo para uma transformação verdadeira. Podemos observar que os movimentos de Independência e de República não foram atos de libertação resultantes da observação da consciência ligada ao Self Cultural nacional, e sim ações de grupos isolados ligados à Corte (na Independência) e ao Exército (na República). Não houve uma oposição sacrificial aos pais; não foram atos do povo no geral, nem houve envolvimento de massa. Os Pais permissivos concederam. Não houve um verdadeiro sacrifício, nem transformação.

Qual seria nossa saída criativa? Onde estão nossos heróis?

Precisamos assumir que nosso processo é lento e dolorido. Não existem saídas rápidas, mágicas, nem milagres – haja visto o “milagre brasileiro” … O fato é que numa época em que vivenciamos o “fast food”, o “clean” e o “light”, e estes estão “up to date”, é complicado e inoperante tanto em termos de nação, como em nossos consultórios, adotar esses padrões.

Nosso processo civilizatório instaurou o envenenamento mútuo, a mutilação da alma, a dissociação, a ferida do Self, a deturpação do Animus, o espancamento da Anima, a ausência do respeito e da ética.

O Brasil, no geral, teve um Pai negativo, ausente, distante e punitivo. Fomos “civilizados” por uma cultura urbana classista. Quanto à Mãe, observamos que a mãe índia alimentou o filho, por vezes mestiço, mas não pôde passar a ele suas raízes: valia a raiz européia. O mesmo aconteceu com a mãe negra, que também tantos brancos alimentou, cuidou, até amou, mas suas raízes eram pisoteadas e desqualificadas. Se formos entender a Igreja como madre, também percebemos uma mãe às vezes amorosa, protetora, mas muitas vezes castradora, que apesar da devoção à Nossa Senhora perdeu a dimensão do feminino.

Podemos concluir que precisamos do herói que nos ajude a fazer um trajeto de resgate de nossa consciência, que liberte a nossa princesa (anima positiva) e tenha coragem para confrontar nossa sombra social. Esse caminho demorado e paciente, que implica rituais de passagem e o exercício da democracia, feito com amor, solidariedade e respeito seria nossa redenção, o resgate de nossa bandeira e de nossa identidade.

Percebemos a freqüência de acontecimentos em que o povo fica, num comportamento mais infantilizado, ligado ao mito messiânico como de Antônio Conselheiro, Padre Cícero, etc. Não foi à toa que a morte de Ayrton Senna, por exemplo, consternou e uniu toda nação. Ele empunhava com orgulho nossa bandeira após cada vitória. Resgatava, assim, o brio nacional; enquanto levantava esse símbolo de proteção, fazendo a ponte do povo com Deus, mobilizava em nós a graça, o sucesso e levantava a esperança de cada brasileiro poder dar certo.

Entre suas qualidades positivas estavam seu espírito de sacrifício, sua obstinação, sua determinação, sua fé, sua preparação para arriscar a vida, sua dedicação, sua agilidade, seu savoir-faire, sua competitividade, seu amor pela pátria. Essas eram qualidades necessárias para um “herói” e um modelo que o povo praticamente sem identidade e com o ego muito fragilizado precisava para tentar se reerguer. Após um período de trinta anos de ditadura, onde as manifestações ideológicas e as tentativas de libertação eram reprimidas e a ânsia da democracia foi frustrada por um falso herói-presidente, afastado por corrupção e traição à confiança que o povo, ao votar, lhe dedicou, tivemos que lidar com nossa psicopatia. Nessa fase (e em outras tantas que se seguiram) tornaram-se públicas a corrupção que tantos prejuízos dá à nação, a falta de ética, o abuso do poder e utilização do mesmo para benefícios pessoais ou de pequenos grupos dominantes, a impunidade e a conivência das estruturas formais e informais com a mesma; os desvios de dinheiro público que deveria ser usado na solução de problemas sociais, da saúde e da educação, para bolsos e enriquecimento ilícito de pessoas sem a mínima noção de ética e cidadania.

Somos um povo carente de heróis. Em nosso árduo e artesanal trabalho de consultório, tentamos resgatar, refazer ou formar modelos de pais internos de cada indivíduo. O processo terapêutico envolve muito amor, dedicação, respeito, ética, paciência, tempo. É também um processo didático de reabilitação e educação, onde é fundamental a integração da sombra à consciência e a discriminação. O processo de resgate da alma brasileira se dará por esse mesmo caminho.

Educação, reeducação da sociedade e reformulação de valores é o que precisamos. O indivíduo, por um lado, deve assumir sua responsabilidade “heróica” de consciência social. O Estado, por outro, precisa cumprir sua função de um modelo político de compromisso, de combate à corrupção e ao crime, inserção e respeito social, garantia dos direitos humanos (educação, saúde, cidadania, trabalho e renda), transparência e justiça. O Pai não pode ficar ausente.

Nossa sombra social não tem sido examinada e considerada, embora já tenhamos luz no final do túnel. Por enquanto, marginalizada da consciência e do convívio saudável, ela nos ataca. Assim, bandidos, traficantes, trombadinhas invadem as cidades e somos vítimas de assaltos, chacinas, seqüestros, que constituem uma guerra civil disfarçada. Tanto é que na prática essa marginalidade passa a ser mais “organizada” e violenta, muitas vezes através de setores bem situados da sociedade formal (policiais, políticos, juízes, militares, empresários), que estão por trás da bandidagem, do tráfico de drogas, do contrabando de armas e da remessa ilegal de divisas.

Nosso grande ritual de passagem será exercido à medida que os heróis internos nos ajudem no nível individual e coletivo a preparar uma sociedade que seja capaz de enfrentar seu próprio destino. É tarefa do herói nacional liberar nossa Anima aprisionada como um componente da psique social. Nossa trajetória heróica implica que sacrifiquemos e nos libertemos de velhos padrões opressores ou omissos, paternos e maternos, e reencontremos a identidade nacional. Quando nosso Ego e Self Culturais adquirirem força e expressão advinda do confronto com a sombra social, e nós já não tivermos mais que enfrentar os dragões da inflação, da fome, da miséria, nossa Anima estará transformada em princesa liberta e a Sombra já não nos ameaçará nem nos atacará. Não podemos nos esquecer de que o confronto com o lado maligno e sombrio é que nos possibilita a chance de revertê-lo em energia positiva. Pois é em nossas emoções mais ameaçadoras e terríveis que está armazenada nossa energia vital. Dessa forma, poderemos transformar por intermédio da educação a força criativa que existe, por exemplo, num “trombadinha”, que é exercida de forma inconsciente e negativa, e revertê-la para ser usada a seu favor e a favor da sociedade, como aptidão para o trabalho, fazendo-o tornar-se um cidadão útil e uma pessoa realizada.

A maturidade social e o resgate da ética (que implica liberdade e respeito) só serão efetivos quando tivermos elaborado e criado figuras parentais de um Pai justo e uma Mãe-matriz amorosa que cuidem de seus filhos e os ajudem a ter consciência.

Precisamos recuperar nossos verdadeiros sentimentos para resgatar nossa Pátria-Mãe ou, ainda, temos que nos voltar para nossa Mãe-Pátria para a recuperação de nossos corações. Hillman diz que “o amor pode nos derreter, mas deve queimar profundamente e por longo tempo para transformar e educar o nível histórico dos padrões inconscientes da alma de cada um de nós”. Sejamos amorosos, pois.

Nossa saída criativa, segundo os caminhos do Self Cultural até aqui vistos, que é o agente de ligação dos aspectos sombrios e luminosos, que representa também nossa alma, não é uma saída revolucionária armada, mas o exercício pleno da Democracia. Nosso caminho passa também pelo casamento de Eros e Psique.

Falta-nos mais amor e mais respeito por nossa terra. Somos ainda um povo que se auto-avacalha, que se automutila, sem concluir uma transformação, que implica uma tomada de consciência efetiva.

Por isso nosso crescimento e amadurecimento constituem um processo lento, como na maioria das vezes é o processo terapêutico. Não somos mágicos, nem pretendemos ser imediatistas como as crianças.

Nossos heróis precisam ser identificados dentro de cada cidadão, que deve ser respeitado e ter o direito de comer adequadamente, morar decentemente, receber uma educação apropriada e ter uma digna assistência de saúde física e mental.

Temos heróis, sim. São os heróis e heroínas nossos de cada dia, trabalhadores das cidades que acordam de madrugada, largam seus filhos em situações precárias, tomam conduções deficientes para poder ir trabalhar e ganhar, muitas vezes, apenas um salário mínimo, tendo que fazer verdadeiras mágicas para poder esticá-lo e sobreviver dele. Desse grupo também fazem parte o pescador, o camponês, o sertanejo, que trocam seu suor e sua vida por uma remuneração miserável, que mal dá para saciar a fome da família.

Da mesma forma, cientistas, professores, pesquisadores, médicos, psicólogos, enfermeiros mal remunerados por Prefeituras e Estados semifalidos são heróicos e idealistas quando dão o melhor de si em trabalhos diligentes e cansativos e recebem salários injustos no fim do mês.

Enquanto isso, alguns funcionários públicos, políticos, comerciantes e atravessadores muito ganham sem trabalhar, vivendo da exploração dos outros. São vampiros sociais.

O povo brasileiro é, no geral, solidário e generoso. É curioso, astuto, talentoso, criativo, bem-humorado, que aprende tudo muito rápido. De nossa miscigenação, ainda sob influência do índio e do negro, em contraponto com a tradição cultural européia, sobreviveu a contribuição que aquelas raças nos legaram, que foi o exercício das funções do sentimento e da intuição, deixando o pensamento e o racionalismo em seu devido lugar.

Em nossa labuta de consultório, trabalhamos com o inconsciente, com o invisível, com perversões, com a Sombra. Lidamos com o que não está bem, com o que não está integrado, com o que está dissociado, com o que está reprimido, com o que precisa ser refeito e resgatado. Enquanto nação precisamos fazer o mesmo: lidar com nossas almas penitentes e resgatar a alma nacional e ancestral que, pelo desrespeito, ficou no inconsciente.

Precisamos examinar nossas diferenças culturais, fazer nosso diagnóstico psíquico-cultural, e decidirmos o que queremos ser.

É importante que trabalhemos nosso lado regressivo, depressivo, complexado, que tem vergonha e que não vê saídas.

Jung certa vez argumentou que o ritmo da consciência através da Ciência e da Tecnologia foi muito rápido e deixou o inconsciente, que não pode acompanhá-lo, bem para trás, forçando-o assim a uma posição defensiva, que se expressou num desejo universal de destruição. Isso ficou óbvio com a deflagração das guerras mundiais, nas quais o Brasil teve pouca participação. Tendo isso em conta, nos lembrou de uma necessidade da liberdade espiritual, afirmando que esta questão não pode ser resolvida de fora para dentro, isto é, coletivamente, porque as massas não mudam se o indivíduo não mudar e se responsabilizar por si mesmo. Isso realmente só se torna possível dentro de um regime democrático, com liberdade, e não debaixo da lei da força.

O psiquiatra e analista Karl Fierz lembra que devemos procurar nossos símbolos internos e guardá-los nos corações. Isso em termos políticos significa que temos responsabilidade individual como cidadãos que pertencem a uma comunidade. E, em termos metafísicos, que nossas intenções e erros nos levam a sermos o que somos.

Uma desordem psíquica não pode ser encarada somente como um escândalo, mas como um sinal de desenvolvimento pessoal. Isso também acontece com um país e com uma cultura.

O processo de individuação não é um recolhimento a uma torre de marfim, ao contrário; a responsabilidade social é um elemento crucial da individuação. A personalidade bem equilibrada implica que o indivíduo saiba se ajudar e ajude ao próximo.

Como terapeutas, não podemos esquecer desse compromisso, da responsabilidade cívica e profissional, de não sermos alienados da realidade individual e coletiva. Devemos exercitar a cidadania. Precisamos ter a consciência bem desenvolvida e o coração bem aberto.

Precisamos valorizar mais os aspectos do feminino que existe em nossa alma individual e coletiva. Como lembra Hillman, só nos livraremos da repressão e da neurose quando tivermos resolvido com sucesso o “repúdio da feminilidade”, tema que já foi abordado por Freud e visto como um “traço notável na vida psíquica dos seres humanos”. Isso significa que precisamos respeitar melhor e encarar nossas ambivalências, nossas emoções e sentimentos, nossa dor, nossa depressão, nosso inconsciente, nossos abismos, nossas feridas e mutilações, nossa espontaneidade, o não dito, o subjetivo, o irracional, o ilógico, o desconhecido.

No plano simbólico, precisamos trabalhar para que o lado insano de nossa sociedade seja tratado por intermédio do sacrifício efetivo do nosso lado mutilado.

O sacrifício acontecerá na medida em que houver uma transformação e integração do mundo primitivo, caótico e infantil inconsciente para a consciência. A mutilação do Saci e do Curupira faz com que eles expressem o lado eunuco da Grande Mãe. São também os aspectos mutilados do Trickster. A Mula representa a alma mutilada e não sacrificada do Pai branco. Essas características certamente não nos levarão ao desenvolvimento, uma vez que esses elementos caracterizam um aspecto infantilizado e descontrolado da nossa libido que ainda não se libertou dos Pais.

O povo brasileiro vinha vindo num processo de mutilação e não de sacrifício da Grande Mãe. Nosso resgate vem sendo feito pela necessidade do herói que ajuda no ato do sacrifício. Hoje em dia já temos um Estado Democrático em implantação e nosso povo já está podendo exercer o treinamento do voto. Isso poderá propiciar nosso “redescobrimento”.

O sacrifício simbólico de nossa estrutura psíquica apoiada originalmente apenas no desejo instintivo e na Grande Mãe é o movimento que propiciará a transformação da libido, antes num nível de inconsciência e inconseqüência, para uma renovação e utilização da mesma de maneira consciente, conseqüente, madura e criativa.

Precisamos carregar nossa própria cruz para o sacrifício dos opostos; é necessário que tenhamos nessa cruz uma morte simbólica (padecendo a dor das perdas que isso implica) e renasçamos como donos de uma identidade e de nosso próprio destino.

Para isso necessitamos de uma atitude básica e profundamente amorosa para com os processos tanto individuais como coletivos, e uma constante atenção em relação aos caminhos que o Self individual e o Self Cultural nos sugerem. Pois como disse o poeta Antonio Machado, “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. Nosso trabalho deve ser de caminhar fazendo alma.

Precisamos ajudar nossos pacientes e nossa Pátria em seus processos de individuação, fazendo tudo o que está ao nosso alcance para que nossa mutilação e a da nação tenham sentido dentro de um trabalho de transformação de forma que, no futuro, sejamos um País digno e cheio de Graça.

“Deus me faça brasileiro

Criador e criatura

Um documento da raça

Pela graça da mistura

Do meu corpo em movimento

As três Graças do Brasil

Têm a cor da formosura.”

(Meninas do Brasil, de Fausto Nilo e Moraes Moreira)

 

            Alegoria da Primavera (detalhe das Três Graças) – Sandro Boticelli.

 

Bibliografia

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